Cerca de um ano depois do primeiro caso de coronavírus identificado, a pandemia continua assolando o mundo, afetando diversos setores da sociedade, em especial aqueles que necessitam do encontro por essência, como o setor da música e do entretenimento. Com a impossibilidade de se realizar shows, devido à necessidade do isolamento social, a transformação digital foi acelerada, obrigando, de certa forma, os artistas e empresários a se adaptarem ao novo momento em que vivemos, encontrando no on-line um ambiente plausível. Artistas tiveram de se reinventar e, através das “lives” – transmissões ao vivo realizadas no meio digital -, encontraram um novo espaço a ser desbravado.
Mesmo com o desenvolvimento dos serviços de streaming, a principal renda dos músicos é gerada através dos shows. Mas a apresentação ao vivo necessita de público, equipe técnica, o que, no atual momento, não tem sido possível. Luqui Di Falco, sócio-proprietário do Cultural Bar, afirma a importância e a renovação que esse momento vem trazendo para o mercado.
“Tem o lado dos que sobreviveram e conseguiram se moldar, iniciando uma trajetória de divulgação no mundo digital, colocando vídeos, produzindo músicas. Essa era a única forma de manter o engajamento com o público, então uma leva de artistas se sentiu forçada a dar esses passos iniciais. Da mesma forma que trouxe um impacto negativo, ganhamos uma parte dos que ficaram mais atuantes, ganhamos consciência em atuação, e a retomada parece ser mais animadora”, reflete Luqui, também violonista na banda Acoustic N’ Roll.
Em casa
Alguns artistas já eram familiarizados com o meio on-line, caso de Caetano Brasil, clarinetista, saxofonista e compositor. O músico mineiro conta que já tinha o costume de realizar lives, mas que, para o momento, precisou adaptar seu conteúdo. “Eu sempre fiz live de ensaio, de roda de choro, então, nesse sentido, não era novidade pra mim. O que eu precisei fazer no início da pandemia foi uma reapropriação disso, e enfrentar a concorrência, porque parece que as pessoas descobriram a live durante a pandemia.”
Uma banda que explorou novos formatos foi a Legrand. Como o grupo estava impossibilitado de se reunir presencialmente, optou por realizar no Instagram uma live de entrevistas com músicos convidados. “No começo da pandemia a gente fez uma live pelo Instagram, à distância mesmo, cada um fez as coisas de casa, todo mundo estava isolado. A gente chamou alguns convidados músicos também e cada um teve um tempinho para falar, seguido de apresentações musicais”, conta Cyro Soares, baterista da banda.
Alex Martoni, professor e pesquisador do grupo de pesquisa “Ressonâncias: música, mídia e literatura”, traça um paralelo da qualidade, intenção e linguagem das lives nos últimos meses, e faz apontamentos sobre os diferentes formatos. “É interessante também pensar nos diferentes formatos que foram sendo desenvolvidos. As lives foram se aperfeiçoando, foram mudando, diferentes formatos foram sendo desenvolvidos, tanto a simulação de um show íntimo em casa como a tentativa tentativa de simular a experiência do palco, ou mesmo essas experiências que tentam na verdade se adequar com as próprias características da mídia.”
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Popularidade
Esse ano, o Brasil parece ser o país que mais consumiu e investiu na produção da nova mídia, liderando as pesquisas estatísticas de diversas plataformas. Apenas no mês de março, quando as medidas de isolamento social começaram a ser tomadas, o Instagram relatou um aumento de 70% das lives realizadas na plataforma em todo o mundo; no Brasil, o aumento da audiência também foi significativo, trazendo 50% mais usuários para o formato. O país também aparece na frente em pesquisas de outras plataformas: segundo relatório divulgado pelo YouTube, no ano passado, oito das dez lives mais assistidas na plataforma foram brasileiras. O balanço, que foi realizado com base no pico de visualizações simultâneas, traz uma lista liderada pela cantora Marília Mendonça, que obteve 3,31 milhões de espectadores. A relação conta com apenas dois nomes internacionais: Andrea Bocelli e o grupo koreano BTS.
Monetização
Com a popularidade das lives, músicos e produtores começam a desbravar e entender a possibilidade de monetização do novo ambiente. Por enquanto, a capitalização das apresentações se dá em forma de doações, através de QR codes expostos nas telas digitais, que levam aos detalhes da conta para onde será doado o valor selecionado pelo espectador, bem como lives comissionadas para o artista.
Para Caetano Brasil, é preciso separar os tipos de lives. Há aquelas mais despretensiosas e há outras, mais profissionais. “Às vezes eu faço live de estudo, de gravação, pego algo ou um trabalho que estou fazendo em casa e transformo isso em conteúdo que pode gerar uma monetização indireta”, observa. “Ao mesmo tempo, tem as lives comissionadas. Eu fiz lives por dois festivais: pro Fartura Brasil, com o meu duo, e no festival Moinho Cultural, aqui em Juiz de Fora, com meu trabalho autoral, com meu grupo. Essas foram lives patrocinadas. E estamos com outra live agendada para 2021, no ViJazz.”
Futuro
Músicos e especialistas apostam na continuidade do formato “live”, mas sem a tentativa de substituição do show ao vivo, que, além da arte, possui também uma função social e econômica. O professor e pesquisador Alex Martoni acredita na utilização híbrida dos espaços físicos e virtuais, com venda de ingressos físicos para o evento presencial, mas, também, com a presença de ingressos e da realização do mesmo evento na internet. “Vai haver uma expansão de público. Se você tinha capacidade para mil pessoas, agora você tem a capacidade de 100 mil pessoas, mil lá dentro e 99 mil que estarão distribuídas pelo mundo. Eu acho difícil que não haja a permanência das lives e essa possibilidade de monetização.”
A permanência também é uma aposta de Caetano Brasil, remetendo ao modelo que já acontece em casas de jazz nos Estados Unidos. “Muitas já fazem ‘livestream’ de show, você faz um streaming ao vivo de um show que está acontecendo presencialmente para algumas pessoas. Eu penso numa potencialização desse uso, do recurso digital, que acho que vai ser imprescindível. A gente não vai ter como viver sem, acho que o pós-pandemia não vai ser o que era.”