Há mais de um ano, Raiane Siqueira, 24 anos, a Dona Chapa, concilia a maternidade, os afazeres domésticos e a carreira de rapper. Como apenas o companheiro, João, está empregado, Dona Chapa ainda se vira para trazer uma renda complementar para a casa ao vender doces e trançar cabelos. “A minha filha nasceu há quatro meses. A partir deste momento, não pude me dedicar tanto à música. Hoje em dia, os artistas têm feito muitas transmissões ao vivo e outras coisas, mas eu não posso tirar dinheiro de dentro de casa para movimentar o meu trabalho. Na verdade, eu já não tenho esse dinheiro. Então, tirar das minhas economias para investir no meu sonho, mas ficar com fome, não dá.” Além de MC, ela integra os coletivos Las Manas e Makoomba.
Dona Chapa é uma das tantas da linha de frente do rap de Juiz de Fora em busca de conciliar a manutenção da carreira com a própria sobrevivência em meio à ansiedade diante das circunstâncias adversas. As restrições sanitárias invariavelmente suspenderam a principal fonte de renda das MCs independentes, os shows. Não fosse a pandemia, Dona Chapa conseguiria conciliar um pouco melhor maternidade e carreira, diz. “Se eu fosse para uma roda de rap, pegaria Helena e a levaria comigo em um carrinho ou canguru. Não tenho nenhum problema em amamentá-la em público. O problema é que as pessoas passam a agir diferente contigo depois que se torna mãe. Parece que é uma doença.” Quando Dona arranja um bico para trançar cabelos, por exemplo, sempre leva Helena. “As pessoas sabem que demora um pouco mais porque paro para amamentar. Cobro um preço mais barato justamente por isso.”
O desemprego e a ausência de auxílio financeiro são as maiores dificuldades de Dona Chapa atualmente. No entanto, ao menos há quatro anos, quando se lançou como rapper, ela busca conciliar a carreira com outras fontes de renda. “Cantar não me rendia o suficiente, mas já ajudava. É melhor do que nada.” A MC já trabalhou como confeiteira, operadora de telemarketing, vendedora em domicílio e com panfletagem. “Desde quando fui demitida de um emprego há quatro anos, vivo apenas do rap, dos meus doces e de bicos. Fui autônoma na maior parte do tempo.” Até mesmo nos próprios shows, Dona Chapa vendia doces. “As pessoas acham que eu não preciso de dinheiro pelo show. Já fui cantar lá na Zona do Norte com o dinheiro que eu tinha. Ia receber 20 conto, mas gastei 30.”
Entre os afazeres domésticos e os cuidados com Helena, Dona Chapa vira e mexe ainda tira um tempinho para dedicar à carreira. “Quando escrevo uma música, preciso de algo que me inspire. A minha filha tem me inspirado. Tanto que, depois que ela nasceu, todas as minhas músicas têm referência a ela. É como uma forma de resistência. Resistir a tudo e ainda ter forças para criar a minha filha.” O Makoomba também tem ajudado Dona Chapa no planejamento da carreira. “Vamos criar uma equipe para ajudar os artistas, como uma espécie de produtora, para nos ajudarmos nos nossos sonhos independentes.”
‘Não consigo escrever sobre a pandemia’
Joseane Brandão Costa, 23, a Jô Brandaum, antes mesmo do início da pandemia, já buscava um emprego formal. Até então, era a procura por uma renda extra, mas se tornou uma necessidade para financiar tanto o próprio sustento quanto o plano de carreira de rapper após deixar a casa dos pais, o que foi um divisor de águas. “Preciso investir tudo nisso. Estou tentando agarrar várias oportunidades. Até a questão de empregar as pessoas está um pouco mais lenta. Você se vê como artista… não que artista seja diferente, mas você seguia um curso, então tem que se desfazer de tudo o que planejava, pensava, para se enquadrar naquele modelinho, e sobreviver no meio disso tudo. É impossível a gente não surtar.”
