Santos Dumont viajava, estava longe de seu berço, mas, para se comunicar com a vida do interior mineiro, ele se valia de cartas. Muitas delas com instruções ao caseiro João, a quem cabia cuidar da casa de Cabangu. Era o início do século XX. “Não posso ir ahi amanhã. Mando junto com esta uma ordem de pagamento a você os 195 mais 200 do mantimento. Já dei ordem ao Boeke para pagar o José Ferreira. Já prepararam o terreno para o pomar? Que tempo esta fazendo ahi?”, indagou o pai da aviação. Naquele junho de 1920, as terras iam bem, mesmo que, depois, não tenham vivido períodos de prosperidade. Ingrato, o tempo não reservou um presente opulento para a fazenda, elevada a Museu Casa Natal de Santos Dumont, em 1973, ano do centenário de seu nascimento.
Quase cem anos depois do distante 1920, a Fundação Cabangu, à frente do valioso acervo do aviador, também recorre às epístolas. Desta vez, para clamar por ajuda de amigos que possam colaborar, financeiramente, para manter a instituição aberta. Enquanto uma exposição temporária sobre o pai da aviação atrai as atenções do país para o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, a velha Cabangu, responsável por uma coleção de valor incalculável, vive às mínguas e pede socorro para não ser fechada.
Quando eu e o repórter fotográfico Fernando Priamo deixamos Juiz de Fora, na última terça-feira, rumo a Santos Dumont, cidade um dia chamada Palmyra, já sabíamos que Cabangu estava deteriorada. Cruzamos a linha férrea, e a primeira triste constatação foi a de que o museu, outrora principal ponto de visitação de quem passava pela região, não tinha sequer um visitante. Dias antes, o boato que corria pela cidade era de que o lugar cerraria as portas em 1º de maio de 2016. “Adiamos para ver como vai ser este ano”, dispara Mônica Castello-Branco, coordenadora da fundação, apresentando, com bastante realismo, o triste cenário que se formou devido à carência de recursos.
Por meio de uma parceria firmada em 1973, data da abertura do museu, ficou acordado que a proteção do acervo e dos prédios ficaria a cargo da fundação; À Aeronáutica, proprietária do parque e representada pela Epcar (Escola Preparatória de Cadetes do Ar), ficaria a incumbência de zelar pela manutenção e segurança do local. Já, à prefeitura, caberia garantir o pagamento dos quatro funcionários que lá trabalham. Ainda que não seja possível dizer que tenha havido um momento próspero para o espaço, a situação se agravou, muito, nos últimos meses.
“Para não sobrecarregar a folha de pagamento da prefeitura, a administração faz um repasse de verba mensal para nós. Mas as prefeituras estão falidas, as forças armadas também estão sofrendo com a recessão nacional. Por isso, ficamos sem o repasse do dinheiro durante boa parte de 2015. Recebemos a última parcela ontem (dia 9). Está faltando dezembro e o 13º. Chegamos a anunciar que fecharíamos não para o tratamento da coleção, mas para a visitação.
Só não fizemos isso pelo sofrimento de ver o museu fechado e porque tínhamos agendas já previstas”, afirma Mônica, confidenciado que, durante esse tempo, foi tentando driblar as dificuldades com o pouco que é arrecadado com os R$ 2 da portaria de sábado e domingo, mais o montante levantado com as lembrancinhas comercializadas no parque.
“Usamos o dinheiro para fazer vales para os funcionários, mas até a venda caiu muito. Se antes conseguíamos cento e poucos reais no fim de semana, agora, não chegamos a R$ 50”, lamenta ela. O problema é que, com o atraso no recebimento, como que num efeito cascata, a fundação não conseguiu arcar com as obrigações sociais dos empregados, deixando todo o 2015, além de quatro meses de 2016, em atraso.
