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Régua (russa) e compassos

Aos 11 anos, Julia Lamas se mudou esse ano com a família para integrar a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil
Aos 11 anos, Julia Lamas se mudou esse ano com a família para integrar a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil
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Dentro do carro, com o porta-malas repleto de roupas e pequenos objetos, estavam a mãe, o pai e Julia Lamas da Conceição, com seus 11 anos e os três cachorros de estimação. Numa viagem que durou mais das 9h de sábado às 17h de domingo, num quente janeiro, a família viu Minas Gerais ficar para trás na estrada e cruzou São Paulo e Paraná. Percorreram 1.035km. “Bem-vindo à cidade das flores”, dizia a placa indicando a entrada de Joinville, ao Norte de Santa Catarina. “Foi divertido vir com todo mundo junto no carro”, recorda-se a pequena, o grande motivo para que os seis mudassem radicalmente suas rotinas. Aluna da primeira série da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, a juiz-forana é uma das mais novas bailarinas da instituição russa, cuja primeira sede fora de seu país original foi construída no Brasil, na cidade onde Julia está instalada, estudando o sexto ano na Associação Educacional Luterana Bom Jesus, e seus pais trabalhando.

Ao longo das manhãs dos últimos três meses, a ex-aluna do Colégio dos Jesuítas dedica quatro horas ao ensino do Bolshoi. Já fez exercícios na barra e agora começou atividades de lado para a barra. Na rotina apertada a saudade de Juiz de Fora só é acionada quando os antigos amigos e os parentes são recordados. A sapatilha, calçada pela primeira vez aos 4 anos, vale mais. “Meu sonho é dançar e também ser bióloga marinha”, diz ela, toda tímida, por telefone.

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Quando a pequena foi convidada, num curso em Belo Horizonte, para as audições da escola catarinense, os pais de Julia perceberam que o balé poderia ocupar um espaço ainda maior em suas vidas. “Resolvemos apoiá-la como pais e nos preparamos para a possibilidade do sim e para esta mudança tão radical em nossas vidas. Não é uma decisão fácil a ser tomada pelos pais, por se tratar de uma criança de apenas 11 anos que tem poucas certezas da vida e um horizonte de possibilidades pela frente. Mas o amor da Julia pela dança serviu como uma bússola para nós”, diz o pai, Marco Zuchi, um professor universitário que aceitou o novo emprego de representante comercial de uma empresa juiz-forana em Santa Catarina para, nas palavras da filha, “começar tudinho de novo”.

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Na outra ponta da escola – que oferece alimentação, material didático, transporte, uniformes e assistências psicológica, médica, fisioterápica e nutricional -, está o também juiz-forano Julio Soares, que como sua xará, entrou para o Bolshoi aos 11 e, agora, aos 18, prepara-se para a formatura em dezembro próximo. Começou tudinho de novo e hoje desfruta do doce sabor da superação.

No mesmo ano em que conheceu a dança, o jovem foi aprovado nas concorridas audições da escola. Seu desejo era dedicar-se ao street dance, mas na Allegro Espaço de Dança, no Bairro São Mateus, só havia turma para a modalidade clássica, pela qual ele logo afeiçoou-se. A professora Myrian Mockdece identificou um genuíno talento. E as portas se abriram  para Julio. Mas faltava-lhe o básico.

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Na edição de 28 de janeiro de 2011, a Tribuna noticiava a ameaça pela falta de recursos. A mãe Maria Lúcia Soares dizia não ter, sequer, o valor da passagem para Santa Catarina. Ainda assim, Julio afirmava: “Quero sair de lá pronto para dançar fora do Brasil”. Há poucos meses da saída, a frase é a mesma: “Sonho em ir para uma companhia fora do Brasil e conseguir um cargo alto como solista ou primeiro bailarino”. Segundo o antigo morador do Bairro Santa Cecília, ainda não há nada concreto, “apenas medos e esperanças”.

