Parecia 1983: quando o Tenente Laranja (apelido de Aécio) e seus amigos se reuniram no Bar Redentor para serem registrados, irreverentes e ferozes, pelas ruas da cidade. Quando dois daqueles jovens entre 15 e 25 anos abriram suas calças e mostraram o sexo. Quando andaram cantando “Violência é o que vejo,/ em todo canto da cidade/ pessoas que se matam à toa,/ por qualquer banalidade” de uma estreante banda Lixomania. Quando picharam paredes; pararam, aos gritos, o trânsito; posaram para o flash da câmera analógica de Nicoline. Tudo sob os mesmos olhares oblíquos.
A estranheza é a mesma. Todo o resto mudou. Os fios ralos com as raízes brancas do cabelo de Aécio denunciam: 35 anos se passaram. Tempo bastante para a ausência de uns e a distância de outros. O retrato foi alterado. O inconformismo, não. “Sempre vivi o punk. E vivo até hoje”, reconhece Aécio, o primeiro punk juiz-forano a completar 60 anos, em 2018, mesmo ano em que a primeira banda do gênero no Brasil, a paulista Restos de Nada, celebraria 40 anos.
“A aparência pode ter se transformado de acordo com o tempo, mas o coração é o mesmo, com a mesma revolta, com a mesma impossibilidade, com o mesmo Brasil, que não mudou nada. Subiram os prédios, mas o Exército, a polícia, a saúde, a educação estão a mesma merda, com cada vez mais pressão em cima de quem eles (o governo) chamam de vagabundos, os caras dos morros. Meu idealismo é o mesmo, sou altamente niilista, pelo fim de tudo. O movimento punk foi um alerta, mas quem poderia mudar se omitiu e se vendeu.”
O grito de Aécio mantém-se como parecem manter-se as questões das quais mostrou-se frontalmente contrário em 7 de agosto de 1983, na primeira reportagem publicada pela Tribuna sobre o movimento iniciado em Juiz de Fora cinco anos antes, em 1978. Ontem é hoje: “Está mais que claro que o poder quer acabar com a gente aos poucos, para se enriquecer mais e mais em cima de pessoas puras, sem estudo e sem conhecimento para entender o jogo deles”, dizia Paulo Sérgio Gomes, o Vietnã (morto no início dos anos 2000), na reportagem. “Então, vamos partir, vamos gritar, enquanto podemos, vamos mostrar que não estamos dormindo.”
“Punk é o cara que procura se conscientizar e não se alienar. Punk é um revoltado contra o sistema. Punk não é de briga, é antiagressão. Punk não usa droga, é o careta mais doido da sequência. Punk é explorado pelo esquema e que vai de encontro a ele. Punk procura roupas escuras, velhas, rasgadas, para mostrar que está sendo agredido e violentado pelo sistema. Punk usa correntes para mostrar a violência que cega a mente de milhares de inocentes. Punk se faz com grampos e alfinetes, broches e bótons, para brilhar o seu visual. Ser punk é fazer do lixo um luxo”
Tenente Laranja (Aécio Silva) na reportagem da Tribuna de 1983
A história’n’roll do fotógrafo
Sobreviventes e resistentes, os personagens fotografados por Humberto Nicoline retornam ao foco na série de reportagens “Tempo Punk”, que a Tribuna publica a partir deste domingo, retratando o tiquetaquear do relógio para a geração que tomou para si um nome compreendido como “prostituto” e o transformou em sinônimo do que é complexo, difícil ou forte. “Eles eram muito aguerridos contra o fascismo. Inclusive, nas fotos, eles aparecem com os rostos desenhados com a suásticas e um xis em cima. Eles andavam no meio da Rio Branco. Gritavam, batiam correntes no chão, pegavam o casaco e jogavam no chão. Muito antes de ter o grito dos excluídos, eles saíam para protestar. Estavam politizados em relação à ditadura militar. A anarquia deles era comportamental, romperam com as regras. Eles é que punham a cara na rua num tempo em que a 4ª Região Militar de Juiz de Fora era poderosa”, recorda-se o autor das imagens que se tornaram símbolo do movimento não apenas na cidade, mas no país.