Mônica diz que vai “gritar” para manter a instituição, fundada por seu pai, Oswaldo Henrique Castello-Branco, aberta. “Tomei a iniciativa de escrever a amigos pedindo uma colaboração e estou aguardando o retorno”, comenta a coordenadora, questionada por nós sobre a possibilidade de uma parceria com a iniciativa privada. “Na próxima semana, vamos começar um trabalho de solicitar doações de empresas de Santos Dumont e de outras cidades. Vamos dar a elas o título de colaboradora benemérita do museu.”
Sem reconhecimento nacional
Enquanto a exposição “O poeta voador”, em cartaz no ano das comemorações dos 110 anos do voo do 14-bis, tem recebido milhares de visitantes, desde 26 de abril, no Museu do Amanhã (RJ), a frequência em Cabangu é de, aproximadamente, mil pessoas por mês, de acordo com Mônica Castello-Branco. “Santos Dumont é um vulto nacional e internacional, e o Brasil precisa pensar nisso. Em se tratando de documentação e de história, Cabangu é o melhor, mas não tem apoio”, brada a coordenadora, que não economiza nos motivos que deveriam assegurar a atenção do Poder Público e da sociedade como um todo para a fazenda do aviador. “O mundo inteiro conhece Santos Dumont como aeronauta. Aqui tem a história de Santos Dumont homem, de vivência com os vizinhos e com o empregado.”
Mônica nos conduz até a reserva técnica, onde estão preciosidades, entre cartas originais escritas por Santos Dumont, documentos pessoais, livros raros e um diploma, pintado à mão, que o pai da aviação recebeu de amigos residentes em Buenos Aires, em 1922. Sobre a mesa, um antigo álbum de fotografia, já de folhas amareladas, desperta a curiosidade dos visitantes para as condições de conservação do acervo. Perto dali, uma sala ainda abriga as cinzas da decana mundial da aviação feminina, Anésia Pinheiro Machado, morta em 10 de junho de 1999. “Vamos limpando a coleção, guardando direitinho, caminhando do jeito que dá. Sem verba”, assevera ela, comemorando a conquista, em 2006, daquele prédio em que estávamos, composto por uma sala com controle de temperatura.
Do lado de fora, não existe mais a praça de alimentação, desde que o responsável por explorar o espaço morreu. A área de lazer, deteriorada, também não pode mais ser usada, e os três pavilhões, construídos em madeira para abrigar exposições, estão condenados.
“Por ser uma instituição museológica, não consigo fazer qualquer projeto ali se não tiver um plano museológico. Esse plano foi feito. No decorrer do ano passado, a prefeitura custeou a vinda de funcionários da empresa Fato Museal, de Belo Horizonte, em parceria com a fundação, e elaboramos o documento. Dentre as várias ações previstas, está a sustentabilidade da instituição. Claro que a prefeitura vai continuar fazendo os repasses”, assevera Bruno Campos Guilarducci, chefe da Divisão de Turismo da Prefeitura de Santos Dumont.
“Essa é a primeira fase. Houve atraso no pagamento por conta da crise, mas repassamos, nesta semana, uma quantia que deu para acertar as pendências. Até julho, será quitado o que ficou”, completa. Conforme Guilarducci, está pronto um projeto arquitetônico que prevê ou a restauração ou a demolição e construção de novos pavilhões. Ele diz que o plano será apresentado, em breve, ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG) e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O próximo passo é começar a tentar a Lei Rouanet para a execução das obras. “Temos que ter a aprovação dos órgãos.”
Guilarducci ainda garante que já está certo que a prefeitura irá realizar, em parceria com a Epcar, a revitalização da área de alimentação e que a expectativa é de que a exposição permanente seja repaginada. A fim de garantir o sustento do museu, também está nos planos ceder Cabangu para eventos, como festa de casamentos e aniversários. “Cada providência a seu tempo. Temos o risco de queda de duas árvores, e o barranco está cedendo. Antes, temos quer resolver isso. Cabangu é o nosso principal produto turístico, histórico e cultural, e é fundamental para a memória coletiva do país.”