“Acho a profissão do bailarino linda. Porém, tem que ter foco, paixão, determinação, disciplina e amar muito, porque a dança exige muito de quem a escolhe. Tenho que aplaudir a escolha do meu filho lindo. Amo muito meus filhos”, emociona-se a mulher que abandonou sua Juiz de Fora natal e, após um ano longe do filho, seguiu com a outra filha, Giulia, para refazer a vida em Joinville. “Não pretendo voltar. Tenho amor pela cidade, pelas pessoas, fiz muitas amizades, agradeço pelo apoio que recebi durante os 18 anos que morei em Juiz de Fora. Mas agora é vida que segue”, diz Maria Lúcia.

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Entrevistado pela Tribuna aos 11 anos, quando foi para o Bolshoi, Julio venceu desafios e preconceito

Julio e Júlias
Os dias no agigantado complexo de 6.000m² passam ligeiros. Os 231 alunos – dentre eles três juiz-foranos, um Julio e duas Júlias – não aprendem apenas as danças, mas o que é físico e o que é intelectual. Além de danças contemporânea, brasileiras, a caráter e histórica, eles tomam contato com a literatura musical, repertório do balé, teatro e piano. Apuram o corpo e os ouvidos. “Aprendi e aprendo muito. Tive contato com técnicas que nenhum outro lugar dá conta de ensinar. Aprendi a me portar dentro e fora do país, dentro e fora do palco. Se eu não viesse para o Bolshoi, não teria as mesmas qualidades que tenho hoje. Aprendi as diversas danças e também a ser um bailarino”, diz o menino cuja adolescência foi quase integralmente vivida nos corredores do prédio em Joinville.

Determinação
O que representa ser um bailarino, então, Julio? “Ser um bailarino requer muito esforço e muita cabeça. É muito difícil. Por muitas vezes, o bailarino pensa em desistir, mas o amor é maior”, responde ele, numa pronúncia exata e com a correção de um lorde. A escola, para ele, não lhe subtraiu o crescimento. “Foi muito melhor ter passado a adolescência trabalhando do que só estudando, sem ter feito mais nada. Eu soube aproveitar”, conta ele, que, na oitava série do Bolshoi, entra às 11h30, almoça, segue para a academia, depois para a fisioterapia, tem uma hora e meia de preparação e outra hora e meia de balé clássico, depois dueto, teoria musical, teoria da dança, aula de repertório e teatro. Quando sai, diferentemente dos dois primeiros anos, em que vivia na casa de uma “mãe social”, ele encontra a própria família.

Cursando a sexta série do Bolshoi, aos 17, a juiz-forana Júlia Abrahão Lopes mantém-se, desde que passou nas audições, em 2015, vivendo com uma “mãe social”. Acostumou-se a não dormir e acordar ao lado dos pais e dos dois irmãos por conta de uma paixão iniciada em seu segundo ano de vida. “Entrei no balé aos 2 anos. Sempre fui apaixonada. Fazia em frente a minha casa, no Alto dos Passos, e depois fui para o In Dança, da Letícia Sabino, com o desejo de ser profissional. Conheci Joinville pelo festival de dança que existe aqui. Minha mãe fez minha inscrição para o Bolshoi, e eu comecei a assistir vídeos, conhecendo o estilo deles e me aprofundando para as audições”, recorda-se ela, que, no último dia 29, apresentou-se no Beto Carrero, parque próximo à escola. Kitri, de “Dom Quixote” e Aurora, de “A Bela Adormecida”, contudo, continuam no campo dos desejos. “É meu sonho fazer esses papéis.

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Cursando a sexta série do Bolshoi, Júlia Lopes, 17 anos, vive, longe da família, com uma “mãe social” em Joinville

Montanha-russa
O corpo esguio, a leveza do andar, os gestos seguros representam presenças nos programas que transcendem o universo artístico. Imperativo para os 67 funcionários e 13 bailarinos-professores da instituição é o fato de a experiência do balé se entrelaçar à vivência, na maioria das vezes, longe de casa, em outra cultura. “Aqui aprendemos de tudo, e vale para a vida inteira, como cidadã e como profissional”, aponta a entusiasmada Júlia Lopes, referindo-se às noções de disciplina, respeito, dedicação e perseverança tão presentes na escola quanto as sapatilhas. Régua russa usada em casa brasileira.