“Fotografava naturalmente, não imaginava que contava uma história”, observa Nicoline, então fotojornalista da Tribuna. Quatro anos depois dos cliques, em 1987, ele deixou Juiz de Fora para trabalhar na sede da Tribuna de Minas em Belo Horizonte, até 1989. Na capital permaneceu, trabalhando no folhetim “Hoje em Dia”, casou-se, teve dois filhos (Gabriel e Luiza), e, em 2003, regressou a sua terra natal, assumindo a editoria de fotografia do extinto folhetim “Panorama”. Aposentado há cinco anos, o profissional que há dois anos atua registrando a atividade da Câmara Municipal soma 63 aniversários que fizeram grisalhos seu cabelo e sua barba, mas deixaram intocáveis o rock progressivo de Led Zeppelin e Pink Floyd no fone de ouvido. “Comprei uma camiseta agora do ‘Homem Vitruviano’, do Leonardo da Vinci, mas metade dele é o homem e a outra metade é uma guitarra”, ri ele, que admirava mas não seguia os passos de Sex Pistol, Ramones, The Saints e The Clash, que nunca saíram do amplificador de seu fotografado Aécio: “A música era uma barulhada. Era o punk!”.
Ele só queria uma jaqueta transada
Vestia uma jaqueta jeans tradicional e a rebeldia própria dos jovens. Quando Helton Ribeiro conheceu o punk como fenômeno londrino, faltava-lhe a expressão nacional. Num fim de semana com os pais, na natal Volta Redonda, no sul fluminense, viu a banda Cólera na TV. “Fiquei chapado!”, lembra. Faltava-lhe, então, a manifestação local, na Juiz de Fora onde cursava Comunicação Social. Nas páginas da Tribuna, encontrou as pistas e conheceu Aécio Silva. Não faltava mais nada. “Eu estava com uma jaqueta jeans, e ele me falou: ‘Deixe essa jaqueta comigo, que vou transar ela’. Aí ele tirou a dele e deixou comigo até ele ‘transar’ a minha, colocando tachinhas e outros adereços”, conta.
No dia seguinte, Helton surgiu na fila do Restaurante Universitário da UFJF com a tal vestimenta emprestada, muitos números maior, cheia de pregos, tachinhas e até com um pedaço de alicate de unha. “Ficou todo mundo horrorizado. Foi o assunto do dia na universidade. Muita gente me conhecia, porque eu havia sido diretor do DCE (Diretório Central dos Estudantes) e presidente do DA (Diretório Acadêmico) da faculdade”, recorda-se ele, dizendo ter encontrado outra forma de gritar em tempos de silêncio forçado.
“Havia, principalmente, a insatisfação com a situação do país. Eu tinha me desencantado com o movimento estudantil, e o punk era outra forma de protesto. Naquela época, a gente achava que o movimento poderia se popularizar, agregando muitos milhares de pessoas, parecia uma alternativa. Ao contrário do que acontecia na política universitária, eu gostava daquela música dos punks. Lembro que os líderes estudantis só ouviam Milton Nascimento, e eu achava um saco. O punk era forte, sacudia a gente. O rock vivia aquele momento tedioso do progressivo, solos quilométricos para mostrar que os caras sabiam tocar. O punk virou a mesa.” E revirou Helton.
Não eram apenas os acordes que importavam, mas outros tons sociais, como os enunciados pela banda inglesa Subhumans em sua defesa por uma modernidade menos fluída e mais consciente. “Ela defendia os animais vítimas de experiências em laboratórios. Aquele disco me marcou muito. Hoje sou ativista pelos direitos dos animais”, diz Helton, em entrevista pelo Facebook, direto do Egito. “Vendi minha casa e saí viajando. Não devo voltar”, adianta o profissional, aos 54 anos, com passagem por jornais como “O Globo”, “Folha de S.Paulo”, “Estado de S.Paulo”, além das revistas “Bravo!” e “Bizz”, além da TV Cultura.
“Hoje mantenho o site da minha revista, “Blues’n’Jazz”, e produzo shows eventuais no Bourbon Street Music Club, famosa casa de boa música em São Paulo. Faço tudo on-line, porque há mais de dois anos eu viajo full time pelo mundo”, diz o homem que foi um dos 33 fundadores do Partido Verde (PV), do qual saiu dois anos depois de criada a sigla. “A partir daí, desisti de participar de movimentos e passei a atuar sozinho, pela minha própria consciência. O punk, embora fosse um movimento, já tinha essa ideia de ‘Faça você mesmo!’. Se as coisas estão erradas, lute pra mudar!.”
