Foi por US$ 69 milhões que a obra digital do artista Beeple foi vendida no mercado NFT. Por cerca de US$ 208 mil, um vídeo de uma jogada de LeBron James. Já o primeiro tweet, por US$ 2,9 milhões, enquanto o meme ‘Chloe’, por quase US$ 74 mil. Essas vendas têm algo em comum: todas elas tratam de ativos disponíveis na internet, gratuitamente, mas que foram compradas e registradas através de NFT, um certificado que garante que só exista um dono para essas obras. O conceito existe desde 2014, mas tem realmente movimentado o mercado da arte no último ano.
NFT é sigla para token não fungível (em inglês, “non-fungible token”) e permite que seja feito registro de qualquer ativo digital. Vinicius Chagas, analista educacional da Blockchain Academy do Mercado Bitcoin, explica exatamente o que essa sigla, eleita como a palavra do ano pelo dicionário Collins, significa. Primeiro de tudo, é preciso entender o que é token: “a gente chama de token uma representação digital da propriedade de um ativo. Essa representação é registrada em um blockchain. No mundo real, a gente tem a propriedade representada em um cartório, por exemplo. A diferença do token do mercado cripto é que ele conta com todas as características de controle de propriedade, mutabilidade e facilidade de transação”, diz.
Agora fica mais fácil entender o conceito: o NFT é um tipo de token que vai representar um ativo “não fungível”. Esse adjetivo aparentemente estranho diz respeito à qualidade daquilo que pode ser substituído – um bom exemplo de bem fungível é o dinheiro, cujo valor não está atrelado às suas características únicas. Como explica Chagas, “uma nota de R$ 10 ou outra nota de R$ 10 têm o mesmo valor. Em contraste com esse tipo de bem, aquele que é ‘não fungível’ é o que tem valor dele atrelado às suas características únicas, e que por isso não pode ser substituído. O melhor exemplo é uma obra de arte. Eu não posso pegar uma obra do Leonardo da Vinci e ter de volta a do Romero Britto. Embora sejam duas obras de arte, cada uma tem suas características únicas e seu valor é calculado com base nelas. No mundo digital, o NFT é que cria essa ideia de individualização e unicidade dos ativos aos quais se refere”.
O NFT surgiu, então, para transacionar fotos e artes digitais. Antes, era impossível fazer isso justamente por não se ter controle de propriedade desses arquivos na internet. Todos que tinham a cópia de uma foto poderiam ser considerados ‘donos’ dela. “O NFT cria uma representação da propriedade dessa foto, e é uma representação única. A única pessoa que é dona daquela foto, seja obra de arte digital ou meme, é quem possui o token. A partir de agora, conseguimos identificar o dono”, explica Vinicius. Até existem tokens que designam a propriedade de um ativo não fungível no mundo físico, mas esse conceito se popularizou mesmo no mundo digital, inclusive no meio dos games.
Por que comprar um NFT?
Provavelmente os leitores estão se perguntando: mas por que comprar um NFT, ainda mais considerando que se trata da venda de algo que já está disponível gratuitamente na internet? Existem duas respostas para essa pergunta, de acordo com o professor Diogo Cortiz, da PUC-SP, na área de tecnologia, design e comunicação. Ele explica que há quem compre porque tem gosto pessoal pelo item, podendo ser, por exemplo, fã de quem fez determinado tweet. Mas há também quem compra para especular depois, e ele acredita ser esse “o motivo de boa parte das transações que acontecem hoje em dia”. Com o crescimento do mercado cripto, portanto, quem tem essas propriedades passa a contar com um bem que pode valorizar ainda mais.
Vinicius Chagas também entende que há essas duas possibilidades, e faz uma comparação com o mercado colecionável de arte. “Os motivos da pessoa adquirir determinada obra são muito pessoais e subjetivos. Vamos supor o seguinte: eu sou fã de Star Wars e tenho alguns quadros no meu quarto. Eles têm alguma utilidade prática? Não. Quando a gente vai pro mundo digital, essa decoração ainda não existe de forma difundida – o que eu acho é que as pessoas compram da mesma forma que para mostrar esse interesse, elas mostram que têm o NFT de um projeto de que gostam e que admiram, por exemplo”.
Vantagens e desvantagens
Como tudo na vida, existem vantagens e desvantagens no uso dessa tecnologia. Diogo Cortiz explica que a principal vantagem é criar essa escassez para um universo digital, permitindo a compra de uma propriedade única e criando um caminho interessante para os artistas conseguirem valorizar o seu trabalho, especialmente com obras digitais inéditas, criadas já com NFT.
O lado negativo, no entanto, diz respeito também a essa escassez. “A gente está criando uma escassez para um universo no qual deveria ser tudo muito mais acessível. Uma vez que a gente está no digital, a gente fala bastante no custo marginal – o custo da reprodução. Você reproduzir algo é muito barato, traz uma acessibilidade muito maior para as pessoas. Dependendo do jeito que você visualiza, você começa a restringir o acesso para as pessoas, e isso é um problema.”