Para Marco Zuchi, pai da novata Julia Lamas, o rigor presente no ensino é parte, também, da própria atmosfera da cidade, que tem a população e o clima bastante semelhantes a Juiz de Fora, apenas um ano mais velha que Joinville. “Santa Catarina sofre uma influência muito grande das colônias europeias (Alemanha, Polônia e Itália), e isto deve ser levado em consideração em nossos novos relacionamentos por aqui. Eles são bem mais reservados e formais do que o mineiro, mas, ao mesmo tempo, são pessoas muito solícitas. Busco respeitar essa característica, e devagar vamos construindo novas amizades”, comenta ele.

Se as relações de ensino e convivência mostram-se racionais, em cena deve prevalecer o bailado mais sentimental possível, aprendem todos os alunos. “Sinto que a bailarina e o bailarino têm que ter muitos sentimentos e não podem ser assim só nas salas, nos palcos, mas no dia a dia. Nosso corpo tem que se movimentar em todos os lugares para o balé”, completa a jovem, confirmando o que diz Cecília Cherem, a primeira juiz-forana a ingressar no Bolshoi brasileiro.

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“Foram ótimos os anos na escola, muito aprendizado, muitos contatos com bailarinos experientes e também com colegas de turma, que hoje são também ótimos bailarinos profissionais espalhados pelo mundo”, lembra Cecília, uma jovem de 25 anos, que hoje leciona no mesmo espaço que a motivou a tornar-se bailarina profissional, o Allegro, mesmo endereço inicial de Julio Soares, coordenado por Myriam Mockdece. Cecília também integra projetos sociais, como o Caraíva Viva, desenvolvido na cidade homônima, na Bahia, pelo bailarino Fabrício Donato. Ainda que não seja o foco da formação no Bolshoi, a educação é um dos lugares que o mercado reserva aos formados pela instituição. Júlia Lopes não descarta esse posto, mas espera encontrar seu espaço como bailarina de companhia.

Universo democrático
“O mercado está cada vez pior. As grandes companhias não estão tendo incentivo financeiro. São muitos os que se formam e pouquíssimos os que conseguem um lugar para trabalhar. Mas a vontade de dançar é o que os mantém no curso e no mercado”, pontua Myriam, com a experiência de 45 anos nas salas de ensaio, onde dissemina o método da Royal Academy of Dance, na qual é formada e da qual é tutora no Brasil. “Percebo quando o aluno tem o perfil do Bolshoi (prático) e quando tem do Royal (acadêmico)”, diz ela, dona de um dos faros mais potentes na cidade, já tendo aprovado três jovens para a escola catarinense. Myrian também percebe que a dança é um universo democrático em relação ao gênero, a despeito dos preconceitos. E por isso desenvolve em sua escola um projeto para incentivar a prática masculina, no qual Julio foi descoberto.

Preconceito
“O preconceito é grande, e o homem na dança precisa ter muita força, em todos os sentidos”, adverte a veterana. “É muito frustrante para um menino querer dançar e encontrar tantas barreiras”, acrescenta. Julio confirma. Não só sua condição social o desfavorecia, mas o próprio gênero, que fez parte da família lhe virar o rosto. “Em Juiz de Fora, eu sofria preconceito porque o povo não entendia a cultura da dança. Em Joinville, toda a população se acostumou com o Bolshoi e aceita ver um bailarino no ônibus com o uniforme sem fazer piadinha. Aqui, nas escolas já existem muitos meninos que sonham em dançar profissionalmente”, comenta ele, jogando luzes para o principal fator que faz ele mesmo, Júlia Abrahão Lopes, Julia Lamas da Conceição e seus pais e seus três cachorros escolherem Joinville. É uma questão da química, que diz que algo só se torna substância a partir da reunião. É uma questão da física, sobre o reflexo no espelho. É uma questão de amar.

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