Em um apartamento da Rua Correia Dutra, no Bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, brilha um clarão sobre uma zona turva da história da literatura brasileira. Adentrá-lo para encontrar Francisca Vilas Boas na tarde de um domingo quente no fim de abril foi derivar 50 anos rumo ao passado e vislumbrar a gênese da configuração de um gênero literário, objeto da minha tese de doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora e pelo qual me aventurei como ficcionista em 2016, com a publicação do livro “Curto & Osso”. Francisca é a única remanescente do coletivo conhecido como Grupo de Guaxupé, ao qual atribui-se a fundação, no Brasil, de um formato textual relativamente jovem: o miniconto, tipo de prosa ficcional brevíssima, de tintas híbridas, que tem por aqui, entre seus mais estrelados adeptos, nomes como Dalton Trevisan, Marina Colasanti e João Gilberto Noll. Francisca, porém, tem trabalhado discretamente para que, ao lado desses nomes, sejam também arrolados os de seus colegas do Sul de Minas.
Em fins dos anos 1960, bem antes do livro “Zooilógico” (1975), de Marina Colasanti, um dos marcos do miniconto nacional, e muitíssimo antes de “Ah, é?” (1994), de Dalton Trevisan, por muito tempo entendido equivocadamente como o “pai do miniconto” nessa Terra de Santa Cruz, Francisca, ao lado de Sebastião Rezende, Elias José e Marco Antonio Oliveira, já publicavam textos narrativos breves sob a categorização de minicontos. “Guaxupé é uma cidade pequena, ‘sem nome’, então as pessoas não estão muito interessadas”, afirma Francisca, sorriso no rosto e uma certeza feroz nos olhos. “Não foram só os defensores do Dalton, não, houve outros também que acharam que o miniconto não tinha nada a ver com o Grupo de Guaxupé”, afirma, referindo-se aos primeiros teóricos a estudar o gênero no país. “Isso é um erro crasso. Porque até a palavra ‘miniconto’ está aí”, comprova, mostrando a capa da plaquete “Cadernos 20”, datada de julho de 1969 e escrito bem grande sob o “20” vermelho: “míni-contos”.
Amanhã, Camila…
Não console minhas lágrimas, Camila. Se não, amanhã você não poderá sorrir com minha alegria… com a festa de meus balões…
E você sabe, a gente sorri tão poucas vezes e os balões vão todos para o céu… anjos da tarde, lutando contra o azul das distâncias…
Foi preciso mais esse adeus de minha vida. De tudo só restava um gosto triste de um olhar empoeirado. Depois Camila, em cada fim há o milagre de um começo. Hoje as lágrimas lavam e rabiscam as sombras de flores em meu rosto. Hoje minha dor é promessa… é caminho de outro dia…
Amanhã Camila, iremos ver a festa dos céus e dos balões… as asas coloridas à procura do azul… à procura da esperança…
Francisca Vilas Boas
(Extraído da plaquete “Cadernos 20: míni-contos”), 1969
Ainda que textos narrativos breves venham sendo elaborados desde a Antiguidade, o reconhecimento do miniconto como gênero autônomo é bastante recente. Os primeiros estudos críticos no Brasil orbitam a virada do século XXI, quando se consolida uma produção constante por parte de vários autores, e a antologia “Os cem menores contos brasileiros do século” (2004), organizada por Marcelino Freire, chama a atenção do público e dos acadêmicos para estes textos curtos, híbridos e de grande força expressiva. “Não é que não houvesse antes de nós, Kafka já usava textos bem curtinhos às vezes. Mas uma coisa é Kafka lá no país dele, e outra é o grupo no Estado de Minas Gerais”, reflete Francisca. E ainda que muitos literatos brasileiros tenham flertado com o texto sintético – Machado de Assis, Raul Pompeia, Oswald de Andrade, Clarice Lispector -, não se tem notícia de um grupo que tenha trabalhado uma prosa tão radicalmente curta como um projeto estético consciente como o fez o Grupo de Guaxupé. E muito menos quem antes deles tenha batizado essa forma brevíssima de miniconto.