Para Virginia Guilhon Loures, que ao lado de Aécio sedimentou o primeiro trecho da estrada punk em Juiz de Fora, o que estava por trás de moicanos, vestes negras, correntes e bat boots era o desejo de romper com o padronização. “Querer mostrar que sou única e isso é quebrar com o sistema. A ideia por trás do punk era se mostrar verdadeiramente, do jeito que quisesse, e não concordar com esse player que vemos por aí. Era saber que existe um teatro onde todo mundo está fazendo o drama da vida”, reflete.
“Hoje em dia, se bobear, o cara sai do salão de beleza com moicano esticado. Sempre achei um absurdo o cara comprar uma calça rasgada. A nossa ideia era: se a calça rasgou, foda-se! Comprar uma é um desvio. Isso é uma absorção do sistema”, discute Renato Resende, Rato para os amigos punks. “Muita gente ainda está dormindo, sendo conduzido como gado, completamente dominado pelo ego vil. Tudo é transitório, transmutável, e precisamos buscar o imutável que existe e que está além da terra física”, alerta Virginia, apontando para o movimento como o escape para um discurso que era roupa e era corpo: “Sempre quis me conhecer. Eu não cabia em mim. Socialmente queria colocar isso, e internamente também.”
Não concordo, logo, não faço
Billy tinha um visual pesado. Carregava uma tatuagem na bunda. Era punk. Morava no Rio de Janeiro, onde Fernanda Tabet o conheceu. O namoro dos dois não resistiu. O encantamento dela, porém, persistiu. E encontrou vazão quando ela conheceu Vietnã, um juiz-forano como ela e punk como ele. “Gostei da ideologia da liberdade, do anarquismo, da roupa preta, que eu sempre usei”, lembra ela, que, adolescente, ganhava dinheiro fazendo pequenas restaurações em gesso e cerâmica, além da mesada dos rígidos pais.
“Teve uma vez que meu pai falou comigo: ‘Se você sair de casa assim, eu te quebro’. Eu estava toda montada, com moicano, morava no alto da Rio Branco e falei: ‘Está bom. Vou tirar’. Coloquei uma qualquer e quando cheguei no Centro, troquei tudo de novo. Se eu estivesse cansada no meio da noite, querendo ir embora, ligava para a polícia, falava que tinha alguém me perseguindo e acabava indo de camburão para casa. Cansei de fazer isso”, ri. E confessa: “Não sei se era tão consciente, mas lutava. Andar de preto era estar de luto diante da miséria, defendendo o proletariado, questionando o consumismo. E gritávamos.”
Numa interpretação entre o nonsense e o romântico, Aécio Silva redefine as caretas dos tempos passados. “Éramos corações tão bons, e o punk era uma proteção contra tudo o que existia de ruim. Fazia uma careta, dizendo: A mim, não! Não venha entrar na minha onda, que é de paz! Sai pra lá com sua inveja, seus ciúmes, seus tabus, seu Deus, seu sexo, suas drogas! Era uma carapaça”, conta, apontando para uma postura quase conservadora presente nos primeiros anos do movimento na cidade e no mundo. Ingênuos, não.
“Tem horas que sou conformada de outras formas, porque há uma opressão. É difícil nascer livre e, aos poucos, ser oprimida. Não adianta estar fora da cadeia e ser presa. Com a maturidade, a gente perde acessos e perde a coragem”
Fernanda Tabet
“Uma vez levei o Cólera para tocar em Volta Redonda, e, antes do show, o clube tocou disco music. De repente vi o Val, baixista da banda, dançando na pista. Depois eu perguntei: ‘Você gosta disso?’. E ele respondeu: ‘Não! Mas se não dançar não arrumo mulher'”, recorda-se Helton Ribeiro. “Era aquela vivência do risco não calculado”, defende Fernanda, que na mesma década de 1980 em que adentrou o movimento, dele saiu. “Fui expulsa de vários colégios, vendia pirulitos de chocolate dos Picassos Falsos, fiz cartões e vendia na noite, estudei para fazer medicina, fui e voltei do Rio, joguei cartas, comecei a pintar, fiz enfermagem e escolhi nunca ter patrão. Nunca tive uma carteira assinada na vida. Nem sei o que é carteira de trabalho. Isso ficou do punk.”
