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‘Sou uma carioca do asfalto selvagem’, diz a atriz Maria Gladys

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(Foto: Léo Lara/CineOP/Divulgação)

Maria Gladys interna
(Foto: Léo Lara/CineOP/Divulgação)
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Não a chamem de senhora. “Não gosto”, diz. E a despeito de seus 78 anos, o título de senhora parece não lhe cair muito bem mesmo. Maria Gladys é de uma juventude naturalmente modulada pelo riso e modelada pelo desejo de sorver cada dose da vida. E o faz morando a pouco mais de 120km de Juiz de Fora, na pequena Santa Rita de Jacutinga, na Zona da Mata mineira. Rodeada de verde, dorme e acorda numa calmaria nunca antes experimentada na agitada vida da atriz que logo na juventude envolveu-se com o cinema marginal, exilou-se na Londres dos anos 1980 e regressou para o sucesso da global “Vale tudo”, novela na qual interpretou Lucimar da Silva.

Jovem que continua a ser, não parou. “Acabei de fazer um filme com o Eryk Rocha, filho de Glauber. Chama “Miragem”, um filme lindo. Foi um momento maravilhoso filmar com ele”, conta ela, homenageada da 13ª edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, que termina nesta segunda, 18, e onde exibe, neste sábado, “Quebranto”, novo longa-metragem do mineiro José Sette, que por longos anos viveu em Juiz de Fora. “O José Sette é um companheiro meu. Esse trabalho foi lindo, porque ele tem muito prazer em trabalhar. Ele é um grande cineasta e um fotógrafo fabuloso. Adoro o filme. Dei tantas gargalhadas comigo mesmo. O Zezinho falava: ‘Dança!’. E eu dançava numa loucura”, conta, aos risos sobre a produção que tem exibição neste sábado, 16, às 21h15, na cidade histórica.

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“Eu era dura, tinha que trabalhar como atriz para ganhar algum dinheiro. Não tinha nada. Nunca tive. Sou uma dura. Dizem assim: “Ué, não está trabalhando na Globo?!”. Sim, mas acaba o contrato. Acaba o dinheiro, e fico dura.”

Da estreia ao lado de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto e Ítalo Rossi, ao convívio diário, na mesma casa, com Betty Faria e, depois, com Leila Diniz, Maria Gladys não apenas tornou-se importante personagem da cultura brasileira nas últimas cinco décadas, como também é testemunha da construção de novos paradigmas sociais. Manteve-se engajada, conta a mulher que durante a cerimônia de entrega do Troféu Vila Rica, na abertura da mostra, na última quinta, 14, clamou por um país mais justo, na democracia que viu esvair-se e, também, restituir-se. Por telefone, dias antes de seguir para Ouro Preto, Maria Gladys conversou com a Tribuna, falou sobre sua carreira, sobre a arte dramática, sobre o país e, lógico, sobre o permanente e ácido humor que não a permite ser chamada de senhora. Ela é jovem.

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Tribuna – Como tem sido a vida no interior mineiro, em Santa Rita de Jacutinga?

Maria Gladys – Estou aqui há cinco anos, no meio do mato, coberta de montanhas. Essa é a terceira casa que moro nessa mesma estrada chamada Candonga, num vale. Minha filha que vive fora do Brasil, na Inglaterra, comprou para eu viver. Mas é difícil, porque sou uma carioca do asfalto selvagem. Fui criada no subúrbio. Saí com 16, 17 anos de lá. Passei minha adolescência em Copacabana. Sou boêmia, amiga de Vinícius de Moraes, Hugo Carvana, Jaguar, Ziraldo. Sou carioca, sagitariana e boêmia. E de repente estou aqui, num vale, sozinha e rodeada por cinco cachorros. Meu filho mora na cidade. Nem sempre é bom. Esse ano, por exemplo, saí pouco. Preciso dar uma reciclada no Rio. Aqui não falo nada, leio muito. Agora saio para Ouro Preto, uma cidade que adoro. Filmei lá com o Walter Lima Jr., produção do Jofre Rodrigues ( filho do Nelson), com a Patrícia Pillar e o Murilo Benício, no primeiro filme dele. Também filmei com o Mineiro (Luiz Guimarães de Castro), a história do Living Theatre quando esteve em Ouro Preto. Nesse lugar em que vivo, tem um ônibus azul chamado Sertaneja. Adoro esse nome, porque minha mãe tocava piano – sou de uma família com gente tocando acordeom, piano e bandolim – e cantava: “Sertaneja, por que choras/ quando eu canto/ Sertaneja, se este canto/ é todo teu?”. Ela adorava essa música (de Nelson Gonçalves). Então, como tenho muita simpatia, digo que preciso entrar nessa Sertaneja e passar um dia em Juiz de Fora, cidade que não conheço. Também tenho esse desejo porque gostei muito de Itamar Franco. Depois que ele saiu do governo, adorava as entrevistas que ele dava. Até pensei em ir aí para ver o Caetano com os filhos (no show “Ofertório”, que passou pela cidade nos dias 20 e 21 de abril).

