
A sabedoria oriental envolve, sobretudo, a valorização do intangível, do que é invisível aos olhos e, portanto, essencial. A máxima, por sua vez, anda acompanhada da serenidade, transmitida mesmo que em silêncio por Lu Wen Piao e Juan Pao Hsien. Há 18 anos, o casal saiu de sua Kaohsiung natal, “a segunda capital de Taiwan, ao sul do país”, carregando na mala uma “bandeira verde”. “Moramos em São Paulo por seis meses. Tínhamos um casal amigo, que trabalhava no interior paulista e nos chamou. Juiz de Fora é bem mais tranquila. Viemos para o Brasil com um só objetivo: divulgar o vegetarianismo”, sorri Juan Pao Hsien, 53 anos, que adotou, no convívio social, o nome Fátima, enquanto o marido, 54, escolheu se chamar Peter. “Para ele foi Deus quem mandou. A primeira ideia era o Canadá, mas não deu certo”, traduz a esposa, autora de uma receita que em muito explica o sentimento que ela transmite.
“Quando tínhamos a loja na Avenida dos Andradas, havia uma freguesa chamada Clara, que todos os dias aparecia. Um dia ela me falou que havia feito um exame e o colesterol estava alto. Disse que o médico pediu para cortar alguns alimentos, e ela não poderia ir à lanchonete mais. Fiquei triste, porque naquela época já não tínhamos movimento, e perder mais uma cliente deixava a situação bem difícil. Na hora em que ia agradecer tive um pensamento para ajudá-la. Fiz suco de laranja com couve, e ela tomou. No dia seguinte, voltou. Aí fiz o suco durante a semana toda. ‘Não é só bom para a saúde. É feito com amor’, disse para ela. Depois de uma semana, repetiu o exame, e a taxa tinha caído. Continuou a almoçar, então. Mas quando fui oferecer para ela, meu marido disse que se era bom para aquela freguesa era bom para todo mundo”, recorda-se Fátima.
“Então vamos fazer para todo mundo! Vai aumentar nosso gasto!”, conta a mulher. “Ele pediu para pensar num jeito, e resolvi trocar a laranja pelo limão e colocar o hortelã e o abacaxi para dar sabor. Oh! Muito sucesso!”, orgulha-se a taiwanesa, que em média oferece 40 litros do líquido, gratuitamente, para os clientes do restaurante que a família comanda, hoje na Rua Benjamin Constant. Rapidamente, o suco ganhou outros self-services, por sugestão de Fátima, e tornou-se regra para os estabelecimentos de comida vegetariana na cidade. Generosidade oriental.
Ocidente
Filha de um pescador, Juan Pao Hsien cresceu alimentando-se dos animais e frutos marinhos. Aos 23, conheceu Lu Wen Piao, cuja família alimenta-se, apenas, de vegetais. “A família dele me ensinou que o sentimento das carnes e dos vegetais está no paladar. Quando passa daqui (aponta para a garganta), é tudo a mesma coisa. A saudade é só do sabor, da textura”, diz. “Em Taiwan tem pessoas que ainda comem carne, mas é mais comum ser vegetariano. Aos 24, também me tornei. Não sei, mas acho que foi Deus quem mandou. Antes de ganhar meus filhos, engravidei duas vezes, e o neném não ficava, morria. Não sei porque, mas um ano depois que virei vegetariana ganhei Lu Tai Yi”, fala, apontando para o filho mais velho, que escolheu ser chamado, no Brasil, por Paulo e chegou aos 10. O casal ainda tem outros dois filhos, Lu Tai Hsin (Júlio) e Lu Chia Yu (Talita). Em Taiwan, a esposa era secretária escolar. “Eu trabalhava em escola. Tinham 3.400 alunos, que estudam o dia inteiro. De manhã estudam o idioma, à tarde, esportes e artes. Eles entram às 7h30 e saem às 16h e, depois, vão para o cursinho até 18h30. Quando chegam em casa, não têm mais energia para fazer bagunça”, conta a mulher. Já Peter trabalhava vendendo instrumentos musicais, com o irmão, que hoje vive no Canadá. Como era a vida lá? Juan Pao Hsien ri e responde: “Bem melhor. Vou falar um exemplo: meu filho, depois que terminou a faculdade aqui, em fevereiro, foi para Taiwan aprender o mandarim. Em junho ele volta. Ontem liguei para ele e perguntei se estava contente, porque falta só mais um mês para voltar. Ele falou que não sabe.” Há um poder de sedução no lado de lá, acredita a família. “O comércio funciona o dia inteiro, não é como aqui que um restaurante vegetariano perde o movimento em certo horário”, comenta o filho Lu Tai Yi, antes de o pai apontar para o céu. “Em Taiwan tem muita poluição. Só fico três semanas, não consigo continuar. A indústria é pesada”, pontua a matriarca, que hoje mora no Bairro Aeroporto, diante de uma floresta, lugar onde devem estar os bichos, não nas mesas. Cuidado oriental.