Durante o período, Jô tem feito trabalhos freelancers como atriz de teatro, já que é formada em produção cênica, além de conduzir uma produção como stylist independente junto à namorada, a também rapper Tatá Dellon. Um brechó independente (o Uzi-Bamboo), mais ensaios fotográficos e produções artísticas. “Só que, querendo ou não, é como se fosse um trabalho freelancer. Fomos levando como podíamos. Quando vi que isso já não estava rolando, no final de 2020 intensifiquei a busca por um emprego formal.” Conciliar justamente os trabalhos como freelancers, mais a busca por um emprego formal e os afazeres, além da própria carreira, tem sido esgotante.
Além disso, a pandemia, conta Jô, agravou o estado de ansiedade. “A gente acaba ficando muito mais acelerado porque está parado (dentro de casa). Estar em movimento faz muita falta para mim. E, como rapper, posso dizer que a rua é muito essencial para o nosso trabalho, porque aprendemos tudo com a rua antes de escrever um rap, de pensar em um conceito, formar uma equipe.” A distância da rua, somada às demais circunstâncias, deixa o processo criativo mais difícil diante da ausência de inspiração. “Eu, particularmente, não consigo escrever sobre a pandemia, falar sobre o que estamos vivendo, e isso me assustou muito. De todos os assuntos que permearam a minha vivência até hoje, o único que não consegui falar sobre foi a pandemia. Acho que a gente tenta achar solução para tudo, mas às vezes simplesmente não tem.”
A saída que busca, relata, é escrever sobre o amor, coisas que a fortificam, como o rapper Emicida em “AmarElo” (2019). O próximo trabalho de Jô, a lyric vídeo “Dívidas”, sobre dívidas pessoais, como explica, a ser lançado entre março e abril, diz respeito à própria força da espiritualidade da rapper para vencer situações pelas quais passou. Em dezembro, ela há havia lançado o single “Fôlego”. O trabalho, no entanto, carrega resquícios do machismo que sofreu em um selo no qual trabalhou. “O machismo é tão doente que um homem é capaz de fazer amizade com uma mulher, trabalhar com ela, de vestir uma máscara ou então criar uma persona. Comecei a ter problemas com caras em quem confiava, com quem gravava junto.”
Veneno para a mente e para o coração
Thais Lilian da Silva Machado, 26, a Tatá Dellon, lançou, na última segunda (8), o single “Sabiá”, que reflete a busca da rapper por algo novo, um recomeço, como diz. “É a liberdade que eu queria ter.” Assim como Jô Brandaum, Tatá carrega marcas do machismo que sofreu ao firmar uma parceria com homens de um estúdio local há dois anos. “Eu queria produzir um EP, então comecei a vender as minhas rifas, porque não tinha condições de me produzir. Nem estava nos meus planos, mas, de tanto ouvir o pessoal cobrando um som na pista, porque eu não tinha _ nem no YouTube, nem no Spotify, estava bem precário _, eu corri atrás, fui para a rua, fiz um monte de talões de rifa, vendendo rifas de R$ 1, e, de R$ 1 em R$ 1, fazendo dinheiro.” Após arrecadar a quantia e gravar um single, porém, houve um desentendimento com os produtores, “uma coisa abusiva”, de acordo com ela, e a rapper se viu desamparada. O clipe de “Sabiá” só foi financiado por Tatá este ano, com recursos próprios, já que começou a trabalhar em um emprego formal no fim de 2020.
Tatá trabalha em um restaurante em um shopping local das 13h às 23h. O expediente, no entanto, foi ajustado em razão do lockdown, já que anteriormente ia das 17h30 às 2h30. “Comecei a respirar, sabe? Saí de casa, agora estou pagando o meu aluguel. Ainda assim, a gente sabe que tem que fazer malabarismos para conseguir investir uma grana na carreira. Mas estou confiante, porque antes nem empregada estava. Tanto que rolou a situação das rifas, enfim, do apoio coletivo da galera. Pude me certificar do meu público.” A rapper tem se desdobrado para conciliar o emprego e a carreira. “Na hora de almoço que tenho, deixo de almoçar, vou lá para o estacionamento, boto um fone, abro o meu celular e começo a olhar alguma coisa. Todos os dias me proponho a isso. Eu não tenho produtor. Não tenho um mentor artístico, não tenho nada. Eu mesma que vou observando o que preciso, eu mesma que vou trazendo coisas que eu não tenho.”