Um outro impacto que se pode gerar é no meio ambiente. O professor explica que o NFT entra num blockchain, e por isso fica rodando vários computadores ao redor do mundo para fazer as transações, consumindo bastante energia. “Às vezes, só pra você colocar um NFT no ar, você consome o que uma casa nos Estados Unidos em média consome em dois dias”, afirma Diogo. Isso ocorre justamente porque é preciso fazer muitas verificações e cálculos matemáticos, consumindo muita energia para validar a transação.
Ponto de vista dos artistas
O NFT também não é unanimidade no meio dos artistas. Gabriel Hislla, 27, por exemplo, faz parte do grupo dos que resolveram aderir a essa forma de comercializar seu trabalho. Ele é um artista freelancer e conta que encontrou no NFT um espaço que permitia que ele vendesse seu trabalho de uma forma que não fosse limitada a uma determinada região e que não dependesse de demandas dos clientes. Em seus anos trabalhando no meio artístico, ele explica que teve como principal fonte de renda o licenciamento da sua arte para produtos, tendo obtido assim uma porcentagem mensal dessas vendas. No NFT, assim que ele fez o teste de vendas, ganhou um valor que demorou anos a conquistar nesse outro mercado.
Ele entrou no NFT em fevereiro de 2020, após ter tido contato com plataformas desse meio que fossem mais sustentáveis, como a brasileira Hicetnunc. Ele já estava ciente do que era anteriormente, mas não gostava do que ouvia sobre o impacto ambiental e o custo alto de entrada, que considerava proibitivo. Quando encontrou uma plataforma brasileira que oferecia melhores condições, viu uma boa oportunidade de experimentar. Agora diz, a respeito do NFT: “as maiores vantagens que eu vejo são a independência e o amadurecimento que ele traz pro artista e pra relação dele com a arte. Você tem a oportunidade de criar a sua própria versão de mercado. Você pode focar no trabalho que você gostaria mesmo de explorar, e não só no trabalho que você estava conseguindo ser pago para fazer”, ele conta.
Gabriel também explica que, apesar da especulação, principalmente em projetos controversos e que recebem mais atenção, a maioria dos milhões de usuários de NFT são artistas independentes. Ele inclusive percebe pela própria experiência que isso trouxe ótimas oportunidades de também conhecer artistas do mundo inteiro.
Pirataria
Cristiano Siqueira, 42 anos, nunca colocou uma arte sua no mercado de NFT. Mesmo assim, já apareceram diversos trabalhos seus sendo vendidos por lá. Por serem arquivos digitais que estão disponíveis na internet para todos, um dos grandes problemas atuais desse mercado é exatamente este: as pessoas que pegam artes de outras e as vendem como se fosse delas. Essa situação ocorreu quando ele se cadastrou em um site chamado DeviantArt e passou a receber certificados de suas artes sendo listados em um site de venda NFT, o Open Sea. A partir disso, ele explica que abriu uma denúncia de roubo de arte. Mas o problema mesmo assim não acabou – pelo contrário, ele se tornou frequente. “Praticamente toda semana eu recebia algum aviso de outras artes sendo vendidas nesse Open Sea, sem a minha autorização.”
Por esse motivo e pela questão da sustentabilidade, ele não cogita a possibilidade de vender no NFT. “Não fico confortável em contribuir para um mercado totalmente especulativo, é um valor atribuído para uma suposta autenticidade de algo que realmente não existe. Se alguém pode pegar um trabalho meu e vender um NFT, será que é autêntico? E se eu não soubesse? Enfim, vendem algo potencialmente roubado como algo autêntico”, conclui.
O futuro da arte?
É impossível negar que o NFT está se tornando cada vez mais popular. A Samsung lançou uma TV inteligente que pode ser integrada a aplicativos de NFT, e a premiação do Oscar distribuiu uma arte digital em NFT do ator Chadwick Boseman para os participantes na sacola de brindes. Mas será que esse é o caminho da arte nos próximos anos?
As opiniões entre os especialistas variam. Os mais entusiastas dizem que sim; os críticos dizem talvez, caso a plataforma resolva os problemas apresentados. Para Marcus Bastos, professor da PUC-SP da área de convergência entre audiovisual, design e novas mídias, essa não deixa de ser uma possibilidade: a arte, afinal, sempre esteve próxima da tecnologia. “Quando os artistas do Renascimento começaram a trabalhar com perspectiva, também era a técnica de pintura mais avançada até aquele momento. Os artistas sempre estão interessados em estar próximos das tecnologias mais recentes, e isso é claro que aconteceu ao longo do século XX também”, diz. Ele considera que não é uma via de mão única, já que historicamente os artistas também já promoveram muito desenvolvimento tecnológico a partir das demandas da arte – nesse sentido, essa prática já vem de muito tempo.
O que se pode perceber, então, é que essa possibilidade já vem transformando a forma como as pessoas consomem arte desde que surgiu a reprodutibilidade, antes mesmo do NFT. Principalmente quando são levadas em conta as diversas possibilidades da arte, Diogo Cortiz acredita que essa ferramenta, em específico, tem capacidades muito importantes para o futuro. “Como existe a arte performática e a pintura, isso deve se manter com os objetos físicos. Mas para a arte digital, esse mercado pode criar coisas realmente novas.”