“Comecei a sentir no meu corpo, no meu choro, que acontecia alguma coisa diferente quando o feminino me era apresentado por mulheres e artistas muito profundas ao discutir a existência feminina”, relata a escritora Júlia Medeiros. A existência feminina, pontua ela, sempre foi estereotipada, idealizada, hierarquizada. “Muitas vezes a gente nem percebia que estava existindo a partir do olhar ou do desejo alheio.” Júlia, então, destaca a urgência de as mulheres assumirem-se enquanto sujeitos, não apenas como “objetos de desejo, idealização, e, sobretudo, de interesses mercadológicos e capitalistas alheios”. A vencedora da categoria melhor livro infantil do Prêmio Jabuti de 2019 com o título “A avó amarela” (ÔZé Editora, 26 páginas) reunirá, até 25 de junho, na mostra “Elas”, 17 artistas mulheres que contam histórias de outras mulheres reais. Das terças às sextas-feiras, ela mediará diariamente conversas no YouTube com duas artistas por vez. O trabalho é financiado com recursos do edital estadual da Lei Aldir Blanc.
Questionada sobre o que seriam “mulheres reais”, Júlia aponta que, em primeira instância, são mulheres que não são criadas pela ficção, como a Julieta de William Shakespeare ou a Capitu de Machado de Assis. “São mulheres que existem na vida real, digamos assim. Mas acho também que são mulheres não submetidas à idealização, que estão, de alguma forma, questionando a idealização, os estereótipos e buscando existir de uma forma própria, autêntica e mais condizente com a realidade mesmo. Porque a realidade é que nós somos diversas. Esta sempre foi a realidade.” Entretanto, a também atriz e dramaturga pondera que não existe apenas uma definição para mulheres reais. “Acho que pode ser uma pergunta para as mesas (da mostra ‘Elas’). Vai existir uma resposta para cada mulher. Isso é o que eu acho importante, ou seja, a oportunidade de cada mulher conceber a própria realidade.”
Conforme Júlia, a mulher sempre ocupou um lugar de “protagonismo” na arte, mas não enquanto sujeito histórico. “A gente entra em museus e as mulheres estão em todas as paredes. As mulheres são as protagonistas de grandes romances. Só que a mulher sempre foi uma figura representada, alçada à condição de musa, isto é, um protagonismo em que a mulher é fruto do interesse da idealização do outro. Isso forma um imaginário do que é ser mulher, do que é o feminino.” Ela destaca que tal idealização é representada no corpo, na sensualidade, na nudez, em um contexto em que a beleza é completamente padronizada. “É como se a gente tivesse recebido ao longo da nossa construção simbólica apenas uma maneira de ser mulher. E todas as mulheres que não participam deste modelo são marginalizadas, apagadas, não estão no centro das histórias ou das telas.”
A mostra “Elas” traz ao centro das discussões histórias de mulheres reais sem “atravessadores”, ou seja, justamente aquele olhar ou desejo alheio. “Quando falamos de um atravessamento masculino, estamos falando de um poder hegemônico histórico acachapante”, afirma. “Não é que os homens não possam escrever sobre mulheres. A arte precisa preservar esse lugar de liberdade, imaginação e subversão até, digamos assim. Mas a gente precisa ter esses depoimentos sem atravessadores.” Não só por motivos coletivos, políticos, mas também por outros mais sutis, como apresentar outras subjetividades. É verdade que já há gerações de mulheres que assumiram e representam o feminino, pondera Júlia. “Mas há um volume maior agora. Isso tudo tem me ajudado muito a perceber lugares em mim e ao longo da minha história, da minha formação como brasileira, humana, espécie, que eu não desconfiava.”
‘A nossa composição está manca’
“Elas” começa já nesta terça-feira (15), às 20h. A mesa de abertura reunirá a dramaturga, diretora e atriz Renata Carvalho, além da artista visual Renata Felinto. “Vamos discutir, por exemplo, a videoperformance chamada ‘Trindade’, criada pela Renata Felinto”, pontua Júlia, não só idealizadora, mas curadora da mostra. “São três vídeos sobre mulheres do Cariri que foram apagadas ou esquecidas de alguma maneira. Dizem que o milagre da hóstia de Juazeiro foi, na verdade, dela, mas foi atribuído ao Padre Cícero. É claro que a gente está mexendo com algo muito grandioso, muito poderoso quando a gente fala disso. Como levantamos a voz contra um personagem que ficou registrado na história como um santo? Que promoveu muita bondade? É muito difícil, muito difícil.” Não só mulheres precisam ouvir outras mulheres, mas os homens também, aponta a escritora. “Se a gente fala que somos fruto da linguagem e que as mulheres não participaram da criação dela com a intensidade que os homens puderam participar, estamos dizendo que a nossa composição está manca. Que a minha composição está frágil. As mulheres precisam produzir linguagem própria.”
Assim como em “Trindade”, o teor de denúncia está presente em boa parte das obras da programação da mostra, o que, para Júlia, é apenas mais uma evidência do apagamento histórico das mulheres. “Há obras denunciando feminicídio, estupro, perseguição a travestis, racismo… sabemos que tudo isso existe. Por que está sendo denunciado se a gente está cansado de saber que isso existe? A diferença é ser dito pela vítima histórica, por quem sofreu isso o tempo inteiro.” Contudo, reunir obras com caráter denuncioso não era uma premissa da curadoria. “Isso realmente tem sido uma tônica das obras de mulheres que contam histórias de outras mulheres reais. Não é apenas um desejo de denunciar e ser ouvida, mas de que pare. Mesmo. Não é uma denúncia por denúncia, mas um pedido de basta. Não queremos fazer essas denúncias para sempre, muito pelo contrário. Queremos que pare.” A programação completa por ser acessada neste endereço.