Para Tatá, a pandemia tem agravado a invisibilidade das rappers de Juiz de Fora. “A gente vê que é um privilégio perfeito para os caras. O fato de eles serem homens já gera uma certa oportunidade, um lugar de notoriedade, o que é o básico, independentemente de a pessoa ser muito conhecida ou não”, afirma. “O fato de a gente atuar no rap e ser mulheres do interior é mais agravante e mais complexo ainda. A gente conseguir ter um pouco de cadência na nossa carreira, sabe? Não falo somente da ascensão, mas o percurso até a ascensão.” De acordo com a rapper, a invisibilidade, inclusive, leva mulheres a abandonar o rap. “Se a gente não tiver um pouco de consciência de que está fazendo um trabalho bom, sólido, independentemente dessas estruturas machistas, a gente acaba envenenando a nossa mente e o nosso coração.”
‘Onde está o amor?’
Laura Conceição, 24, é uma exceção, já que consegue prover a própria subsistência exclusivamente a partir da arte. No entanto, ainda assim, com dificuldades. “Sou muito grata por todas as oportunidades que tenho recebido durante a pandemia, mas, querendo ou não, é mais fácil quando está tudo funcionando. Tudo com o que a gente trabalhava envolvia muita gente. Não apenas shows, mas também o meu projeto de ir às escolas (‘Poesia na escola’). Isso infelizmente ficou parado. Estamos na Lei Murilo Mendes, mas não tem como fazer isso sem escola. O jeito foi se adaptar para manter a palavra, a semente sendo jogada. No meu caso, tive que optar por eventos on-line.” No início da pandemia, Laura fez uma transmissão ao vivo intitulada “Lunática”, em que cantou todas as composições da carreira, e participou de outras, como a da “Umari Concerts”, a de Teresa Cristina e a de Preta Ferreira.
Laura tem buscado reinventar, junto às demais rappers, projetos sociais dos quais participava, como o próprio “Poesia na escola”, que atendia majoritariamente a escolas públicas, e as rodas de rimas e poesia do Las Manas, do qual Dona Chapa, Jô Brandaum e Tatá Dellon também participam. “A gente até pensou em como dar continuidade ao ‘Poesia na escola’, mas não é democrático, uma vez que nem todos os alunos têm acesso à internet. Então, a gente está realmente esperando a retomada das aulas. A minha posição, particularmente, é que as aulas voltem apenas depois que toda a população estiver vacinada”, diz. “O ‘Las Manas’, enquanto coletivo, organizava a Roda das Manas, que é uma roda de rima e poesia que acontecia ali perto do Central, íamos à escola também etc., tudo que envolvia muita gente. Mas o coletivo está de pé e estamos vendo formas de nos reinventarmos.”
Embora admita que desde a criação do Las Manas as rappers de Juiz de Fora já têm um espaço maior, Laura aponta a ausência de reconhecimento. “Acho que mulheres no palco, enquanto formadoras de opinião, ainda incomodam muita gente. A gente vive em um sistema misógino. E a gente coloca o dedo na ferida, falamos da opressão e das coisas que estão rolando. Então, acredito que ainda falta um pouco de espaço. Muita coisa já foi conquistada, sou muito grata, mas ainda falta mais oportunidade mesmo para abraçar todas as mulheres que estão correndo com a cultura hip hop, como DJ, grafiteira, MC, dançarina etc.” E, para Laura, justamente ao se expressar, as mulheres já estão resistindo. “Já somos caladas por muitas vezes e em muitas situações na vida. Acredito que o meu próximo trabalho será muito focado nisso. Eu, enquanto mulher, tendo a oportunidade de me expressar sobre acontecimentos ao meu redor.”
A rapper espera lançar até o fim deste ano um EP, o segundo trabalho da carreira. Diante das restrições sanitárias, ainda não há data para que entre no estúdio. Além de demarcar o espaço de resistência das mulheres ao se expressarem, o amor também será abordado, diz. “A gente está nadando em um poço de ódio. Caos na saúde, caos político, então onde está o amor? Onde posso gozar? Onde posso ter uma experiência que não seja de dor, pressão e desespero? A gente precisa muito disso. A gente precisa de amor, de falar de amor, de ouvir amor, de se sentir amada, de amar.”