“Olha, a culpa não é sua. Você é uma vítima, e ninguém pode lhe tirar deste papel, porque você não foi responsável por isso. Você é só uma criança, ainda brinca de carrinhos. Não carrega isso pra sua vida. Conta pros seus pais, pra sua família, para que quando você for adulto, este assunto esteja talvez não resolvido, mas claro em sua cabeça.” Com a maturidade que só os anos trazem, o homem dirige-se ao menino, em um encontro ensaiado por muitos anos. Ambos, homem e menino, carregam as mesmas cicatrizes, mas só o mais velho compreende o que elas significam, porque as carregou em silêncio por muito tempo. Conheço e amo, há mais de dez anos, o já crescido, desde quando nos esbarramos nos corredores da Faculdade de Comunicação da UFJF e nos tornamos amigos da vida. Só hoje, ao concatenar estas palavras depois de uma longa conversa ao telefone, começo a perceber o quanto o garoto precisava falar. Enfim, o adulto diz por ele. E por tantos outros.
Homem e menino habitam meu querido amigo e ator Breno Motta em “Fricção”, monólogo teatral que aborda abusos sexuais na infância a partir de vivências do próprio artista e de outros inúmeros relatos. “Não é sobre mim, ou sobre um personagem, é sobre todo mundo, sobre os arrasos que trazemos em nossos corpos. Se pensarmos que quatro crianças e/ou adolescentes são abusados sexualmente no Brasil a cada hora, e este dado se refere somente aos pouquíssimos que chegam a denunciar, vemos o quanto o tema é universal e precisa ser discutido”, diz Breno, mencionando um dado do Disque 100, canal para relatar casos de violação de direitos humanos, que mostrou que o Brasil somou pelo menos 175 mil casos de exploração sexual infantil entre 2012 e 2016.
Segundo ele, radicado há dez anos no Rio – onde a peça estreou e foi aclamada pelo público e pela crítica -, o processo de construção de “Fricção” começou a ser maturado lá pelos idos de 2010, culminando primeiramente em outro monólogo, “Cartas de amor ao próximo”, apresentado em 2011 no Festival de Cenas Curtas, na Juiz de Fora natal do ator. “Mostrei este texto de 2014 ao Rafael Teixeira, crítico de teatro da revista “Veja Rio”, e ele disse que estava legal, mas me questionou o que eu queria dizer com ele. E aí comecei a pensar”, relembra ele.
A vontade de se expressar sobre a violação sexual foi despertada por uma matéria que leu na internet, sobre uma menina de 7 anos que foi sequestrada, estuprada e assassinada por homens de classe alta. “Isso me chamou muito a atenção, e pensei que precisava falar sobre este tabu, que é o abuso sexual. Tenho a sensação de que as vítimas deste tipo de violência ficam se sentido culpadas, como se tivessem merecido aquilo, o que é um absurdo. Senti que precisava falar disso, o que é um traço muito forte da arte contemporânea: pegar um tema atual, que precisa ser debatido, e transformar em matéria-prima. No teatro, por exemplo, muitos negros vêm abordando temáticas da negritude e do racismo, as mulheres discutem questões feministas… É um processo de se colocar cada vez mais na arte para poder seguir em frente, com a vida e com a própria arte.”
Em “Fricção”, a relação com o corpo é um dos pontos centrais do tema, como Breno deixa claro quando peço uma sinopse, com palavras dele, sobre o espetáculo. “A peça fala sobre o abuso, sobre um atropelo que aconteceu na vida deste personagem aos 9 anos. Nesta idade, ele foi abusado e só muitos anos depois, adulto, ao encontrar um grande amor, ele começa a se questionar sobre a ligação deste episódio com suas relações: com o mundo, as amorosas, e a dele com o próprio corpo. É um espetáculo que fala sobre as marcas desta violação no seu corpo, no meu corpo, nos nossos corpos” diz ele. “O nome vem daí, de friccionar, do contato, mas também em menção aos carrinhos que remetem à infância do personagem.”
