Antony chegou à Tribuna cumprimentando-me à moda brasileira: com dois beijinhos, sem qualquer estranheza – como às vezes acontece com estrangeiros não familiarizados ao nosso simpático costume beijoqueiro de saudar mesmo pessoas desconhecidas. Foi o primeiro indício de que o cineasta não se prende a normas. Em Juiz de Fora, como atração da Semana Rainbow, Antony Hicking terá uma trilogia sua exibida como parte da Mostra de Cinema Queer da Semana Rainbow da UFJF, realizada no Mamm. Nesta quarta (14), será exibido o primeiro, “Little gay boy” (2013); seguido por “Where horses go to die” (2016) que passa no dia 15; e “Frig” (2018), que se divide em três partes (“Love”, “Shit” e “Sperm”, que encerra o evento no dia 16.
Durante a conversa, Antony me disse que é nascido em Joanesburgo (África do Sul), filho de pai indiano e mãe inglesa, e que vive no Reino Unido, mas passou boa tarde da vida em Paris. “Esse meu passado se relaciona com essa trilogia e meu trabalho em geral. Fui ator e diretor de teatro em Manchester por sete anos e depois fui para Paris, onde voltei à vida universitária para fazer artes cênicas em suas mais variadas linguagens. Fiz dois mestrados e um doutorado pesquisando arte queer, o que incluía performances de todo tipo: dança, teatro, tudo! Até que cheguei ao cinema. Então meu cinema engloba todo esse passado: a pesquisa queer, o palco, a dança, a atuação. Meu cinema é um crossover de artes”, diz ele. Nada poderia ser mais queer.
Cada vez mais discutido, o termo “queer” designa pessoas, manifestações, expressões e tudo que busca reafirmar o rompimento com a heteronormatividade e a(s) normatividade (s) de forma geral. “Inclusive acho importantíssimo que meu trabalho provoque, incite à reflexão não apenas as pessoas fora da comunidade LGBTQ+ por motivos óbvios, mas também cutucar as pessoas dentro da comunidade. Eu quero que atinja ambos os grupos. Na comunidade gay, por exemplo, há uma grande questão entre as gerações mais velhas, que sobreviveram à Aids e que questionam se a luta deles e delas foi para que a comunidade LGBTQ+ se enquadrasse cada vez mais ao heteronormativismo: casar, ter filhos. Eles pensam: ‘é por isso que fizemos tanto? É por isso que perdemos tantas pessoas? Para caber neste padrão?'”, diz ele.
Ao falar sobre o trabalho exibido no evento da UFJF, ele compara o processo de criação à pintura. “Quando comecei, não sabia que seria uma trilogia. Usei minhas experiências pessoais como um ponto de partida e comecei a ‘pintar’. Quando acabei “Little gay boy”, pensei ‘ok, acabou’. Depois pensei que a história precisava de uns retoques, não estava acabada de fato e quando vi, saiu “Where horses go to die”. Fiz outras coisas, uns filmes mais clássicos, mas senti que precisava de um último filme, e “Frig” é a última pincelada nessa obra. Mas veja, foi a arte que me mostrou que o processo estava terminado. Enquanto isso não aconteceu, eu sentia sempre um impulso de continuar criando sobre aquele trabalho”, conta o artista queer, que chamamos aqui assim porque é como Antony almeja ser reconhecido por seu trabalho. “Eu abracei o rótulo LGBTQ+, gay queer, não só porque é parte de mim, mas é o meu trabalho também. E, apesar de fazer filmes, meu processo criativo é muito artístico, da criação que vai nos impulsionando. Então sim, um artista queer”.
Tribuna – Como você descreveria os três filmes que serão exibidos em Juiz de Fora?
Antony Hicking – Eles são todos histórias pessoais. Trazem minha história, meus pais aparecem neles… então parti desse ponto e comecei a criar em cima deles. É o que eu chamo de metodologia pessoal. Em ‘Little gay boy’, por exemplo, meu pai e minha mãe são, respectivamente, Deus e a Virgem Maria, daí você imagina o que isso não causou por abordar símbolos religiosos tão icônicos (risos). “Where horses go to die”….