Com os olhos cheios d’água, Fernanda, uma mulher alta, de gestos largos e um onipresente cigarro entre os dedos, mostra, aos 52 anos, as marcas que o movimento lhe deixou. Olha para os lados e mostra o brechó que há alguns anos mantém no Centro de Juiz de Fora. Aponta para a frente, para a rua onde diariamente é confrontada com as margens da cidade e diz: “Não concordo. Sou muito sensível à miséria humana, em todos os sentidos. Não concordo, não aceito ver alguém com necessidades e passar direto. Não concordo com a ideia do poder. E as pessoas hoje querem ter dinheiro para ter poder. Não aceito e luto de alguma forma para que essas coisas não continuem acontecendo. Não posso ficar calada, ser conivente. O punk me trouxe a noção de justiça.”
Inconformismo, Fernanda? “Tem horas que sou conformada de outras formas, porque há uma opressão. É difícil nascer livre e, aos poucos, ser oprimida. Não adianta estar fora da cadeia e ser presa. Com a maturidade, a gente perde acessos e perde a coragem”, lamenta. Aécio Silva concorda. Dificilmente faria o que fez naquela sua juventude dos anos 1970. Um dia, chegou a um vernissage de pinturas de um artista fluminense numa casa na Rua Pasteur. Aécio e sua turma entraram no ambiente. “Não podia dar minha pincelada punk nela, porque a exposição era extremamente classista”, diz. O artista chegou perto e perguntou o que achavam. Aécio respondeu: “Achei maneiro, muito em paz, mas, de repente, merecia um risco preto no quadro da entrada”. O artista perguntou como, e ele explicou. O autor das telas sacou uma caneta e prontamente fez o risco. “Passei uma ideia punk, e ele aceitou”.
Abaixo, assista à primeira parte do minidoc “Tempo punk: 35 anos depois”.
A força desarmada dos festivais
Desviou da pedrada anos antes. Baterista da Força Desarmada, primeira banda punk da cidade, Aloisio Gusmão, o Lupídio, despediu-se da formação dias antes do 1º Festival de Rock de Juiz de Fora, que tomou o estádio do Sport Club no dia 13 de agosto de 1983, tendo Lobão, Barão Vermelho e Erasmo Carlos como principais atrações. Lupídio também não estava sob os holofotes na segunda, em maio de 1985, quando o grupo se apresentou logo depois de Renato Russo e sua Legião Urbana descerem do palco.
“Tomamos muitas pedradas nesse festival. Era pesado. Foi louco tocar depois do Legião, que estava no começo da carreira. Outra coisa era o som, que na frente estava bom, mas no fundo não chegava. Só que a gente não estava lá para tocar. A gente estava lá para protestar. A galera não entendeu”, conta, aos risos, Renato Resende, o Rato, um dos componentes da banda.
Na bateria, naquele segundo festival, estava Paulo Sérgio Gomes, o Vietnã, a face e a força do movimento. “Até hoje não vi um cara tocando bateria como ele”, elogia Rato. “Ele era bem espontâneo. Topava tudo. E não usava um vocabulário normal, preferia as expressões e os sons”, recorda-se Aécio Silva. O cabelo moicano e a pose de mal caiam muito bem a Vietnã. Ele, Helder Hartung (o Don Helder), Marco Aurélio Jambo (o Coréia) e Adilson de Carvalho (o Comprimido) esvaziaram a cena nos últimos anos, em precoces mortes.
Dos festivais, Lupídio guarda memórias afetivas, caseiras. “Boa parte das bandas ficou na minha casa, porque tinha dois andares, e eles ficaram embaixo. Foi lindo. Era uma turma consciente, que levantou cedo, sem eu saber. Quando acordei, ouvi aqueles punks todos tomando café com meu pai, que não deixou eles saírem de barriga vazia”, diz o homem de 57 anos. O abrigo anunciaria o lugar que Lupídio desejava para si: os de produtor. “Sempre gostei de organizar shows. Quando o Patrulha 666 começou a tocar em vários lugares, eu e o Adriano 66 (Adriano Polisseni) vimos que podíamos organizar eventos culturais. Não éramos produtores, mas fomos com a cara e a coragem”, pontua ele, referindo-se a outro importante personagem da cena, responsável pela formação de gerações de espectadores e músicos em seus festivais de Bandas Novas.