Uma certa melancolia
Entrando na faculdade em meados dos anos 1960, Francisca começou a publicar seus contos a partir do terceiro período, influenciada por Sebastião Rezende e Elias José. “Eu acho que sempre tive uma certa melancolia, eu já escrevia. E com o fato de estar ali ligada a Elias, que era uma pessoa que já estava mais enfronhada com a literatura, preparava o primeiro livro dele, eu fui escrevendo, e eles, me estimulando.” Se compartilhavam os mesmos gostos? “Não sei se as leituras eram as mesmas. Eu era um pouco esquisita para eles. O fato de gostar de Kafka, por exemplo… só eu. Você vai rir de mim, mas teve uma época que eu trabalhei na Secretaria de Educação aqui (no Rio) e fui enviada à Europa, se não me engano em 1984, com outros representantes da América Latina, e, na primeira oportunidade que tive, tratei de ir conhecer Praga, onde Kafka nasceu, o local onde está enterrado, onde viveu. Você vê que tinha um afeto dentro de mim muito forte por aquela figura, a figura que eu conhecia através da autoria.”
o circo
Todos se surpreenderam com a chegada do homem barbudo que escreveu Circo em folhas grandes de papel e as colocou nos quatro cantos da sala. Mas a surpresa transformou-se em pânico quando os leões entraram e, sob o chicote do barbudo, acabaram com a festa.
Marina Colasanti
(Extraído do livro “Zooilógico”, 1975)
Francisca não está certa se o grupo, que reunia professores e estudantes da extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Guaxupé, refletia teoricamente sobre esse gênero nascedouro, mas identifica um certo porquê na busca consciente pela extrema brevidade. “A gente comentava sobre isso. O Sebastião tinha uma ideia de que o texto breve levava o leitor a ter curiosidade por aquele texto, por ser breve, e lia. Então tinha um objetivo, não é? E era bom escrever curto e publicar…”, afirma a escritora, como se o Grupo de Guaxupé antecipasse, em fins dos anos 1960, a urgência dos dias atuais, em que a facilidade de publicação instantânea leva autores, alguns experientes, outros aventureiros, a inundar o ambiente on-line com microtextos de valor por vezes questionável. Não foi o caso das publicações independentes de Francisca, Elias, Sebastião e Marco Antonio nos “Cadernos 20”, que foram bem recebidas pela crítica mineira à época, especialmente no jornal “O Estado de Minas”, embora pouco tenham avançado para além das Alterosas.
Reconhecimento
Francisca e Elias foram agraciados com a publicação de seus livros pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte. O primeiro de Elias José, “A mal-amada”, traz um capítulo denominado “míni-contos”. Francisca publicou dois volumes naquele período: “O sabor do humano” (1971) e “Roteiro de sustos” (1972). “Quando eu me separei, eu deixei tudo e vim para o Rio. Aqui eu tive que começar tudo de novo, e o grupo se desfez.” Em 2011, a autora voltou a publicar um livro, “A asa e o osso” (2011, poesia). Aposentada das funções de professora de literatura e português, e também do cargo de oficial de Justiça, de lá para cá vem se dedicando mais sistematicamente à literatura, lançando novos trabalhos com regularidade, alternando entre contos e poemas, sem, no entanto, retomar a escrita radicalmente concisa dos tempos de faculdade. O último, “A palavra e a ilusão” (2018), é formado por contos que têm em média de três a quatro páginas. Para este ano, prepara um novo livro de poesia. Elias José ganhou um Prêmio Jabuti em 1974 e depois se dedicou à literatura infanto-juvenil, publicando mais de uma centena de livros. Como Marco Antonio Oliveira e Sebastião Rezende, Elias José já é falecido, o que faz de Francisca a única remanescente do Grupo de Guaxupé.
Elementos de um conto
ITAORNA. Pedra Podre. A primeira usina nuclear brasileira ergue suas linhas na praia. O reator fica a 300 metros da estrada Rio-Santos. O mar, os viajantes, o urânio, o futuro. Por que o índio deu esse nome ao lugar?
Em Itaorna um conto está sendo elaborado, mas contista nenhum é capaz de prever-lhe o desfecho.
Carlos Drummond de Andrade
(Extraído do livro “Contos plausíveis”, 1981)
“Éramos amigos ali dentro, fazíamos um grupo muito estreitamente ligado a esses interesses de ler, escrever e dar aulas. Eu dei aulas, o Elias foi professor, o Sebastião era professor. O Sebastião era de família humilde e foi estudar em seminário quando jovem, o que lhe deu uma bagagem intelectual muito grande”, lembra Francisca, dando a entender que Rezende era algo como um mentor intelectual do grupo. É ele quem dá, inclusive, no segundo número dos “Cadernos 20”, a primeira definição de miniconto de que a crítica brasileira tem registro. “Quando estávamos lá, a gente lia, discutia, gostava de escrever e publicar. Inclusive em jornais. Eu tenho guardadas algumas publicações, tanto no jornal de Belo Horizonte (“O Estado de Minas”) quanto no jornal de Guaxupé. Tudo textos bem breves”, afirma Francisca enquanto pega uma escada para alcançar todas essas memórias registradas em papéis envelhecidos e bem conservados no alto de uma imensa estante de livros que bordeja o escritório onde conversamos.
