Capa da Tribuna. 16 de agosto de 1983. Uma foto de Raul Seixas, tirada por Humberto Nicoline, é destaque. Ao lado, o motivo: “Sport vive crise, após noite punk. O Festival de Rock que reuniu de 10 a 12 mil pessoas no estádio do Sport, em uma autêntica noite punk, pode não ter desfecho feliz. O sócio e advogado Munir Yasbeck, revoltado com a destruição do clube em decorrência de várias fogueiras acesas no gramado – além de outros atos de vandalismo – está tentando reunir 1/5 de sócios para convocar uma assembleia no Sport. O objetivo desta reunião é pedir o afastamento de toda a diretoria do clube”. Três dias antes, o lugar foi palco de uma noite e tanto – basta ver a crise que gerou no clube. Mas, ao contrário do que diz a manchete do Caderno Dois, o Festival de Rock teve, sim, um desfecho feliz. Tem, aliás, até hoje, exatos 40 anos depois de sua realização, um lugar especial na memória de cada uma das mais de 10 mil pessoas que lotaram o Sport, acenderam fogueira para se aquecer, viraram noite assistindo (muitos pela primeira vez) nomes que começavam a crescer no cenário brasileiro e outros que já eram, então, consagrados. Foi o dia 13 de agosto de 1983 o começo de uma era, pode-se dizer: Juiz de Fora abre suas portas – e as portas de Minas Gerais – ao rock nacional (antes, inclusive, do Rock in Rio, que só foi realizado dois anos depois). Muita coisa mudou, e as memórias resistem ao tempo.
Tudo começou assim: um grupo de jovens de Palma editava um jornal da cidade e, a partir dele, passou a realizar alguns eventos culturais, como o Festival de Música Popular de Palma, entre outros. Já em Juiz de Fora, foi criada a Revista Bizzu. O intuito dela era falar sobre arte e cultura, mas, principalmente, a contracultura da cidade e da região, refletindo um cenário crescente no Brasil. Os colunistas eram majoritariamente atuantes na cultura juiz-forana. Outros escreviam do Rio de Janeiro. Por trás disso, um principal nome agitava toda essa organização: Marcos Petrillo. Ele e Fábio Ribeiro, na verdade, formavam a dupla principal de tudo isso. Petrillo, no momento, passa por cuidados de saúde e, por isso, está mais recluso. Fábio, então, é quem conta o começo dessa história. Mas com uma frase que ele repete constantemente: “O responsável por isso é o Petrillo”.
Os dois andavam pelas ruas de Juiz de Fora, à tarde, buscando patrocínio para a Bizzu. Pela manhã, ficavam em casa, cuidando da filha de Petrillo. O almoço era assistindo ao Jornal Hoje. Naquele dia, passou uma matéria sobre os Menudos, que lotaram um estádio com 50 mil pessoas. Eles assistiram. Quase não teceram comentários sobre. Mas aquilo ficou na cabeça. Eles foram, então, mais um dia para a rua. “Sabe aquele dia que tudo é não? A gente só ouviu não aquele dia”, lembra Fábio. “Aí sentamos na escada do Parque Halfeld. O Petrillo virou para mim e falou: ‘Fabinho, você viu aquela matéria dos Menudos, 50 mil pessoas no estádio. Eu acho que está na hora de voltar os grandes festivais. Vamos fazer um Festival de Rock?’ Do nada. E eu falei: ‘vamos’.” Uma conversa como qualquer outra de dois amigos que queriam mudar os rumos da cultura de uma cidade e que virou coisa séria. Isso porque vários repórteres da Tribuna, naquela época, tinham contato com Petrillo, acompanhavam sua agitação e até escreviam na Bizzu, e ele tinha portas abertas na redação. Eles foram à sede, falaram que iam fazer um festival de rock no ano seguinte. Isso foi pauta no jornal do próxima dia. “Aí não teve jeito. A gente teve que fazer”, diz Fábio.