“Começaram a surgir muitas bandas querendo tocar, e já existia um nível bem legal de profissionalismo. O punk, para mim, foi uma escola cultural. Abriu muitas portas”
Aloisio Gusmão (Lupídio)
Na década de 1990, Lupídio resolveu investir numa estamparia, como já fazia desde os anos 1980. “Mas ainda mexia com shows. Começaram a surgir muitas bandas querendo tocar, e já existia um nível bem legal de profissionalismo. O punk, para mim, foi uma escola cultural. Abriu muitas portas.”
Casa ocupada e fundo do poço
O apelido, Renato Resende garante remontar à sua estadia no Exército. “Todo mundo era tratado como rato”, diz. Manteve-se, contudo, coerente. Renato, o Rato, conheceu o esgoto da vida e as superfícies mais assépticas. “Vivi muita loucura! Toquei em várias bandas da cidade, como a Subefeito e a Patrulha 66. Já fiz som pra caralho. Fiquei muito doido, usei muita droga, num lance de suicídio mesmo. Fiquei fora do planeta, um ano sem tomar banho, desandando a vida. Foi de 2002 até 2012. Mas tem umas coisas que são de adolescente, que é naturalmente rebelde. Passa um tempo, e muita gente desvia, encareta. Eu estou acelerando até hoje, mas mudei em conceitos. Não tenho mais a esperança de mudar a sociedade, mas levo uma vida anárquica. Tenho uma fabriquinha de adesivos que é anarquia pura no sistema de trabalho. Passei para o dia a dia a anarquia, ao invés de ser uma bandeira e um litro de cachaça. Vivo dia após dia”, conta.
A postura combativa foi preservada, assim como o Fusca amarelo no qual transita pela cidade. No passado, o combate estava expresso na invasão de uma casa na Rua Paula Lima. Hoje resta na opção por viver atrás de um salão de festas, no Bairro Recanto dos Lagos, cercado por montanhas, hortas, bois e seus cachorros. “Na maior paz”, diz. “O movimento era criar suas próprias perguntas e respostas sem ser teleguiado. Hoje estou mais punk do que nunca, mas detesto o punk rock que não é de protesto, acho um saco.”
Como filosofia internacional dos punks, a virtuose do som não era o que mais importava. “Sou de uma época em que a gente montava os instrumentos. O lance da importação era mais difícil. Então sempre tocamos em aparelhagem vagabunda”, recorda-se ele, aos 54 anos. Valia o grito de raiva, que hoje o gráfico freelancer não ouve mais. Prefere o grito de fé. “Sabe o que estou curtindo? Som gospel. O rock está falido. Estou de saco cheio. Até gostava de Jota Quest, do suingue dos caras, mas dentro desse mundo caótico os caras ficam cantando canções de amor. Se ainda fosse o Cazuza…”
“Passa um tempo, e muita gente desvia, encareta. Eu estou acelerando até hoje, mas mudei em conceitos. Não tenho mais a esperança de mudar a sociedade, mas levo uma vida anárquica”
Renato Resende (Rato)
O Brasil de hoje é um caminhão tombado na estrada
Contra a Usina Nuclear de Angra dos Reis. Contra a repressão dos militares. Contra a carne podre vendida em supermercados. Contra o conservadorismo. Contra o fechamento do Bar Atrás das Bananeiras. Contra a interrupção das obras do Teatro Paschoal Carlos Magno. Por trás da proliferação de reivindicações no punho cerrado dos punks que tomavam as ruas de Juiz de Fora na década de 1980, estava um projeto de país que nunca saiu do papel. Por isso a desolação de Schopen Charles Tavares, o Charles.
“Já havia as ideias, o cabelo sempre gostei curto, a roupa era a que eu tinha mesmo. Não tinha frescura. Ideologia não tem época, movimento, nada. Hoje continuo com as mesmas ideias, mas evoluídas, lógico. Tempo para fazer as coisas é modismo. E o cara quando não gosta, não gosta desde cedo, independentemente do tempo. A ideia era protestar contra o governo. Hoje eu já quero que volte para os militares. Sou radical, porque piorou muito. Hoje o país parece um caminhão tombado na estrada, com todo mundo saqueando. Se o exército antes roubava, era em silêncio e para eles. Hoje o cara entra para vereador e sai milionário. Hoje dá para ficar mais revoltado que antes”, afirma.