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Sua trajetória ajuda a contar um pouco a história do cinema nacional. O que mudou desde que começou a atuar?

Hoje é outra coisa. Não é nem parecido. Tem a tecnologia e muitas cabeças pensando. Isso aconteceu naquele momento da ditadura. Tanto que esses filmes nos levaram a Londres. Éramos uma turma. Eles (Júlio Bressane e Rogério Sganzerla) eram os cabeças, muito mais do que eu. Montaram a produtora Belair com o dinheiro deles e fizeram muitos filmes em dois meses. Trabalhei em três filmes fabulosos: “Sem essa, aranha”, “A família do barulho” e “Cuidado madame”. Dentre esses filmes, “Sem essa, aranha” é um sucesso. E para mim, como atriz, também. O Rogério Sganzerla é um ser superior, um cineasta fabuloso, que, muito jovem, aos 21 anos, fez “O Bandido da Luz Vermelha”. Devo dizer a você que convivi com gênios. Não convivi com pessoas de inteligência normal. Isso me iluminou muito para a vida, para o que eu queria. E eu queria ser atriz, nada menos que isso.

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“Sinto as coisas muito secas hoje. O mundo está muito louco. O Brasil atravessa um momento difícil.”

E fazer cinema era diferente?

Era improvisado. Havia uma ideia na cabeça, mas esse slogan é do Cinema Novo (risos). No “Sem essa, aranha”, o Rogério tinha o texto na mão. Eram umas folhas que caiam no chão, ele pegava, caiam outras. Ele tinha uma inventividade incrível. Era um momento enlouquecido filmar com ele. Diferente de Júlio, que era mais seco, mais exato. Rogério era glauberiano. Era espetacular filmar com Rogério, Júlio e Neville, com quem fiz filmes undergrounds. Com a produção da Belair tinha que ser rápido. Não tinha dinheiro. Eram dois, três, quatro dias. Quando eu chegava para o terceiro dia de filmagem, eles falavam que acabava no dia seguinte. “Meu Deus, que pena!”, eu dizia. E me pediam: “Amanhã você arranja uma roupa de odalisca para dançar”. Eu tinha que inventar uma odalisca para dançar no quintal da casa do Júlio no dia seguinte. Imagina isso! Anos depois, fiz “O gigante da América” (1978), quando o Júlio já não era underground e tinha dinheiro. Voltei a ser uma odalisca, com um figurino lindo, verde, dançando em Cabo Frio, na tenda de Hélio Oiticica. Essa cena já passou na Bienal de São Paulo, esteve em Nova York e muitos outros lugares. Um momento extraordinário.

Quando estava procurando um figurino de odalisca e projetando como seria a dança, imaginava escrever a história?

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Eu não sabia. Mas Rogério e Júlio acho que sabiam. Eu era muito garota, vinha do teatro. Quando os encontrei, lindos, inteligentes, cultos, fabulosos, pensava: “Quero fazer mais o que da minha vida?!”. Tanto eles sabiam que diziam que queriam revelar os filmes em Londres. Júlio, então, se mandou. Depois foi Rogério, Neville, e, logo em seguida, eu fui. Não queria ficar no Brasil, naquele horror. Queria dançar rock, ver show pop. Fui e virei a maior hippie. Foi um momento tão especial que voltei grávida. Que bom que fui até lá! Não preparei nada disso, fui lá e fiz. Eu era dura, tinha que trabalhar como atriz para ganhar algum dinheiro. Não tinha nada. Nunca tive. Sou uma dura. Dizem assim: “Ué, não está trabalhando na Globo?!”. Sim, mas acaba o contrato. Acaba o dinheiro e fico dura. Sou uma atriz dura. Mas nunca topei fazer coisas de que não gostava. Acabei trabalhando só com amigos. Por isso, esse festival é um presente que ofereço a todos os diretores que me escolheram para trabalhar. Se não fosse eles, eu não seria nada.

“Sou sagitariana, adoro festas, gosto de gente e gosto de falar. Por isso não posso ficar muito tempo aqui no canto, também. Mineiro não fala, e quando fala, desconfia.”

