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Edimilson de Almeida Pereira estreia no romance com 3 títulos simultâneos

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(Foto: Fernando Priamo)

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Pesquisador e professor da Faculdade de Letras da UFJF, Edimilson de Almeida Pereira é poeta com dezenas de títulos lançados, ensaísta e também escreve livros infanto-juvenis. (Foto: Fernando Priamo)

Antes da náusea, o mal-estar. Depois da náusea, o vômito. A náusea, portanto, é estado passageiro, de deslocamento, de tomada de decisão. “Náusea”: o título genérico da trilogia com que o poeta, pesquisador e professor da Faculdade de Letras da UFJF faz sua estreia no romance. Publicados por editoras distintas, entre novembro e dezembro deste ano, “O ausente” (Editora Relicário, 124 páginas), “Um corpo à deriva” (Macondo Edições, 156 páginas) e “Front” (Editora Nós, 128 páginas) retratam o sentimento de mal-estar do sujeito que leva à tomada de conhecimento de si e do mundo. “Nos três romances os personagens vivem essa experiência de um mergulho em si, uma visão crítica do próprio sujeito e do que o cerca para, depois, assumir uma tomada de posição”, pontua o autor, que desde o início tinha como projeto publicar os três títulos simultaneamente, ainda que em casas diferentes, como aconteceu. Coincidentemente, cada obra sai bastante identificada com o selo que a acolheu.

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Ainda que a publicação de prosa ficcional adulta só tenha ocorrido agora, aos 57 anos, a estreia no universo do romance, conta Edimilson, se deu antes mesmo da poesia e de mais de meia centena de livros lançados. “O homem pálido”, um longo romance de mais de 300 páginas foi manuscrito na juventude, antes mesmo de entrar para o Exército. Uma professora do ensino médio foi sua única leitora e teceu comentários rigorosos, que fizeram com que o aluno redigisse outras duas versões. Durante o ano em que prestou o serviço militar, Edimilson escreveu a novela metafísica “Faia”. “Guardei essas narrativas comigo durante muito tempo e depois me desfiz delas”, recorda-se sobre os trabalhos precoces. “A ideia do ficcionista já está comigo há muito tempo.”

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Durante o trabalho etnográfico que desenvolveu ao longo de mais de duas décadas, Edimilson recompôs narrativas orais utilizando técnicas da narrativa ficcional para preencher lacunas. Precisou, então, distanciar-se de tal prática para se dedicar aos romances. Artesão das palavras, escreveu e reescreveu por anos, negociando com o professor de raro conhecimento e com o crítico apurado que o habitam. Jurado da última edição dos prêmios Jabuti e Oceanos, o escritor deparou-se com o presente do romance em língua portuguesa, com a já desgastada autoficção, com as narrativas fragmentárias e com um vasto cenário experimentalista. “Há um campo muito fértil para propor coisas novas, experimentando a tessitura da narrativa”, garante o autor de três obras que ampliam os limites da forma e do conteúdo, fundando um lugar próprio.

‘O que fazer com o saber’

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“O ausente” é o primeiro romance a ser publicado pela mineira Relicário. (Foto: Reprodução)

Interdependentes, os três romances agora lançados por Edimilson de Almeida Pereira podem ser lidos em qualquer ordem, mas o próprio autor admite uma cronologia que responde à publicação dos títulos, iniciando com “O ausente”, passando por “Um corpo à deriva”, até chegar em “Front”. “O ausente”, inclusive, foi o primeiro a surgir, no já distante ano de 1995, quando o autor realizou uma pequena expedição à Serra do Espinhaço, trecho montanhoso que ocupa Minas Gerais e Bahia e possui raízes africanas, europeias e indígenas. Na época, ele, o fotógrafo Eustáquio Neves e a museóloga Lilian Neves conheceram os povoados de Baú e Ausente, formados por poucas famílias e bastante distante do centro urbano. A vivência deu origem ao texto “As meninas do Ausente”.

“Ao longo dos anos fiz anotações e por volta de 2000, quando estava em Genebra, fazendo meu pós-doutorado, fiz os dois primeiros capítulos e abandonei. Guardei um trecho para fazer dois poemas que publiquei, mas joguei fora os capítulos. Em 2007, a Prisca (Agustoni, sua esposa, poeta e também professora da Faculdade de Letras da UFJF), que havia guardado os dois capítulos em disquetes, me possibilitou retomá-los. Entre 2015 e 2019 concluí a narrativa maior”, narra Edimilson sobre a história de Inocêncio, homem que nasce empelicado (envolto pela placenta), predestinado a curar as pessoas ao seu redor, como um benzedor. Ao longo da vida, Inocêncio duela com a tradição, com o papel que lhe cabe, com o compromisso com a palavra. “No final das contas, minha intenção como autor é demonstrar que não importa o cenário, nem a condição de formação intelectual dos personagens. O que se tem nessa história é o grande dilema humano sobre o que fazer com o saber, com o conhecimento. É um romance muito metalinguístico, com discussões sobre a palavra”, analisa o autor, apontando Inocêncio como um filósofo, que indaga o mundo pelo prisma dos saberes de sua terra.