Com o grisalho do cabelo e as ainda poucas marcas de expressão no rosto a revelar-lhe os 56 anos de estrada, Charles viu nascerem a desconfiança e a desesperança. “O anarquismo é outra coisa que a gente precisa pensar bem. Como seria viver num lugar sem governo? Hoje não vivemos isso?”, indaga. Pai de Gabriel e Gustavo, ainda crianças, recorre à defesa do armamento para civis como argumentação pela proteção dos filhos. “Minha luta agora é pelo futuro deles. Não quero esse Brasil que está aí para eles. Ou eles vão andar armados, ou ficam só dentro de casa.”
Como a situar num passado muito distante aquele jovem que numa das fotos de Humberto Nicoline aparece empunhando o dedo médio para a câmera, Charles não teme que os filhos reproduzam o punk que ele foi. “A revolta que eu tenho passo toda para eles. Se eles chegarem vestidos de punk, vou dizer para não usarem drogas e deixar rolar. Adolescente não tem jeito. Mas se chegar funkeiro, meto o pau. Já falei para eles esperarem eu morrer para escutar funk e sertanejo”, assegura o ex-guitarrista da banda IDR.
Pouco a pouco, o homem que passa os dias numa gráfica caseira revela os rastros que o movimento lhe deixou. “Nunca votei. Nos anos 1980, queimei meus documentos todos. Dessa vez quero tirar o título de eleitor para votar. Uma vez até fiz, por abrir firma. O sistema é assim, te enrosca e não deixa escapar. Mas eu sempre procurei trabalhar à margem, sem depender do sistema. Sempre vivi da minha forma. Tinha uma estamparia, ganhava o meu dinheiro, e o governo não precisava nem saber o que fazia”, diz o homem de 56 anos, reproduzindo gesto de muitos de seus contemporâneos.
“Hoje dá para ficar mais revoltado que antes”
Schopen Charles Tavares
“Voto nulo”, declara Fernanda Tabet, para quem o próprio sistema deve ser responsabilizado pela desarticulação do movimento punk, que em 2018 completa 40 anos no país. “Como todo movimento político, o governo arruma forma de abafar manifestações que sejam maiores. O que acabou com o movimento foi que ele virou moda. Está aí, nas ruas”, argumenta. Está presente como as bandeiras. “De alguma forma, alertamos os jovens, que se apaixonaram pelos nossos cabelos, nossas roupas, nossos brincos. A nossa corrente não demonstrava violência. E nossa droga era a adrenalina de rolar no chão, de levar e dar um soco”, conta Aécio Silva.
O breu impresso na queixa era apenas a sombra, segundo Rato, de intenções mais fecundas. “Tem uns caras que são chatos, só sabem reclamar. Eu falo: Cuidado! Protesta baixo! Porque se o mundo melhorar, vocês estão fodidos! Às vezes, a gente só sabe viver reclamando, mas perde o rumo de um mundo de paz e amor”, reflete. Os dias podem ser melhores, portanto? “Muito difícil, porque o mundo tem que melhorar dentro do coração. Não tem outro caminho”, garante. “A minha ideologia é a prosperidade, o amor, o carinho, o companheirismo. Mas várias vezes tenho vontade de acordar e sair com uma bandeira, sozinha”, afirma Fernanda. Seria punk.
‘Johnny Rotten tem cara de saco cheio’
Se pudesse, tiraria as roupas e voltaria ao prédio que marca a esquina da Avenida Rio Branco com a Halfeld na sua porção do parque. Seria escandaloso, seria violento, seria jocoso. Mas era só desejo, que Virginia Guilhon Loures dissimulou mantendo apenas os pés desnudos e inserindo na cena um cacho de bananas verdes a representar o silêncio de uma Minas profunda na qual plantou seu agora. E posou, sob os olhares oblíquos dos passantes, para a câmera permanentemente engatilhada do fotógrafo Humberto Nicoline.