Eu amei esse título, é tão poético!
Não é? O filme é muito poético, ele explora o universo da sexualidade e o universo queer, e/ou eu como artista olhando para onde quer ir no próximo passo. “Frig” completa esse ciclo, é a última parte, completa um ciclo, e é a história do fim de um relacionamento, uma história pessoal mais uma vez. Em um nível, todos eles são autobiográficos, mas eles não são só isso (ainda bem!). O movimento queer tem origem na literatura, é sobre reler a literatura, recontar histórias. No meu caso, neste trabalho, recontar a Bíblia, recontar Oscar Wilde, DH Lawrence, todas as referências homossexuais, historicamente ignoradas, aparecem nestas releituras. Acho que eles são uma exploração de o que é queer para mim, uma inspiração de diferentes artes para comunicar sentimentos, pensamentos, reflexões, de uma maneira não convencional. Esse era o objetivo. Eu chamo as minhas experiências de vida de potinhos de tinta – para continuar com a metáfora de pintura – todas elas são ferramentas que eu usei e uso para criar essa mistura vibrante de diferentes estilos. É difícil assistir aos meus filmes, mostrá-los, porque eles são tão íntimos, mas ao mesmo tempo, acredito que para se comunicar com alguém é preciso partir do que é real. Pelo menos na minha visão como artista.
E desde o primeiro filme da trilogia, as discussões sobre queer foram crescendo cada vez mais, como isso foi afetando seu trabalho?
Exato, a discussão cresceu muito. Quando me formei em Manchester, lá por 1999, escrevi uma tese que abordava o queer. Anos depois, em Paris, no departamento de teatro em que estudei, as pessoas ficavam se perguntando o que era queer, porque em francês não faz sentido, a palavra queer significa ‘couro’. Eles me perguntavam, e eu continuava realizando pesquisas e trabalhos queer, sem me preocupar muito em defini-los. Mas fui continuando….
Nossa, e isso é totalmente queer! (risos)
Exatamente (risos). E o movimento queer foi se tornando uma coisa maior, sendo mais debatido em várias esferas, de direitos LGBTQ+ de forma geral, por exemplo, há portas se abrindo no mundo. Quer dizer, o fascismo está aí, né? O fascismo é uma reação a estas portas abertas. Mas a arte sempre foi e sempre será uma resposta contra ele. Estou feliz de estar exibindo meus filmes agora. É uma época aterrorizante para se ser brasileiro. Mas também é na Europa. Fico vendo políticos ultraconservadores como Thereza May Boris Johnson, vejo o fascismo na Itália, na Rússia, enfim…. Eu penso que meus filmes fazem frente a isso, são provocativos, levam a pensar. “Frig” trata dos gays assassinados na Chechenia, por exemplo! São filmes difíceis, mas a gente está vivendo num mundo difícil pra cacete! Eu me tornei um ativista, não faço filmes que você vê e fala ‘ah que lindo!’ e vai para a cama dormir. Estou aqui para provocar mudança com meu trabalho, e é por isso que estou tão feliz em estar no Brasil agora. É este o sentido da arte.
Para terminar, qual é a importância de eventos como a Semana Rainbow?
Para mim, e espero que para muita gente, está na visibilidade da batalha que mencionei antes. É um sinal de liberdade, de voz, e tem muita gente que quer calar essas vozes. Além de tudo, é um incentivo para que festivais como este continuem acontecendo. O que mais me encanta num evento como este, e nos similares a ele – porque existem muitos formatos – é a diversidade de expressões que ele abarca: teatro, filme, palestras, pintura, fotografia. Eles são totalmente transdisciplinares, há muitas vozes contando histórias de muitas formas. São um espaço de aprender, trocar e compartilhar com a comunidade, com quem é e o que é queer. Porque queer não diz respeito só a ser LGBTQ+. E o simples fato de que a Semana Rainbow existe é um sinal forte de esperança.
Mostra de Cinema Queer
Dias 14 (“Little gay boy” – ficção 2013), 15 (“Where horses go die – ficção 2016) e 16 (“Frig” – ficção 2018), às 19h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790)