Meridiano de Greenwich
Durante cinco anos, desde que chegaram, Lu Wen Piao e Juan Pao Hsien não trabalharam. Empenharam-se em aprender o português. “Lá em casa a gente fala nosso idioma. Mas durante alguns anos uma amiga me ensinou português de graça. Quando ia à aula, preparava uma bandeja de trouxinhas”, conta a mulher, mais confortável com a língua que o marido, e com menos destreza que os filhos, cuja vida escolar e universitária foi quase toda desenvolvida em solo brasileiro. “Saí de lá quando tinha 10 anos. Ainda me lembro. Meu irmão já não se recorda. E agora está tendo a experiência do reencontro”, diz Paulo, hoje um estatístico que trabalha no restaurante, irmão de Talita, que cursa artes, e de Júlio, graduado em nutrição. Entre lá e cá, a família possui dois solos. “Há 18 anos Taiwan era fácil de tudo, mas hoje a economia caiu bem. Além disso, a situação entre Taiwan e a China não é boa. Há muito tempo a China já preparou bombas. Agradecemos por estar aqui”, lamenta ela, justificando o desejo de manterem-se no Brasil, onde esperam aposentar para criar os netos. Onde, também, ainda vivem algumas resistências. “O pensamento dos brasileiros é um pouco diferente. Para nós, na vida de uma mulher há só um homem, e, na de um homem, só uma mulher. Ruins ou bons. A gente tem que se mudar, não forçar o outro a mudar”, critica Fátima, certa de que diferenças fazem parte, também, de um contrato social. Conviver é partilhar, acreditam. E por isso Peter estende a mão a todos os que escolhem seu estabelecimento. “Há um respeito, porque dentro de todas as pessoas tem um pequeno Deus”, explica ele. Religião, a família não tem, mas estudam os sutras (do budismo), a bíblia e a filosofia. Flexibilidade e equilíbrio orientais.
Oriente
Para sair da zona de conforto – aprendemos desde sempre – é preciso um tanto de coragem e outro tanto de força. Fátima, Peter e os filhos perseveraram diante da impaciência e intolerância que encontraram no Ocidente. “Quando começamos, encontramos dificuldades. Pensamos numa lanchonete, que seria mais fácil para nós. Alugamos uma loja bem pequena na Avenida dos Andradas, mas lanchonete para vegetariano não funciona, porque fritura não dá. Uma amiga de Taiwan veio me visitar e me ajudou a virar self-service. Ficamos lá por um ano, mas era muito pequeno e quando chovia a água entrava no lugar”, lembra Fátima. Diante do aumento no aluguel e humilhados pelo antigo locador, que se recusou a dialogar, o casal saiu, em 2004, do endereço e encontrou a nova loja, na Benjamin Constant. “Deus quem manda”, diz, enfática, a mulher, que até 2015 viveu na mesma casa que as outras quatro famílias taiwanesas que desembarcaram em Juiz de Fora para defender um vegetarianismo expresso em cinco restaurantes orientais. “Lá não nos conhecíamos. Fomos nos conhecer em São Paulo e viemos juntos. Moramos juntos por quase 15 anos”, conta Fátima, que sempre se dispôs a ajudar os colegas do ramo, inclusive oferecendo sua própria cozinheira para alavancar outros estabelecimentos. “Tem mercado para todo mundo”, afirma ela, que “em Taiwan, que tem menos saladas, não cozinhava, só comprava fora”. Em seu projeto contra o sofrimento dos animais, o casal teve a ajuda dos próprios clientes. “De vez em quando eles trazem receitas para fazermos. Os fregueses são de casa. Os funcionários também ensinam muito. Pegam uma receita com carne e substituem pela soja. O mais importante é fazer por amor”, entoa a mulher que descobriu, em Juiz de Fora, a generosidade ocidental.