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‘O senhor do texto’: obra de Graciliano Ramos entra em domínio público

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Existe um livro inédito de Graciliano Ramos. Aliás, de J. Calisto, um de seus pseudônimos. Entre um tanto de escritos deixados pelo escritor alagoano, foi achada uma obra-prima: um livro infantil, que, no entanto, não deixa de ser sagaz como Graciliano sempre foi. O texto, escrito em forma de poema, estava guardado no Fundo Graciliano Ramos, que fica no Instituto de Estudo Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP). Ou seja: todo mundo tinha acesso, de alguma forma. Agora, esse acesso fica mais facilitado: ganha o mundo com o nome de “Os filhos da coruja”, a partir do lançamento da Baião, o selo da Todavia para as infâncias.

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O conteúdo ficava ali. Faltava, talvez, um olhar para que ele, de fato, se transformasse em livro. Era preciso ter intimidade. Primeiro, para associar J. Calisto à Graciliano Ramos. Depois, para perceber que o texto, baseado nos de La Fontaine, era um achado na medida em que, além de trazer uma moral da história, conta parte da própria vida de Graciliano. E isso, para Thiago Mio Salla não foi difícil. Ele pesquisa o escritor há mais de 20 anos e, neste tempo, já se debruçou sobre textos inéditos. Inclusive, faz levantamento de seus pseudônimos. E uma coisa se encaixou na outra. 

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Esse pseudônimo, de acordo com Thiago, que é também professor da USP, foi usado por Graciliano já algumas vezes, nos anos 1920, e ele, então, já tinha se deparado com esse nome. Ele acredita que o fato de usar um pseudônimo é, ao mesmo tempo, o motivo de ter descoberto “Os filhos da coruja” e o motivo de ter ficado tanto tempo sem ser localizado. Sobre assinar como J. Calisto um texto infantil, em formato de poesia, Thiago tem uma hipótese: “Como o texto ‘Os filhos da coruja’ tem uma pegada de questionamento, que é muito forte no J. Calisto, acho que talvez Graciliano tenha optado por isso. Porque é quase como se fosse um heterônimo. Ou seja, uma persona que ele cria para conversar com os leitores, convencê-los, enfim, instigá-los a pensar ou reformular aquilo que eles pensam sobre questões que são usuais e comuns”. 

A partir da data em que o texto foi escrito, é possível perceber o momento pelo qual Graciliano passava, como conta Thiago. Graciliano tinha quatro filhos. Quando nasce a mais nova, a mãe, esposa do escritor, morre no parto. Os outros três meninos – todos eles – faziam aniversário em setembro: exatamente no mês em que ele escreveu o poema. “Me parece que, inicialmente, esse texto teria como leitores os três filhos”, acredita o pesquisador. O texto tem uma estrutura de fábula: “Animais que conversam, uma estrutura que caminha para o embate entre duas figuras e, no final, tem a moral da história”. Mas isso não faz com que ele abra mão de sua sagacidade. “A fábula tem esse lugar muito presente na literatura infantil. Essa coisa da transmissão do pensamento e a lição de moral que traz é uma lição muito Graciliano, bem sagaz. Essa coisa de você se desvencilhar das asas da mãe coruja e, de alguma forma, ter alguma possibilidade de enfrentamento com os gaviões que estão por aí querendo nos devorar”, conta, sobre o enredo. 

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Em domínio público

Thiago Mio Salla pesquisa Graciliano Ramos há mais de 20 anos (Foto: Cecília Bastos)

“Os filhos da coruja” nasce também em um momento em que as obras de Graciliano Ramos entram em domínio público já que, de acordo com as leis brasileiras, isso acontece após 70 anos desde a morte do escritor. Até então, quem tinha os direitos sobre sua obra era, unicamente, a Editora Record, que, apesar disso, continua publicando. A Companhia das Letras também entra nessa e, neste ano, publica alguns clássicos. 

Além de publicar um inédito, a Todavia, neste ano, publica cânones de Graciliano, com organização, notas e apresentação de Thiago. Para começar, eles lançam “Angústia”. Mas não é simplesmente mais uma versão de um dos clássicos do alagoano. Foi preparada uma edição crítica, com escritos, inclusive, de Antonio Candido, um dos principais nomes da crítica literária. Fazer esse tipo de publicação foi possível, também, graças à intimidade que Thiago tem com os arquivos do escritor e ao acesso que ele tem aos documentos, que são públicos, e estão na USP, principalmente, na Biblioteca Brasiliana. “Lá (na biblioteca) existe a prova tipográfica de ‘Angústia’ e de outros livros, como o ‘Vidas secas'”, que também ganha uma edição pela Todavia ainda neste ano”. 

