Quando cantou São Paulo, Caetano Veloso admitiu que chamou de mau gosto o que viu, mau gosto, mau gosto. Mas, resignado, percebeu que, na verdade, Narciso acha feio aquilo que não é espelho. O verso de “Sampa” (1978) sintetiza, sem dolo, é verdade, a cultura do cancelamento. Ainda que novamente exacerbado pelo reality show Big Brother Brasil, o fenômeno, impulsionado pelo engajamento das redes sociais, já há alguns anos expõe comportamentos questionáveis de artistas a intelectuais, do ator Lucas Penteado à antropóloga Lilia Schwarcz. Entretanto, nem mesmo os “canceladores” sabem ao certo quais são os parâmetros de coerência adotados pela vigilância moral.
A “cultura do cancelamento”, conforme a psicóloga, psicanalista e filósofa Claudia Murta, ao excluir sempre o outro de determinado grupo social, torna a diferença insuportável. “Quando exclui o outro, uma pessoa assume que não se reconhece em determinada ação ou fala, ou seja, a pessoa se reconhece de uma maneira diferente em relação ao outro. O cancelamento é uma forma de segregação, porque alguém não quer escutar o que determinada pessoa tem a dizer, ou seja, não há mais lugar nem mesmo para a palavra. Por outro lado, se a identificação é com alguém que tem muitos seguidores na rede social, ela se vê na outra. E, quando a outra faz coisas que não a representam mais, ela se frustra e a cancela.”
O doutorando em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Cícero Costa Villela aponta que só há o cancelamento se também há o desejo de que o outro seja igual. “Nós não vemos ninguém cancelando, por exemplo, o presidente da Fundação Cultural Palmares (Sérgio Camargo), porque ele está do outro lado do espectro político. Se ele já foi cancelado, ninguém ficou sabendo. Nós só cancelamos por um sentido de decepção com o outro. É como olhar no espelho e ver aquilo que não queremos ver.” E justamente o medo de sermos reconhecidos pelo que não somos, acrescenta Cicero, faz com que a “cultura do cancelamento” mobilize milhares de pessoas. “Carregar a pecha de ser reconhecido como algo que a gente não supõe que a gente seja é muito difícil”.
O mecanismo de quebra de expectativa, e, consequentemente, de decepção citado por Cícero é reforçado por Claudia. A psicóloga, também professora de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), explica que a ruptura, “bem imaginária”, ocorre quando a imagem do outro não condiz com as nossas próprias expectativas. “Em algum momento, eu imaginava que o outro tinha a ver comigo mesma, mas, agora, não tem mais, em razão de alguns posicionamentos ou atitudes. Este processo de identificação é uma espécie de amor, reconhecimento. Quando a imagem que eu construí não bate, a agressividade e a violência vêm, e o cancelamento está no campo da violência.”
Dois lados, mesma moeda
No entanto, as posições do “cancelador” e do “cancelado” são fluidas, como aponta Cícero. “As posições não são dadas antes do processo de fala ou de escuta, mas, sim, no momento da fala e da escuta. E o entendimento destas posições também pode variar de um momento para o outro. A relação entre o ‘cancelador’ e o ‘cancelado’ talvez seja a de duas faces da mesma moeda. Os dois se submetem à mesma lógica, de supostos iguais. Mas, ao mesmo tempo, a lógica se dá no processo de reconhecimento e de identificação das partes.”
‘Local de escuta’
De acordo com Claudia, assumir uma posição para “cancelar” o outro é autoritária, porque é como definir uma lei em que a diferença do outro não está dentro de regras de convivência. “Não me refiro à lei do Estado, mas à lei de convivência social”, pondera. “Não é assim que se lida com a lei de convivência. A lei é o próprio desejo, ou seja, algo que se entende e se aceita porque é necessário para a própria convivência. Agora, no cancelamento, como as pessoas podem assumir, embora façam, o lugar da própria lei? Quando uma pessoa cancela a outra, não dá espaço para entender que a outra não pode fazer aquilo que fez. Isso é assumir a representação de uma imposição da lei.”
Cícero, por sua vez, acredita que a postura autoritária, na verdade, está apenas na vigilância atrás de quaisquer erros. O maior problema, aponta, é quando o julgamento moral se impõe. “É como se o processo de identificação fosse muito fechadinho em si, como se não houvesse possibilidade de buracos e falhas. A gente sabe que o que mais há no ser humano é contradição. Assume-se uma moral muito rígida em que qualquer mínimo deslize é passível de punição. O julgamento é necessariamente moral, por isso a gente cancela. E, normalmente, o lugar moral é um dos lugares fáceis ao qual a gente consegue recorrer.”