O ensejo foi esse. Bastou a conversa e começou, então, a produção. As Noites do Bizzu já aconteciam, sempre no lançamento de uma edição da revista, promovendo apresentações de shows com nomes da música da região, principalmente. Eles já estavam treinados em eventos, mas não em um tão grande. O lugar para o grande acontecimento eles já imaginavam: o Sport. “Lá já tinha essa coisa de shows no ginásio. Mas a gente precisava de um espaço maior por causa da quantidade de bandas. O local só poderia ser o campo do Sport”, afirma Fábio. Sobre as bandas, também foi tudo facilitado pelo contato que Petrillo nutria com produtores de outros lugares. “O Petrillo sempre foi muito ligado ao que estava acontecendo no rock, principalmente por causa da ligação dele com o pessoal do Rio de Janeiro. Ele sabia o que estava surgindo no meio do rock. Outras pessoas estavam bem inteiradas com o punk e escreviam na Bizzu. Tanto que foi quase um festival de punk no meio do rock. As coisas vão acontecendo. E uma coisa que ele sempre quis foi colocar as bandas locais. Nesse festival teve. Petrillo gostava era do happening. Queria que fizesse essa coisa de não sei quantas bandas. O negócio dele era esse.” Apesar dessa parceria entre a dupla responsável pela ideia-primeira, Fábio acabou precisando sair da organização do festival, que já era realidade. Mas fez questão de ir ao evento. Não perderia aquele acontecimento por nada.
‘Todo mundo ficava livre’
Na programação, nomes que começavam a ganhar destaque no cenário do rock brasileiro, outros consagrados, alguns da cidade, como Fábio disse que Petrillo fazia questão de incluir. Coquetel Molotov, Lixomania, Olho Seco, Cólera, Dahal, Toccata, Rogério SkyLab, Beatles Forever, Barão Vermelho, Sangue da Cidade, Lobão, Erasmo Carlos e Raul Seixas, nessa ordem, compunham a lista de artistas a ocupar um único palco naquele dia, dividindo até instrumentos. Chico Bustamante, integrante do Beatles Forever, lembra como se fosse ontem daquele dia. “Como não vou lembrar? Esse dia foi inesquecível. Parecia um Woodstock.” Ele e Fábio, juntos, rememoram que o convite partiu, principalmente, depois que a banda de tributo aos Beatles fez uma Noite do Bizzu, até então, o maior público que eles tinham tido. E, de acordo com eles, foi “quebradeira” aquela noite. “A gente não tinha a menor noção, só queria tocar. Para gente tanto fazia o lugar”, afirma Chico.
Já no Sport, o impacto foi maior. “Depois a gente viu que era super produção. Viemos aqui cedo, ver a montagem, vi os equipamentos profissionais, a gente nunca tinha tocado com isso, e viu que ia ficar legal. A gente ia tocar cedo, tipo 18h, mas teve um atraso. A gente ficou fazendo a divisão entre as regionais e as nacionais. Acabava a gente e começava Barão, Sangue da Cidade, Lobão, Erasmo e Raul. A gente foi tocar era 22h30, então a gente pegou isso lotado, borbulhando”, relembra, no Sport, apontando para os espaços. O primeiro Festival de Rock estava programado para começar às 12h. O que não aconteceu, por causa desses atrasos.
Chico lembra de um episódio inusitado: “O Perfeito Fortuna que estava fazendo o mestre de cerimônia. A gente tinha o nosso apresentador, que era o João Coruja. E ele queria apresentar. E eu pedi o Perfeito Fortuna para apresentar o apresentador. E ele fez. Aquilo foi incrível. E depois ele apresentou a gente”. A plateia era formada por pessoas que curtiam mesmo o som, alguns tantos amigos da turma. O show, para ele, passou rápido. Eles tiveram que tocar menos exatamente por conta do atraso. Durou cerca de 50 min. Atrás deles, as outras bandas circulavam o palco, atentos aos shows, curtindo o momento, ajudando se necessário. “Ninguém passou som. Todo mundo subia e tocava. Os instrumentos já estavam colocados. Chegava e tocava e deu certo. Não tem frescura. Durante o show, as bandas iam arrumando, mas a gente nem estava preocupado, queria tocar. Todo mundo ficava livre.”
Uma celebração
Por conta do horário do show, Chico, por exemplo, chegou a ir em casa antes de tocar, já que teria que esperar mais um pouco até chegar sua hora. Fábio ficou lá o tempo todo. Quando necessário, ia descansar na arquibancada, até tirar um cochilo. O frio ali não foi problema. As fogueiras resolviam. “Frio foi bom. Festival de rock tem que ser no frio”, afirma Chico. Ele sentiu o atraso porque fazia parte da turma, ou seja, afetava ele. Fábio sabia que tinha alguma coisa acontecendo, Erasmo demorou a subir. “Me parece que foi problema de pagamento. Foi um custo para eles convencerem Raul e Erasmo a subirem. Mas acabaram subindo e tudo mais.” Mas, para Oseir Cassola, ex-editora da Tribuna, que, naquele ano, apenas assistiu, enquanto nos outros atuou como assessora de imprensa, o atraso não foi problema nenhum. “A gente estava em celebração ali, bebendo, curtindo. Para mim, não mudou nada.”