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“Desde o antigo tempo acontecem coisas que amiúde sonho. E lhes conto. Não por vaidade de costurar as palavras, mas por compromisso de quem herda um ofício. E assim haverá de ser para a ordem do mundo. Pense lá se, de repente, nenhum-ninguém se ocupa de alinhavar os acordos e tudo se dissipa como fogo depois da crepitação. Nem é direito cogitar tal enredo: uma história sem história. Como puxá-la da língua?”

(Trecho de “O ausente”, Editora Relicário, 124 páginas)

‘Está tudo à deriva’

“Um corpo à deriva” chega às livrarias pela casa juiz-forana Macondo Edições, que também produziu a plaquete “Ruídos”, com trechos poéticos do romance. (Foto: Reprodução)

Num contraponto a “O ausente”, “Um corpo à deriva” reúne um casal jovem e universitário num centro urbano: Eu (uma espécie de alter ego do leitor) e Tesfa (nome de origem etíope, que significa esperança). Os dois fazem um pacto de suicídio e se encontram num diminuto apartamento no final da tarde. Antes do ato final, recordam uma série de outras vozes. A angústia impera enquanto eles se desnudam e desnudam o mundo.

“Nesse jogo de discursos, cada um com um sentido, o romance vai criando a ideia de um corpo que se constrói, físico e, sobretudo, de ideias. Esse corpo de ideias não é fixo, sempre deriva, muda, é cambiante. Não é uma narrativa com uma moral definida. É um questionamento, inclusive, das narrativas do meu tempo, que levam a ter uma mensagem no final”, observa o escritor.

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“Há uma luz nova vindo depois da tempestade/ no mar ainda em desordem”, escreve o santa-lucense Derek Walcott na epígrafe do livro que com precisão parece descrever um país em confronto com suas narrativas oficiais. “Minha intenção é levar ao extremo a nossa vontade de dialogar e nossa incapacidade de construir entendimento, o que me parece ser o grande drama dos nossos tempos. Está tudo à deriva”, aponta Edimilson, sobre a obra que escreveu durante cinco anos e reescreveu cinco vezes.

“Eu, entregue ao esquecimento, renasço como um letreiro que faísca entre os corpos para dizer-lhes ainda que mortos, continuais vivendo entre nós. Eu me refiro aos corpos inumados no cotton-blues do mar, eles pulsam iluminados. Seus nomes rodeiam suas frontes e suas pernas, suas longas pernas fazem caminhadas pelas galerias dos parlamentos. Aqueles corpos, aqueles, tão humanos que falam às algas e elas lhes respondem. Aqueles humanos, que me abraçam e se recuperam na espuma. É para eles, lançados ao mar para serem olvidados, que me recupero.”

(Trecho de “Um corpo à deriva”, Macondo Edições, 156 páginas)

‘Uma metáfora de nossa época’

“Front”, ainda em pré-venda, será lançado pela Editora Nós, de São Paulo. (Foto: Reprodução)

Em “Front”, Edimilson de Almeida Pereira trabalhou nos últimos três anos, em três versões, sem abandonar a poesia, o ensaio e a literatura infantil. Com uma linguagem mais ágil, o livro retrata um personagem nascido num bairro pobre e que sobrevive do lixo. Narrado em dois tempos, na infância, quando o amontoado de resíduos tem uma aura quase fantástica para a criança, ingênua diante do símbolo da injustiça social que o lugar preserva, e num presente, quando o homem é confrontado com sua invisibilidade, “Front” escancara a desigualdade. Numa fila de lotérica, o homem sem nome – quer ter todos os nomes possíveis – passa horas enquanto conta as histórias de sujeitos distintos de sua comunidade até se dar conta daquele cenário em toda sua profundidade.

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“Eles fogem claramente dos estereótipos que vemos na literatura de caráter naturalista, que trata o personagem de comunidade como um tipo social. No texto cada um tem uma identidade, um projeto de vida, uma visão de mundo autônoma, uma figura plena”, ressalta o autor, para logo pontuar o elo entre os títulos. “A questão temporal. A ideia é fazer com que os personagens vivam muitos acontecimentos, numa faixa de tempo muito curta. É como se fosse uma metáfora de nossa época: você está sentado em dez minutos e sua capacidade de produção discursiva é multifacetada”, diz. “O ausente” se passa entre o final da noite e início da madrugada, “Um corpo à deriva” percorre o final da tarde e início da noite, e “Front”, durante três horas.

“Estou com um cansaço que me toma desde a medula. Um cansaço que afunila as pessoas entre o ir e o vir, todos os dias, sem a perspectiva de dobrarem a curva para uma direção inesperada. Vão todos, em linha reta, deixam-se ir. Não quero ir, apenas. Embora cansado, aumento o som das minhas células e um grito severo arranha minha cabeça. Cheguei a essa idade com cicatrizes demais para não aceitar a moral, os muros do meu tempo. Aumento o volume, a dor filtrada pela música me alegra. Por que penso em metal líquido quando permito que a música me desconcerte?”