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Eles decidem dar o pontapé à Coleção Graciliano Ramos com “Angústia” e isso tem motivo. “É um romance magistral”, defende Thiago. Além disso, ele conta que, em vida, foi um dos romances mais bem-sucedidos do autor, tendo cinco edições lançadas enquanto estava vivo. Em 1936 é lançado, depois republicado em 1941, 1947, 1945 e 1952. Enquanto “Vidas secas”, que hoje é o mais comentado, teve apenas três edições quando ele era vivo. 

Outro ponto, apontado por Thiago, é exatamente o trabalho de base, como pesquisador, há 20 anos. Ele enumera que “Angústia” teve 12 versões, até Graciliano morrer. “Entre a primeira edição, tem uma prova tipográfica para a segunda, e o Graciliano pegou um livro da primeira edição e começou a anotar para fazer marcações. Eu cortejei 12 versões do texto até chegar de fato nessa que é o texto base do romance, restituindo aquela que é a última vontade do Graciliano. Esse livro prima por esse trabalho, esse zelo, de tentar trazer de fato essa última vontade do autor e que estaria registrada em uma prova tipográfica. Ele pegou um exemplar da quarta edição e anotou. Ele estava no leito de morte, e, de alguma forma, mesmo com a saúde debilitada, faz várias alterações no texto, várias correções, sempre buscando ajustar a justeza da palavra, a expressividade.”

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Tudo isso foi considerado para pensar nessa versão de “Angústia”. “A gente fez um trabalho minucioso com o texto. Tanto que se você olhar a edição vai perceber que é como se ela tivesse diferentes possibilidades de leitura. Então, para o leitor que quer uma leitura geral, é só seguir o texto. Tem nota de rodapé. E, ao final, se você quiser, você pode criar o laboratório da criação do autor. Ou seja, como ele foi criando o texto e fazendo ajustes”. Ele conta que foram produzidas quase três mil notas de rodapé e cerca de 10% foi deixado na edição final. “Pegando só aquelas modificações que a gente acha que são mais representativas e expressivas”. O motivo: “Para que o leitor acompanhe como que o Graciliano era um autor excessivamente preocupado com  o texto. Senhor do texto.”

As obras de Graciliano Ramos entraram em domínio público já que, de acordo com as leis brasileiras, isso acontece após 70 anos desde a morte do escritor (Foto: Divulgação)

Um novo olhar

Colocar as notas de Antonio Candido foi escolha, praticamente, óbvia a eles. “Porque Antonio Candido é o grande crítico literário do nosso país e aquele também que definiu as balizas de compreensão do próprio Graciliano”, justifica. “Existe um Graciliano antes e um depois de Antonio Candido. Nada mais conveniente que trazer o Candido.” Essa versão de “Angústia” traz textos inéditos de Candido, que tem uma versão toda anotada sobre “Angústia”. 

De acordo com Thiago, no começo, Candido foi um crítico ao livro. E, ao longo do tempo, vai mudando de opinião. “Ele vai vendo que, de fato, ele próprio foi percebendo que aquilo que apontava como ‘gordura do texto’, uma ‘superabundância’, era algo inerente à dicção literária do Luis da Silva, protagonista do ‘Angústia’. Ele foi percebendo que, na verdade, aquilo não seria um problema. Muito pelo contrário, era uma questão de verossimilhança, de adequação àquele personagem em específico e ao solilóquio, que, se a gente olhar, o texto todo é um grande solilóquio, ele falando consigo mesmo, tentando organizar a própria narrativa.” 

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Thiago também afirma que todos os lançamentos da Coleção Graciliano Ramos seguem essa forma, de incluir inéditos e apresentar uma edição crítica do texto. “O grande objetivo é zelar pelo autor, por sua obra, e, ao mesmo tempo, colaborar para engrandecê-la, ampliá-la. Porque é um autor múltiplo e cheio de possibilidades. Então, acho que esse é o grande propósito”, afirma. 

Outras possibilidades

Quando foi anunciado que a obra de Graciliano Ramos entraria em domínio público, uns comemoraram e outros não gostaram. Principalmente quando se anuncia o lançamento de um inédito. Para Thiago, no entanto, essa mudança é benéfica. “Porque ele tem essa função de permitir que o acesso ao autor se amplie e se consolide. Você tem mais possibilidade de acessá-lo. Então, é quase como uma quebra de monopólio. Você está falando de um acesso mais amplo. Isso, obviamente, pode resultar em edições que não são tão bem cuidadas. Mas tem o outro lado, que você abre a possibilidade de novas boas edições também entrarem em circulação, e para que o nome do autor continue vivo e presente na vida de todos nós”, finaliza.

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