Fato é que seu deslumbre era maior. Amante do rock, foi, naquele 13 de agosto de 1983, a primeira vez que ela viu muitos de seus ídolos reunidos. “Só quem adquiria discos conhecia aquilo, através da imprensa, e de repente você vê na sua cidade, sem precisar se deslocar. Foi fantástico. Foi uma grande celebração ao rock e à cidade. Por que Juiz de Fora? Petrillo poderia levar essa estrutura para qualquer lugar, mas ele tinha uma ligação com Juiz de Fora.” Em consenso, para Fábio e Chico, o grande momento foi o show da banda Sangue da Cidade que, na época, era um dos maiores nomes do rock no Brasil. Já para Oseir, não há dúvida: “Foi o do Raul Seixas. Foi o primeiro show que eu vi dele”, justifica. A festa acabou lá pelas 4h, mas, de certa forma, seguiu.
Geração apaixonada pelo rock
“Petrillo era um cara muito batalhador. Entrava em todos os circuitos. Tinha passagem livre nos grandes jornais da época. E ia com a cara e a coragem. E ele colocou Juiz de Fora na rota de shows nacionais”, afirma Oseir. Para além de colocar Juiz de Fora no centro das atividades rockeiras, logo em seguida, eles contam que o interesse pelo rock na cidade também aumentou. “O que eu acho que aconteceu é que o Festival teve contribuição para os músicos de rock em Juiz de Fora. Sabe aquela molecada que estava querendo tocar, querendo fazer coisas e não sabia o que é, quando faz o festival e coloca bandas da cidade, inclusive, a molecada quis tocar. Ficou próximo. Não é essa coisa de São Paulo, Rio de Janeiro”, diz Fábio.
Chico, completa: “Todo mundo queria uma guitarra depois do festival”, relembrando que o Beatles Forever, depois disso, de certa forma, se tornou referência da turma da sua geração. “O pessoal, amigos nossos, viu que a gente tocou lá, viu que o caminho estava aberto e quis entrar também. Começou muita coisa por causa do festival.” Além desse interesse pelos instrumentos ter aumentado, o próprio Beatles Forever passou a ser mais conhecido. “Por causa do festival a gente começou a circular. Se não fosse o festival a gente ia demorar mais para circular e talvez fosse tentado a deixar a música. Deu uma acelerada. A gente cortou um atalho danado, aquilo deu visibilidade.”
O rastro
Com o crescimento das bandas de rock, o surgimento de outras no cenário brasileiro, um fôlego para mais eventos, logo aconteceu o segundo festival, depois o terceiro e o quarto, em 1985, 1989 e 1993, respectivamente. Nos seguintes, Fábio e Oseir fizeram parte mesmo, um na organização, outro na assessoria. O segundo, por motivos óbvios, não aconteceu no Sport. Foi, na verdade, o primeiro evento de música no Jóquei, no Parque de Exposição, mesmo lugar que recebeu a terceira edição. Já a quarta, aconteceu no Bernardo Mascarenhas. Tudo histórico. “Acho que no Bernardo Mascarenhas foi o maior evento depois que lá se tornou um centro cultural. Ele trouxe uma atração internacional, Nabby Clifford. Teve um show do Celso Blues Boy, que o Petrillo trouxe, e ele se apresentou em uma madrugada muito fria. O hit dele da época falava ‘Sentindo calor, tremendo de frio’. Um frio do caramba e a galera a mil. Eu guardo, lembro muito. São pequenas lembranças pessoais que eu carrego, mas no profissional me fortaleceu muito e me mostrou um outro mundo: de unir o que eu amava: jornalismo e música”, conta Oseir, emocionada.
Tudo, como todo mundo faz questão de lembrar, por causa do Petrillo. “Ele com toda garra. Era um cara que foi por puro amor à música e a produção musical”, afirma Oseir. O sucesso era tanto, em tudo, que ela lembra de ouvir o Petrillo se perguntando onde isso tudo ia dar. Quase deu em um quinto Festival de Rock. “Mas aí veio o Plano Collor, que confiscou a poupança”, lamenta Oseir. Mesmo com isso, o festival continua, até hoje. “Você vê que a Bandas Novas acaba surgindo a partir da ideia do Festival de Rock, depois veio o JF Rock City, tudo realmente buscando esse modelo do Petrillo”, sugere Fábio. O que Oseir concorda, e finaliza: “Isso ficou marcado, esse rastro. Acho que até hoje as pessoas seguem o que ele fez”.