Fugaz – num aborto provocado pela ligeireza da autocensura -, a ideia da nudez, nas palavras de Virginia, a Virgin, indicava um excesso. Um desnecessário excesso. E há alguns anos a mulher que deixou para trás a agitada e sempre acesa Nova York em nome de viver o silêncio e o breu de Piau, na Zona da Mata mineira, questiona a si mesma e aos outros sobre o que é absolutamente necessário. “Hoje não ouço nada, só os sons dos pássaros, o murmúrio do rio”, conta. Isso é punk, Virginia? Ela ri. É outra. É, de alguma forma, a resposta a um projeto forjado desde o momento em que leu uma reportagem no extinto “Jornal de Músicas”, escrita pela jornalista e cronista do rock Ana Maria Bahiana, cuja primeira frase anunciava: “Johnny Rotten tem cara de saco cheio”. A frase fazia referência à relação que o vocalista do Sex Pistols tinha com o passado, que lhe entediava. Por isso o pontapé para a criação de algo novo, mais enérgico e sombrio. Para isso, John Lydon, o Rotten, precisou romper, como fez Virginia.
Filha caçula de seis irmãos e temporona numa família de classe média, Virginia incorporava paradoxos próprios da modernidade. “Minha mãe era muito conservadora, mas uma pessoa sensível, voltada para as artes. Me dava livros, poesia, e eu ia despertando. Eu era muito ligada a ela, mas precisava guerrear. No final, ela acabou me respeitando tremendamente”, conta. “Desde pequena, sabia que não queria casar e ter filhos, repetindo a mesmice. Amava meus familiares, mas não queria o mesmo sistema de vida. Além da revolta, tinha a espiritualidade, e eu sabia que tínhamos um propósito de transformar.”
Vizinha do Bar Redentor, na esquina da Rua Espírito Santo com a Avenida Rio Branco, ao lado da Catedral, a então repórter da Tribuna recusava a bossa-nova da irmã e esticava os ouvidos para o rock do irmão. “Ouvia Rolling Stones, Beatles, The Birds e ficava com a galera dele, que eu gostava do visual.” Quando encontrou Aécio Silva, deparou-se com a Nova York e a Londres anunciada pela narrativa de Bahiana. “Nasci com o punk, fui punk com o punk, não fui influenciada por nada. Eu me expressei punk na juventude. Era um sentimento de libertação, de mudança, de música, uma força que havia. O movimento hippie, o rock progressivo eram lindos, mas me identifiquei com outra coisa, com outra energia”, recorda-se.
“Eram os anos 1970, ainda havia muito ranço de preconceito sexual, e fomos nós que realmente começamos a transar com nossos namorados. Tinham vários valores a serem rompidos”
Virginia Loures (Virgin)
Diante do regionalismo de Alceu Valença em apresentação no lugar sagrado da profana Capela Galeria de Arte, Virginia partiu dos pés de sapatos diferentes para um visual mais impactante.”Comprei uns pedaços de pano, rasguei tudo, joguei esmalte vermelho, como se dissesse: ‘Não aceito a sociedade, não aceito esse status quo’. Era um sentimento muito infantil, não sabíamos muito bem o que era aquilo, mas havia uma força de que não aceitávamos o ‘sistema’ e achávamos que o ‘paz e amor’ não resolvia mais. Eram os anos 1970, ainda havia muito ranço de preconceito sexual, e fomos nós que realmente começamos a transar com nossos namorados. Tinha vários valores a serem rompidos.”
Como se o ponteiro do relógio houvesse paralisado, estreitando as semelhanças entre ontem e hoje, Aécio recorda o encontro com Virginia como um fôlego para dias sufocados. “Em 1976, sentia altas decepções – como hoje, que estou altamente decepcionado com o país, puto com tudo – e via muitos pobres nas ruas. Por isso comecei a andar como eles. Eu mesmo costurava minhas roupas, fazia camisas com sacos de batatas, andava descalço. Naquele momento, me transformei em punk. Meus amigos rejeitavam. Quando eu conheci a Virgin, nos identificamos. Ela havia lido uma reportagem sobre o punk no exterior. Fomos procurar saber o que era, num tempo em que não tinha internet. Mais tarde, veio a música, totalmente progressista.”