(Trecho de “Front”, Editora Nós, 128 páginas)
Edimilson de Almeida Pereira: “Minha ficção é uma continuação da minha criação poética” (Foto: Fernando Priamo)

‘Não tenho preocupação com a descrição física’
Também há outras semelhanças entre os “romances de estreia” de Edimilson de Almeida Pereira. Todos trazem personagens negros, ainda que sem defini-los assim. “Não tenho preocupação com a descrição física dos personagens. Quando analisamos a problemática levantada, as questões da violência, os retratos do opressor e da vítima, por dedução é possível construir o campo de pertença deles”, indica. Num tom existencial, “Um corpo à deriva”, por exemplo, reflete o momento atual, o ódio dos dias presentes, fugindo, no entanto, de uma linhagem de romances com personagens negros no Brasil muito autorreferencial e realista. “Esse retrato acho que a literatura tem que cumprir, ao mesmo tempo acho que há modos de abordar essa realidade menos pelos fatos em si, menos descrevendo e mais por uma indagação da linguagem com que construímos os fatos. Como falamos sobre essas coisas?”, indaga o autor.

Edimilson reconhece o papel da literatura realista, não se filia a ela, no entanto. “Num país tão desigual quanto o nosso, num continente tão desigual quanto o nosso, essa narrativa continua sendo válida. Criar o retrato de um personagem tentando marcar os traços físicos de maneira que valorize o personagem socialmente esquecido é válido. Para mim, a questão é que, como ficcionista, o que me instiga a escrever é procurar caminhos para além dos que já estão postos. Trata-se de uma investigação da linguagem. ‘Como narrar’, para mim, é mais importante do que ‘o que narrar'”, explica o escritor, apontando territórios literários que o estimulam, como a obra “Chão em chamas”, do mexicano Juan Rulfo, que lhe oferece referências de outra lógica temporal.

Das quase duas décadas em que atuou com as narrativas populares, o escritor também extrai a noção do autoquestionamento. Do nigeriano Wole Soyinka retira a capacidade de discutir temas cotidianos, também os dramas mais complexos do humano. Professor da disciplina “Literaturas africanas em língua portuguesa” na Faculdade de Letras da UFJF, também expõe sua forte influência do autor angolano Luandino Vieira, autor de “Nós os do Makulusu”. “Minha ficção é uma continuação da minha criação poética”, reconhece.

‘Acabaram ficando mais contemporâneos’
Em tempos de pandemia, as leituras de “O ausente” e sua defesa do sagrado e do orgânico, de “Um corpo à deriva”, com a reclusão dos personagens num apartamento cada vez menor, e de “Front”, com o estopim de uma convulsão social, se potencializam. “Os textos acabaram ficando mais contemporâneos do que eu podia imaginar”, admite Edimilson de Almeida Pereira. Tudo ficção, no entanto. Eis o único porto da prosa e da poética do autor. “Não escrevo livros de realismo fantástico, de realismo social. O que faço é estruturalmente ficcional. Tanto é que demorei muito tempo para construir essas narrativas, porque o apelo realista é muito grande em relação a essas temáticas. Temos todo um regionalismo que, ao tratar as questões rurais, enfatiza muito o tipo social, a predestinação dos costumes, o conservadorismo das práticas. Esse mundo do sagrado é sempre tratado de maneira exótica”, aponta.

Em “O ausente”, por sua vez, o escritor busca realçar um universo cultural complexo, com indivíduos críticos e autocríticos, capazes de compreender os dilemas que têm que atravessar e as soluções que precisam construir. “Não há nessas narrativas exotismos ou tipologias sociais, com personagens planos. São romances com pouca ação e muito pensamento”, observa o autor, que assim como a náusea, faz a angústia como travessia. Os protagonistas dos três romances se encontram nela: Inocêncio, de “O ausente”, na travessia da tradição, sem saber do porvir; Eu e Tesfa, de “Um corpo à deriva”, na travessia entre morrerem e continuarem vivos enfrentando o mundo hostil; e, em “Front”, uma comunidade na travessia entre desencadear a guerra com a classe dominante ou esperar o momento oportuno.
A hesitação nas três obras agudiza o pensamento e dramatiza as cenas. Confrontos existenciais que transcendem o território, da roça ao apartamento imerso no caos urbano. “São personagens pouco conformados e temos as tonalidades do inconformismo”, assinala o autor, destacando que o sentimento precede o gesto de decisão, narrado em cada livro. “O inconformismo ganha uma dimensão política, quando canaliza para uma ação eficaz.”

“Não há nessas narrativas exotismos ou tipologias sociais, com personagens planos. São romances com pouca ação e muito pensamento”, observa Edimilson sobre as obras com que faz sua estreia no romance, “O ausente” (Editora Relicário, 124 páginas), “Um corpo à deriva” (Macondo Edições, 156 páginas) e “Front” (Editora Nós, 128 páginas). (Foto: Fernando Priamo)
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