O velho em agonia, no último gemido para a fiha:
– Lá no caixão…
– Sim, paizinho.
– … não deixe essa aí me beijar.
Dalton Trevisan
(Extraído do livro “Ah, é?”, 1994)
Uma forma breve que derrama significados
Ao mesmo tempo em que havia claramente um projeto estético de trabalhar dentro de limites de extrema brevidade, Francisca Vilas Boas sugere que boa parte desse ímpeto era intuitivo, um movimento natural, resultante de um grande amor pela literatura. Ela, particularmente fã de Kafka e Samuel Beckett, não duvida de que as leituras influenciaram no fazer de cada um. “Eu não gosto de responder pelas pessoas, mas por mim eu posso. E era muito gostoso você refletir sobre essas coisas da literatura. Ler para mim era um mundo. Falava-se muito da literatura do absurdo, da literatura mágica, do realismo mágico. No meu caso, eu adorava esses autores. Também Borges, Cortázar, eu tenho os livros deles aqui. Isso fez parte da minha vida. Gosto de deformar a realidade, porque eu acho que a realidade é deformante. Eu achava esse lado oculto – duas vezes, porque a literatura é uma linguagem que cobre e encobre – muitíssimo interessante, caminhar pelas sombras e ir vendo o quanto de realismo tinha ali.”
livre-iniciativa
Claudia e Ivonne faziam ponto na Oranienburgerstrasse, então tiveram uma grande ideia. E como todos que têm iniciativa e boas ideias na Alemanha Unificada têm todo o apoio do sistema bancário, puderam pôr tudo em prática. Agora elas trabalham em seu próprio lava-rápido, sem cafetões russos pra ficar com 40% do que ganham. Lavam os carros peladas, esfregando as coxas e peitos na lataria, com uma esponja no lugar dos pentelhos e detergente num coldre de plástico. Estraga um pouco a pele, mas pelo menos não entram mais em contato com a saliva nojenta desses babacas.
Fernando Bonassi
(Extraído do livro “Passaporte”, 2001)
Francisca Vilas Boas acredita que a literatura faz-se em lacunas. “A literatura não pode ser o enunciado de um teorema. Ela é cheia de vácuos, vazios, vai transbordando ali com outras imbricações, com outros sentidos. O miniconto é uma forma breve e que derrama significados. Quando você tenta abreviar uma coisa que está na sua cabeça e coloca em forma de conto, você deixa ali, naquelas palavras, a possibilidade de que elas transbordem em outros sentidos também. A literatura é isso. A literatura não é uma linguagem apenas denotativa, pelo contrário, ela é fecundada com as várias significações, com a conotação que você pode buscar ali dentro e ver.”
Em defesa dos frascos & dos comprimidos
Apesar de todo o vigor e positividade no olhar e nos gestos, vez ou outra Francisca Vilas Boas deixa transparecer uma pontinha de mágoa sobre a falta de reconhecimento do Grupo de Guaxupé, que, aos poucos, vem sendo reparada. Um marco nesse resgate é o livro de ensaios do jornalista e professor Márcio Almeida, “A minifiçção do Brasil – em defesa dos frascos & dos comprimidos” (2010), que contém um verdadeiro manifesto, fartamente documentado, a favor dos escritores do Grupo de Guaxupé como fundadores do miniconto brasileiro. Os efeitos da pesquisa de Almeida já começam a ser percebidos pela própria Francisca. “As pessoas com as quais eu debati essa questão concordaram, o miniconto nasceu realmente em Guaxupé. O Dalton Trevisan foi usado por outros críticos (como se fora fundador do gênero em 1994), mas em termos de data, isso não coincide. Em termos de data é a dos anos de 1960.” Aí vem aquela pontinha de melancolia, disfarçada em um cativante e irônico sorriso: “Mesmo que provem, eles devem achar que não tem validade. O brasileiro é um pouco diferente.”
No barquinho, Roldão Macário ajudou os mergulhadores no mapeamento do fundo da represa, alagada fazia vinte anos. Orientava-se pelo sol e pelos cumes secos dos morros. Lá a igreja, ali os currais, rua de cima, rua de baixo, tudo casa de peixe agora. Em retribuição e de farra, os bombeiros lhe deram uma aula de mergulho. “Um batismo”, eles disseram, sem saber a extrema-unção: na primeira chance que teve, mão no equipamento, Roldão desceu 30 metros até o cemitério, se amarrou ao túmulo de Auxiliadora, apagou a lanterna e ficou lá na escuridão, esperando o ar acabar.
Que nunca fora homem de quebrar promessa.
Wendell Guiducci
(Extraído do livro “Curto & Osso”, 2016)