De Nova York a Piau
“As pessoas, nas ruas, andavam praticamente uniformizadas. Nós, não. Nosso movimento aconteceu, e era o que a gente queria, o que gente era, o que a gente é. É difícil trazer o passado à memória da forma como era. De paz e amor já falavam. E nada resolvia. Então fomos falar de guerra é ódio”, lembra Aécio, que, antes de Virginia, mudou-se para Nova York. Após três anos na Marinha Brasileira, ele juntou dinheiro para morar nos Estados Unidos. Um músico, um primo, uma tia o auxiliaram no início. “Só me dedicava ao punk nos domingos. Nos outros dias, era um cidadão comum, mas sempre mantive o cabelo moicano, desde pequeno.”
Por Correios, Aécio alimentava os punks juiz-foranos. “Vi lá de fora o movimento, o pós-punk, o hardcore, o new wave. Vi bandas do passado e do presente, vi Ramones, Sex Pistols, Black Flag. O material que eu recolhia, ingressos de shows, cartazes, discos, enviava para cá”, conta ele, que nos últimos anos morou na China, até regressar ao Brasil em 2016, para morar com a esposa e a mãe de 90 anos, numa casa em São Mateus, onde ergueu, no quintal, sua Matinê, com shows nas tardes de domingo. “Tive três respostas negativas, mas 497 positivas”, brinca. “Já trouxe banda de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e muitas daqui.”
“No funk tem punk. No sertanejo tem punk. No rock tem punk. O punk é a moda política, a moda preta, o traço, o rasgo, o fisgo. É o toque, a abertura. Todos os movimentos trazem uma linha punk. Para mim, o funk é o punk do momento. É um grito de liberdade, uma maneira de expressar o que sente. Isso é o punk. Musicalmente, o funk é punk, uma gritaria, muitos palavrões, referências ao sexo, tudo refletindo o momento”
Aécio Silva (Tenente Laranja)
Virginia optou por girar inversamente o volume. Bastava do som alto do lugar onde vivenciou bem de perto a revolução provocada pelo CBGB (considerado o bunker do punk mundial). “Lá pintou publicidade, aprendi muito. Fiz muitas matérias de rock lá. Outro dia mesmo, achei uma foto minha com o Noel Gallagher, do Oasis. Nos anos 1990, vi tudo, me realizei. Eu, que sempre fui do rock underground, fui buscando coisas interessantes, maravilhosas, que não estavam no mainstream”, lembra a profissional que colaborou, diretamente dos Estados Unidos, com diferentes veículos impressos do Brasil.
Após retornar de Nova York há menos de dez anos, Virginia voltou-se para a terra. “Eu queria um planetinha, a natureza, que é viva. Queria voltar e ver a coisa se transformar. Desde novinha eu era macrobiótica. Já estava na comida natural antes mesmo de existir isso”, conta ela, que hoje, aos 59 anos, comercializa suas verduras e legumes na Feira É Daqui, de produtos orgânicos, do Parque Halfeld, às sextas-feiras. O punk, segundo ela, “já virou o establishment, virou lugar comum, caretice, coisa boba”. Mas nem por isso desligou o som. “Continuo ouvindo qualquer coisa que aguce minha sensibilidade. Às vezes, ouço violinos.”
“Nasci com o punk, fui punk com o punk, não fui influenciada por nada. Eu me expressei punk na juventude. Era um sentimento de libertação, de mudança, de música, uma força que havia. O movimento hippie, o rock progressivo eram lindos, mas me identifiquei com outra coisa, com outra energia”
Virginia Loures (Virgin)
Diante de tablados que fazem as vezes de palco e se encaixam entre as árvores, escuta e assiste gerações para as quais, junto de Virgin, Lupídio, Rato, Charles, Fernanda, Helton, Vietnã e alguns outros, abriu caminho. Nos quartos do fundo de casa, Aécio Silva escuta passado e presente. No talo. E atesta: “O punk não morreu”. Transmutou-se, porém. Mudou, como ele mesmo, o Tenente Laranja e seus ralos e grisalhos cabelos. E como Virgin, Lupídio, Rato, Charles, Fernanda e Helton. “No funk tem punk. No sertanejo tem punk. No rock tem punk. O punk é a moda política, a moda preta, o traço, o rasgo, o fisgo. É o toque, a abertura.
Todos os movimentos trazem uma linha punk. Para mim, o funk é o punk do momento. É um grito de liberdade, uma maneira de expressar o que sente. Isso é o punk. Musicalmente, o funk é punk, uma gritaria, muitos palavrões, referências ao sexo, tudo refletindo o momento.”