Há, para Claudia, uma clara diferença entre a crítica feita e o “cancelamento”. A distinção está quando o outro tem local de resposta, quando “a palavra circula”. “Se não há lugar de fala, há violência. A fala é protetora. Os advogados defendem os réus com a palavra. Os alunos defendem trabalhos como dissertação, tese etc, com a palavra. Quando a fala se demite, começa a violência. Mas a violência já estava e a fala a protegia. A questão do simbólico, do local de fala, é escutar o outro. Por exemplo, a primeira ação para acolhimento de uma mulher vítima de violência é a escuta. O outro deve se expressar. A fala pode não ser coerente, mas não há uma coerência total. O próprio (Jacques) Lacan (psicanalista francês) aponta para o impossível das relações, ou seja, uma impossível compreensão de tudo o que o outro diz.”
Assim como a psicanalista, Cícero acredita que antagonismos e desentendimentos são constituintes do próprio processo de comunicação, o que o leva a propor a discussão do local de escuta, por exemplo. “A própria noção do lugar de fala no livro clássico ‘Pode o subalterno falar’, ao que me parece, está mais próxima a um lugar de escuta e de elaboração da escuta do que necessariamente de um lugar de fala que é dado a priori. Acho que um dos problemas é esse: a forma como a gente se apropriou do lugar de fala dá a noção de como se o sujeito viesse antes da relação, ou seja, que um determinado sujeito tem que seguir exatamente um determinado padrão, como falar de tal jeito, dizer certas coisas etc. Só que as coisas são mais complexas do que isso.”
‘A cultura do cancelamento já faz parte da dinâmica das redes sociais’
Não há como desassociar a operação da “cultura do cancelamento” e as redes sociais. As plataformas digitais multiplicam o que anteriormente acontecia entre 20 pessoas em uma reunião de condomínio, departamento, repartição etc, como afirma Claudia. “É como se estivéssemos em uma assembleia constante. Além disso, as pessoas têm mais coragem para falar, justamente porque o corpo não está presente. Em uma reunião de condomínio, quando uma pessoa toma a palavra, ela fala e imediatamente vê a reação das pessoas. Neste momento, a pessoa sai da sua própria imagem, da sua fantasia. Então, ela não vai dizer qualquer coisa como quando se está sozinho apenas com o próprio celular. As redes sociais são uma forma de lidar com a palavra, mas de uma forma não comunicativa.”
A professora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Gabriela Borges diz que a “cultura do cancelamento” já é parte da dinâmica das redes sociais, que, se não são coniventes, ao menos estimulam o comportamento dos usuários. “Isso está relacionado aos algoritmos das próprias redes sociais e às bolhas sociais formadas. A gente vai formando a nossa opinião e moldando o nosso pensamento dentro desta bolha e em meio àqueles que concordam conosco. Por isso, o acirramento. Não se tolera mais o contraditório, não se tolera mais o diferente. É um modelo de negócio feito para formar grupos com interesses específicos. Assim, por exemplo, é mais fácil oferecer produtos _ tanto é que eu, por exemplo, falo sobre algo e rapidamente anúncios começam a aparecer pra mim.”
O Big Brother Brasil, por exemplo, detalha Gabriela, atende a um modelo conhecido como “social TV”, ou seja, a exibição de um programa televisivo para impactar as redes sociais. “Este modo de funcionamento leva a este tipo de reação ou funcionamento em termos do cancelamento. O Big Brother tem sido um produto da Globo que tem permitido a ela lidar com as redes sociais. Em outras áreas como a ficção, por exemplo, muitas vezes a Globo fala sozinha, ou seja, ela tenta uma comunicação com o público nas redes sociais e os fãs existem, se comunicam, mas à revelia do que a Globo fala e coloca. A forma de jogo do BBB permite que a interação seja feita de maneira mais bem sucedida pela Globo, o que reflete, obviamente, em lucros.”
Educação midiática
A professora da Faculdade de Comunicação da UFJF defende uma política pública por meio de currículos escolares direcionada à educação midiática. “Acho que, caso as pessoas tivessem acesso ao modo de construção de discursos e ao modo de operação das redes sociais já desde crianças e jovens, não só como conhecedores enquanto usuários, mas a partir de uma análise mais crítica, teriam uma outra visão da comunicação, do papel da mídia e até mesmo de como operar nessa mídia. No fundo, pretendemos juntar duas coisas: a aprendizagem informal, que já ocorre normalmente, e a aprendizagem formal.”