Entender a história da cachaça no Brasil é um processo que envolve compreender até mesmo a própria construção da civilização brasileira. A bebida tipicamente verde, amarela, azul e branca absorve no seu consumo todo o jeito brasileiro de ser, desde o século XIX. Voltando nessa época, por exemplo, é possível perceber um costume que Nelson Rodrigues nomeou “narciso às avessas”: preferir o que vem de fora ao que é nacional. Por causa da ascensão do café no país, portar-se como um europeu era o chique da época, com a ascensão econômica que as plantações geraram. Sendo assim, a cachaça passou a ser vista como algo rural, que não tinha a ver com os rumos que os barões seguiam. Apesar disso, as classes consideradas menos favorecidas continuaram tomando a bebida, passando dos escravos aos trabalhadores. Preconceito instalado. Séculos depois, essa discriminação, de certa forma, ainda persiste, apesar dos movimentos que surgiram com o intuito de reafirmar uma apropriação do que é ser brasileiro. E isso é um costume que só atinge o Brasil, exatamente o país responsável pelo seu surgimento. No exterior, a bebida é valorizada – e muito.
Uma turma em Juiz de Fora, no entanto, se mostra atenta a esse costume de desvalorização da aguardente. No ano passado, foi realizada a primeira Semana da Cachaça da Zona da Mata. E, neste ano, ela acontece, mais uma vez, a partir desta quarta-feira (13), com programação até sexta-feira (15), em Juiz de Fora, e no sábado (16), em Goianá, dentro do XI Encontro dos Produtores Rurais da cidade. Promovida em parceria entre o Reza Forte, o sommelier João Simoncini, a UniAcademia e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), a semana tem como tema “Por que não a cachaça? Um problema sociocultural de consumo”. A programação mescla cursos e palestras com samba e choro – um evento tipicamente brasileiro.
Hugo Fernandes, um dos proprietários do Reza Forte, explica que, no ano passado, o foco da Semana da Cachaça foi sua produção, com um olhar voltado, principalmente, para o processo na Zona da Mata, apontando os desafios do mercado e a regularização dos alambiques informais, além do volume da produção local. Neste ano, o foco se volta para o consumidor. “Trouxemos para o recorte do mercado gastronômico, sobretudo o mercado de produção de cachaça, a discussão sobre os fatores que levam à inclinação do consumidor a valorizar produtos e preparos de procedência externa, sobretudo europeia”, afirma, fazendo menção a esse típico jeito do “narciso às avessas”.
Esse costume de valorizar o exterior, como aponta Hugo, é uma mistura de fatores que vão além da vontade de se portar como europeu e envolve outros setores que ampliam isso. “Enquanto a indústria alimentícia padronizou nossa expectativa de gosto, a publicidade se aproveitou do nosso estranho hábito de dar mais valor ao que vem de fora”. O resultado? “O mercado gastronômico acabou desprezando nossa fartura, nossas vantagens geográficas e climáticas para plantio e cultivo de insumos para uma alimentação rica em diversidade de ingredientes. Em detrimento disso, importamos hábitos alimentares de outras culturas e suas deficiências (de solo, clima, cultivo), enquanto dispomos da maior biodiversidade do planeta.”
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Da terra
É por isso que o foco desta segunda edição da Semana da Cachaça é voltar os olhos para o que é realmente brasileiro e para a importância de se valorizar essa cultura: reconhecer e enaltecer. Nesta quinta-feira (14), Estevão de Souza Castro oferece um curso de avaliação sensorial da cachaça. É uma forma de, primeiro, conhecer e identificar a bebida, encontrando suas nuances e seus pontos fortes. Como diz Hugo, assim como a culinária brasileira, é impossível atribuir à cachaça um sabor único. “São muitos os aspectos sensoriais de um só destilado e suas mil variações de envelhecimento”. O caminho, para ele, é entender essa complexidade de sabores e perceber que são muitos ingredientes que se transformam na bebida.
Na sexta-feira (15), tem a palestra com o tema da edição “Por que não cachaça? Um problema sociocultural de consumo”, com Paulo Sagarana, mostrando essa forma de consumo no Brasil que explica os rumos que culminaram na estigmatização da bebida, e como é que se refaz esse processo rumo à construção da identidade brasileira que abrace a cachaça como símbolo, realmente, nacional, que precisa ser reconhecido. Tanto o curso quanto a palestra acontecem na UniAcademia.
Falar sobre cachaça, mostrar seu consumo, é também entender sua produção. E, por isso, as duas temáticas das semanas conversam diretamente. E, neste ano, a produção reaparece no último dia, em Goianá, no Encontro dos Produtores Rurais deste município. Cachaça é um produto rural. É terra. Pela manhã, a partir das 8h, acontece uma feira de agricultura familiar, com minicursos gratuitos. As atividades acontecem na Escola Municipal Prefeito José Loures Ciconeli e se encerram com show de Chico Lobo, a partir das 18h. “A cachaça é um daqueles símbolos em que acreditar nele é também acreditar no Brasil”, finaliza
Confira a programação completa
Quarta-feira (13)
19h – Samba do Carlos Fernando, no Reza Forte
Quinta-feira (14)
14h às 17h – Curso de avaliação sensorial de cachaça, com Estevão de Souza Castro, no Centro Universitário Uniacademia
19h – Roda de choro e cachaça, no Reza Forte
Sexta-feira (15)
19h – Palestra “Por que não cachaça? Um problema sociocultural de consumo”, com Paulo Sagarana, no auditório do Centro Universitário Uniacademia
Sábado (16)
Em Goianá – XI Encontro dos Produtores Rurais de Goianá