Dez contos perturbadores compõem a obra “Coelho maldito”, de Bora Chung. A escritora sul-coreana, que foi publicada pela primeira vez no Brasil, apresenta histórias difíceis de esquecer e que são completamente viciantes, ainda que cada página possa provocar reações de espanto, nojo ou dor. Suas frases são simples e cortantes, e os personagens vão sendo construídos a partir de ações que podem parecer corriqueiras, até que tudo se transforma em algo impossível de prever. O aterrorizante está no banal, como entregar um abajur de coelho, ir ao ginecologista e até ao banheiro, mas também está nas fábulas mais consolidadas. Os medos mais absurdos não estão distantes, e sim perto, e os desfechos são sempre tão impactantes quanto o próprio desenrolar. Neste livro, que parece representar também uma nova tendência na literatura, tudo é passível de ser mais do que aquilo que aparenta.
O primeiro conto da obra é justamente o que dá título ao livro. Nessa narrativa, um abajur de coelho é oferecido a um homem que foi responsável por destruir uma família, e a presença daquele objeto amaldiçoado vai causando desgraças por onde passa – até que se revela ainda mais próximo do que é possível imaginar dos próprios fazedores de maldições. Já em “A cabeça”, os excrementos de uma mulher passam a persegui-la de dentro do vaso sanitário, a acompanhar até mesmo sua filha criança e fazer com que tenham comportamentos paranóicos, enquanto ninguém parece ligar para o absurdo da situação. Um outro conto, “Lar, doce lar”, apresenta inquilinos que são amedrontados por um prédio que parece ter vontade própria, até que os laços ali construídos também vão se apresentando duvidosos.
Já em “Dedos gélidos”, um acidente de carro acontece repetidas vezes, até que a conversa entre as sobreviventes vai se alterando a cada vez, fazendo com que a personagem duvide de tudo ao seu redor e tenha motivos mesmo para temer nunca ter escapado. Já “Adeus, meu amor” apresenta a relação entre uma mulher e seu robô feito com uma espécie de inteligência artificial, que está prestes a ser substituído por um modelo mais novo. Em nenhum dos casos o desfecho é parecido com o que se imagina, e o que as histórias têm em comum, sendo totalmente diferentes uma das outras, é a sutileza em que a narrativa é encaminhada para sempre conseguir chegar a algo íntimo e perturbador.
“Coelho maldito” foi publicado primeiro na Coreia do Sul em 2017, e lançado nos Estados Unidos em 2022. A obra também foi finalista do International Booker Prize nesse mesmo ano, e reúne uma coletânea de trabalhos de Bora Chung entre 1998 e 2016. Apesar de muitas vezes os temas parecerem absurdos, a autora tem inspiração na vida, e inclusive em situações que já aconteceram com ela. A escrita do terror, como é o caso na obra, frequentemente está ligada a críticas sociais e realidades que são ainda mais assustadoras que situações particulares assombrosas. É o que acontece em “Menorreia”, quando uma mulher descobre que está grávida sem ter tido relações sexuais, e que precisa encontrar um pai para aquela criança antes que ela se transforme em uma criatura terrível ainda dentro de sua barriga. A busca por um marido que possa salvá-la do próprio corpo e da própria cria passa a ser a peregrinação dessa personagem nos meses seguintes, e nessa trajetória todos os candidatos passam a ter mais direito sobre seu corpo do que a própria.
Mistura de gêneros
Outra característica que chama a atenção em “Coelho maldito” é a mistura de gêneros que a autora traz. É possível captar nos contos elementos típicos do terror, mas também características fortes do folclore sul-coreano, construções de contos de fada e até mesmo as inovações capturadas da ficção científica. A relação com o folclore, por exemplo, aparece evidentemente em “A armadilha”, quando um homem encontra um animal que parece sangrar ouro. E tudo isso é feito sem seguir modelos mais tradicionais, na maior parte do tempo.
Apesar de um tom sinistro que se mantém por quase toda a obra, também há uma beleza particular em alguns contos, como é o caso de “Reencontro”, que encerra a obra e que trabalha especialmente bem a ligação entre os dois personagens. O mesmo acontece em “Adeus, meu amor”, em que a repetição de uma música cerca os personagens pouco humanos. A primeira frase do livro, não por acaso, deixa clara essa ligação entre o belo e o terrível: “Tudo que é usado em maldição deve ser bonito”.
Mulheres medonhas
Assim como Bora Chung, outras mulheres têm escrito livros de contos que usam personagens femininas, perspectivas femininas e até mesmo uma mistura entre diferentes gêneros para criar obras viscerais. É o que faz a argentina Mariana Enríquez em “As coisas que perdemos no fogo”, a equatoriana Mónica Ojeda em “Voladoras” e a japonesa Aoko Matsuda em “Onde vivem as monstras”, para citar apenas alguns exemplos.
Livros como “Coelho maldito”, além das suas características singulares que mostram essa qualidade literária, também exemplificam um ganho recente da literatura feita por mulheres. Contrariando qualquer estereótipo do que é uma escrita feminina, para mulheres ou para moças, essas autoras têm mergulhado no que há de mais aterrorizante na vida sem qualquer medo, fazendo tudo, na verdade, parecer existir apenas por conta do olhar curioso e atento de cada uma.