
Sandro Fernandes tem um quarto dedicado à sua coleção de quadrinhos. Não é para menos: são quase 9 mil revistas que comprou, ganhou e guardou ao longo de cerca de 30 anos. A leitura das HQs é uma constante na sua vida – desde que começou a ler edições da Turma da Mônica, logo que foi alfabetizado, tomou um carinho especial por esse gênero que nunca o abandonou. Os gostos foram mudando, com o tempo. A coleção abarca quadrinhos do Conan, o bárbaro, Sandman, Watchmen, dezenas de edições DC e Marvel, revistas do Jack, o Estripador e muitos outros títulos nacionais e internacionais. Assim como o próprio gênero do quadrinho, há nas prateleiras edições para todas as idades, gostos e preferências. Basta olhar com cuidado.
Foram os pais de Sandro que deram início a essa coleção. Ele, que estava acostumado a ler quadrinhos com personagens animalescos, pediu para o pai se não tinha um “quadrinho de gente”. Foi assim que conheceu todo o universo dos super-heróis, que tomam conta de boa parte da coleção. Ainda que algumas edições sejam mesmo mais voltadas para um público infanto-juvenil, muito se engana quem pensa que os quadrinhos se resumem a isso. Há edições de alta complexidade, com tramas profundas e embates políticos fortes – sem contar os traços sofisticados e detalhistas. O desenho, em muitos casos, não serve para “facilitar” a história, e sim para acrescentar novas camadas a ela. “Na revista do Jack Estripador, por exemplo, cada capítulo vem com um adendo que é um livro pra você ler. Foi uma revista que demorei cerca de dois meses pra ler, o tema é pesado, mas também fala sobre a história da Inglaterra, as ruas, a arquitetura…é muito interessante”, conta.
O que ele mais gosta nesse gênero é justamente o que foge dos padrões e das estruturas da sociedade. “Esse lado ‘underground’ dos quadrinhos traz liberdade. Você encontra temas polêmicos e personagens, por exemplo, que autores consagrados da literatura talvez não teriam coragem de escrever”, explica. Há vários exemplos em que ele nota isso: tanto na inclusão de personagens fora dos padrões arquetípicos, quanto na ousadia das abordagens feitas, na possibilidade de trazer narrativas consideradas marginais e até mesmo na linguagem, mais próxima da fala de cada um. “As pessoas não dão a mesma atenção para as revistas. Isso poderia ser ruim, mas acaba sendo bom, também. Há temas que hoje estão começando a ser tratados com mais inclusão, mas que nos quadrinhos aparecem desde os anos 80”, diz.
Como é normal, toda coleção tem seus tesouros. Nessa, há posters, páginas originais e até edições autografadas por grandes nomes do quadrinho. Ele mostra com orgulho o autógrafo de Robert Mckee, que faz as páginas de Sandman, e também as primeiras revistas desse quadrinho publicadas no Brasil. Assim como o autógrafo de V de Vingança, que se destaca na parede. Mas para ele, por motivos afetivos, a “menina dos olhos” são as revistas do Conan, o Bárbaro. “Sobreviveu a todas as minhas idas e vindas como colecionador”. Mas de forma geral, o que o desperta fascínio pelos autores não vem só das histórias. “Gosto que eles não ofereçam respostas, mas sim perguntas. O que sempre me chamou atenção nos quadrinhos foi isso”.
Vida pessoal
Quando ele pegou um quadrinho nas mãos pela primeira vez, talvez não fosse capaz de dizer ainda o impacto que aquilo teria em sua vida. Mas o fato é que Sandro percebe o quanto essa literatura foi decisiva tanto na sua vida profissional quanto pessoal. “Muitas vezes, compro essas revistas pensando naquele menino de 16 anos que nem sempre podia comprar. É pra ele, também”, reflete.
Um exemplo claro disso vem justamente do personagem Homem-Aranha. “Ele era um dos personagens de que eu mais gostava na adolescência, e quando eu lia, era uma fase em que ele estava indo para a universidade. Isso me chamou a atenção para o que era a universidade. O fato de eu ter ido para mestrado e doutorado, tentar essa área, vem da quantidade de personagens cientistas, que fazem pesquisas e descobrem coisas”, diz. Para ele, hoje professor de informática, uma coisa é nítida: “Quadrinhos, filmes, jogos de computador…todos eles bebem na mesma fonte”.
O futuro da coleção
Há quem pense que coleções assim tão grandes acabem empoeiradas, deixadas de lado. Na casa de Sandro, esse quarto é um atrativo – ele mostra para amigos, para o filho, para os sobrinhos. Para quem quiser ver, mesmo. E é esse contato com o mundo e um olhar para os outros que o quadrinho também trouxe pra ele. É por isso, inclusive, que Sandro tem um gosto especial por “comprar as edições direto na banca”. Lá, ele pode conversar, trocar ideias e fazer indicações.
Sandro diz que é muito privilegiado por ter um grupo de conversa que está sempre se renovando: seus alunos. É comum, para ele, chegar com sacolas de revistas novas onde trabalha. “A vantagem de dar aula é essa. Eles sempre me mostram novidades e eu acompanho. Os mangás, por exemplo, conheci melhor por influência deles”, diz. Além desse grupo, também compartilha as leituras no seu canal do youtube, o Neurose HQ.
O futuro da coleção não podia ser diferente: não pensa em vender nem em deixar as edições paradas, escondidas em caixas. Talvez fique com seus sobrinhos ou com seu filho, se “tomarem gosto pela coisa” assim como ele. Só tem uma certeza: quer que a coleção fique com quem realmente goste e queira ler. “Se despertar essa vontade em uma, duas pessoas, eu já fico feliz”.