Entre a dureza e a delicadeza
Para Breno, o processo de criação da peça ao longo de tantos anos permitiu que o texto e a dramaturgia fossem se aprimorando para tratar do tema exatamente como ele queria: “com a dureza inerente à questão, mas de forma poética, positiva e, sobretudo, delicada.” “Tive muito tempo para pensar sobre o que queria falar e como, fiz isso com muita calma. O Diogo (Liberano, que apresentou “O Narrador” no último sábado aqui em Juiz de Fora), dramaturgo da peça, trabalhou muito comigo nesta construção, propondo provocações: ‘aonde você quer chegar com isso?’, ‘você quer ficar neste lugar de oprimido ou seguir adiante’?, entre outros. Com isso, fomos fazendo e refazendo o texto, que foi fechado 100% só durante os ensaios. O Diogo é muito prático e conseguiu trazer à tona o ‘Breno artista’ muitas vezes em que eu tinha um envolvimento sentimental”, diz ele, que vê o atual trabalho como um reflexo de sua maturidade como ator e como pessoa. “Passei a entender melhor minha relação com o meu corpo com esse passar dos anos, o que transforma tanto pessoal quanto profissionalmente. Acho que é por isso que hoje consigo expor essas cicatrizes de ‘Fricção'”, avalia.
O ator conta que a diretora do espetáculo, Morena Cattoni, também teve um papel fundamental para que a evolução criativa da peça não se tornasse “mais difícil do que o necessário” para ele. “Em muitos momentos, eu olhava para ela e me emocionava, fiquei muito sensível, mas a tranquilidade da Morena facilitou muito meu trabalho e fez com que ele não fosse tão sofrido para mim”, diz Breno, revelando que os ensaios começaram quando a diretora estava grávida de três meses, e a estreia se deu entre o quinto e o sexto mês de gestação. “Foi uma doideira tratar desta temática com a Morena com uma criança na barriga. Mas foi também muito bonito. Durante o processo, escrevi uma carta endereçada à filha dela, falando sobre a dureza das coisas que ela ouviu do ventre da mãe, mas porque eu queria que ela nascesse num mundo melhor.”
O a(u)tor e a cidade
Na visão de Breno, trabalhos solo e autorais como “Fricção” têm traços muito marcantes de contemporaneidade e permitem um exercício maior do ator como autor. O juiz-forano inclusive ministrou uma oficina nesta breve temporada em Juiz de Fora, “O a(u)tor contemporâneo e a composição de pequenos solos”, abordando esta vertente, com base em sua experiência atual e em outros monólogos. “Este tipo de trabalho vem ganhando força primeiro porque o teatro enfrenta muita dificuldade de distribuição. Os governos não olham para a cultura, não financiam, não investem, mas os artistas seguem tentando produzir. O trabalho solo torna a produção mais viável financeiramente, logisticamente, em vários sentidos. Além disso, acho que esse formato vem ao encontro dessa necessidade tão atual de pessoalizar tabus, por meio de uma autoralidade muito forte de produzir, escrever, atuar, dirigir…”
Ansioso pela estreia de Juiz de Fora, tão recheada de memórias íntimas – as que permeiam “Fricção” e incontáveis outras -, Breno, questionado, na leiga compreensão teatral da amiga repórter, se a peça teve algum efeito terapêutico, retruca sem pausas para pensar. “Não. Não gosto de pensar na arte como terapia, não vejo esse propósito. Acontece de você entender que existe uma questão na sua vida, transformá-la em algo artístico e seguir a vida. A mensagem da peça é bem essa: ‘olha minhas cicatrizes, elas estão aqui, mas olha como podemos nos tornar pessoas que não negam estas marcas, mas também não se deixam ser aprisionadas por elas.”
“Acho que nunca tivemos uma conversa séria tão longa”, brinco antes de desligar. Breno responde com a gargalhada que me é tão familiar, no domínio pleno de todas as suas cicatrizes e certamente me conduzindo um tanto mais em direção ao poder sobre as minhas.
“Fricção”
Domingo (17), às 20h, no CCBM (Av. Getúlio Vargas 200 – Centro)