 

Ainda hoje enfrenta dificuldades para ser artista?

As pessoas antigamente eram mais generosas, menos estressadas, não queriam tanto. Tudo ficou muito superficial. Ainda temos grandes artistas, coisas extraordinárias, como Arnaldo Antunes. Os Titãs, também, fizeram um trabalho fabuloso a vida inteira. Teve Cazuza, artista muito radical nesse tempo aqui. E já tem 20 anos que ele morreu. Sinto as coisas muito secas hoje. O mundo está muito louco. O Brasil atravessa um momento difícil. Sou filha do Golpe de 64, quando começava minha carreira. Eu não sabia de nada, estava cheia de vontade. Vi a UNE pegando fogo, vi uma porção de amigos meus, que lidavam comigo, sumirem. Cadê fulano?! Pegaram, mataram! Veio a censura e acabou minha profissão, justamente quando eu estava cheia de fôlego. Trabalhava entregando panfletos na UNE, enquanto treinava para fazer teatro popular, na rua. Sempre fui uma atriz engajada.

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“O pouco que tenho gasto comigo. Não dá para juntar mesmo.”

E o humor, que marca sua trajetória na televisão, também está presente no seu dia a dia?

Sou bem humorada. Os papéis que fiz pediam esse lado. E quando não era trabalhando com o Miguel (Falabella), era com o Aguinaldo (Silva). Mas eu sou uma pessoa com alegria. Sou sagitariana, adoro festas, gosto de gente e gosto de falar. Por isso não posso ficar muito tempo aqui no canto, também. Mineiro não fala, e quando fala, desconfia. É foda, cara! Ainda mais numa cidadezinha pequena. Por isso vou ao Rio, mas esse ano fiz poucos trabalhos. Agora vou gravar seis capítulos para o Now (serviço de streaming da Net), chama-se “Os despejados”, e tem direção da Bia Oliveira, sobrinha de Domingos Oliveira, com roteiro do Guilherme Duarte, um garoto, que não tem nem 30 anos. Lembro, agora, do mineiro Ezequiel Neves, que lançou o Cazuza. No final da vida, ele não chamava mais o pessoal de Barão Vermelho. Ele chamava de “os meus netos”. Os meus netos, para ele, era o Frejat. Esse garoto, o Guilherme Duarte, com quem vou gravar para o Now, não vou chamar de meu neto, mas ele é muito garoto (risos).

A CineOP também homenageia o tropicalismo, movimento que acompanhou de perto. Você se percebe um pouco tropicalista também?

Posso até ser tropicalista de uma certa forma, porque convivi com eles. O Waly (Salomão) e o Hélio (Oiticica) são pessoas às quais fui muito ligada. Também me liguei a Caetano e Gil durante uma certa época, em Londres e no Rio de Janeiro. Era um tempo mais leve. A gente se encontrava mais. Depois as coisas foram mudando. As pessoas foram se casando com outras e foram ficando mais reservadas, vendo menos uns aos outros. Uma vez, sentei com o Paulo Mendes Campos, um poeta mineiro, e eu ficava sempre querendo beber com ele. O via no Leblon e ficava louca para beber um uísque com ele. Uma única vez consegui. Perguntei, então, porque eles bebiam todo dia à tarde. Ele disse que velho não bebe de noite, só durante o dia. É a pura verdade. Esse negócio de beber à noite não dá. Eu, aqui, nesse vale, não faço outra coisa a não ser beber de dia.

“Esse negócio de beber de noite, não dá. Eu, aqui, nesse vale, não faço outra coisa a não ser beber de dia.”

 

Sempre foi de curtir a vida?

Eu morava em Ipanema, na Avenida Atlântica. Não faço por menos. O pouco que tenho gasto comigo. Pensa bem: ganho uma mixaria, que vai acabar já já o contrato, vou poupar para que se eu posso pagar o melhor, cair de boca? Morava na Avenida Atlântica. E por isso acabei parando aqui (risos). Lembro que, bordando por Ipanema, sem nada para fazer, chegava à casa de Tati de Moraes às cinco da tarde. Tati foi a primeira mulher do Vinicius de Moraes, foi uma pessoa importantíssima na minha vida. Era um luxo de mulher. Uma paulista refinadíssima, culta. Às vezes eu passava na casa dela. Logo que eu entrava, ela perguntava: Quer uma vodca? Eu adorava isso. “Ah! Meu Deus! Claro que eu quero!”, eu respondia imediatamente. Aquela vodca congelada, às cinco da tarde: Existe coisa melhor que isso? A vida é assim!

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