A umidade e o calor ajudam a transformar o barro em lama, desfazendo o que é rígido e tornando-o líquido. Quando Tom segue para a fazenda, para o funeral de seu namorado, encontra tudo como rocha. À medida em que o tempo passa, no entanto, a tensão e as fricções deixam o ambiente viscoso, entre o insalubre e o pegajoso. No traçado do espetáculo “Tom na fazenda”, há um cuidadoso mergulho na intimidade de personagens paradoxais. Enquanto o protagonista Tom é marcado pela liberdade da vida urbana, o cunhado Francis é cerceado por toda a repressão do cotidiano de isolamento rural. No luto, Tom descobre as mentiras do namorado, sempre oprimido por um irmão homofóbico, que preferia o silenciamento aos embates. Se num primeiro momento o irmão rude parece um ser abominável, ao término da sessão, o espectador é confrontado com sua cruel humanidade, fruto de muitas outras opressões.
“O peso da repressão me parece muito mais forte no algoz, no Francis, o truculento, do que no Tom. Quem sofre não é o namorado, que foi embora, mas o filho que ficou. O Tom é um personagem muito plano, com poucas camadas no sentido de volume. Ele é um homem bom, que se apresenta assim durante a peça inteira”, explica o trirriense Rodrigo Portella, diretor da montagem que conclui sua primeira temporada neste domingo, no Oi Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro, com sessões esgotadas em minutos e elogios por todos os cantos, além de muitos espectadores emocionados ao acender das luzes. “As pessoas se identificam com o algoz”, indica ele, reconhecido em Juiz de Fora por sequenciais montagens com atores locais, como a última “Floriano parte baixa”, resultado de oficina na cidade.
Indicado ao Prêmio Shell pela direção de “Uma história oficial”, Portella defende estar no ápice de sua trajetória ao reunir em cena os atores Kelzy Ecard, Armando Babaioff, Camila Nhary e Gustavo Vaz, nomes de prestígio nos palcos cariocas. “Sem sombra de dúvidas o ‘Tom na fazenda’ é o espetáculo mais importante da minha carreira, pela própria estrutura de produção desenvolvida, com patrocínio da Oi. Pude contar com uma equipe de criação e elenco de ponta. Tive um terreno muito propício para a criação. O texto é muito poderoso e potente, e me despertou muito o desejo de fazer um trabalho que fosse violento, agressivo, que atravessasse toda a equipe até chegar aos espectadores”, afirma.
Tradução do global Babaioff para texto do canadense Michel Marc Bouchard, a peça apresenta o mesmo enredo do filme homônimo do também canadense Xavier Dolan. “Esse texto tocou a mim e ao Babaioff de formas diferentes. A ele pela questão da homofobia, que bateu muito forte. Quando li o texto tive a sensação de que a peça não falava de homofobia. Realmente tem um personagem que é o irmão do namorado do Tom, muito violento e truculento. Mas descobrimos nele um grau de humanidade muito grande, com conflitos muito intensos. O texto, de alguma forma, proporciona uma reflexão sobre o ser diferente e as dificuldades de aceitação”, comenta Portella.
“O que me chama atenção no Tom é perceber como temos dificuldades em sermos nós mesmos, até porque não sabemos o que somos e o que nos define. Dentro desse contexto, há um problema que é a aceitação dentro da própria casa. O personagem, de alguma forma, constrói um universo de mentiras para se manter vivo naquele lugar na cidade pequena, no meio rural. O que, de fato, é real para ele? E como fazemos isso a vida inteira! Nos reinventamos o tempo todo em cada grupo social no qual nos inserimos para garantir nossa manutenção ali”, acrescenta o diretor, elogiado por uma performance que dá conta das nuances delicadas e, ao mesmo tempo, violentas da dramaturgia de Bouchard.
Eclosão corporal
“A montagem de Rodrigo Portella e a cenografia de Aurora dos Campos ampliam o arco da cena pela condensação interpretativa e eclosão corporal”, defende o crítico teatral de O Globo, Macksen Luiz, apontando para um olhar corporal muito presente num dos mais recentes trabalhos de Portella, “Alice mandou um beijo”, com os juiz-foranos José Eduardo Arcuri, Tairone Vale e Suzana Nascimento no elenco. Enquanto a peça sobre as memórias familiares utilizava-se de um bailado dos corpos para elevar as doses de sutileza das cenas, em “Tom na fazenda” os corpos irrompem num discurso sobre a força. “A lona que cobre o palco, em um ringue lamacento, se transforma em campo de pasto, em que os homens se digladiam, muitas vezes com violência, outras com a distância das palavras enganadoras. Os diálogos se completam no enfrentamento físico, mas se mantêm enigmáticos nos olhares frontais e corpos rígidos voltados à plateia. A construção dramático-visual desata as amarras realistas, encontrando os movimentos sísmicos subterrâneos. A ação física está integrada à tensão emocional, em equilíbrio delicado”, pontua Luiz.
Para o crítico teatral Daniel Schenker, a luta desenvolvida entre Tom e o cunhado homofóbico encerra embate maior. “Talvez haja uma articulação entre (o risco da) morte e (o medo da) intimidade. A desestabilização, a derrocada de uma postura de vida rígida, impenetrável, parece ligada à crescente proximidade dos corpos, valendo citar a cena de dança que culmina no beijo entre ambos. À medida que avança, o espetáculo de Rodrigo Portella se distancia da assepsia, a julgar pelas menções ou situações envolvendo saliva, sangue, suor, esperma e urina. A intimidade se estende aos espectadores, no modo como Tom, no encerramento, narra os acontecimentos”, sugere o crítico em sua página na internet.
‘É um espetáculo que me demole’
Recorrente na produção de Rodrigo Portella, a morte retorna à cena, desta vez com a fantasmagoria de uma presença de mentiras pouco a pouco descobertas. “Nós, latinos, talvez por uma influência ibérica, temos uma relação com a morte muito diferente da de outros povos ocidentais, principalmente os nórdicos. Temos uma inquietude diante do que não conseguimos responder, descobrir, conhecer. E isso está em mim culturalmente. A morte e o que não sei, a perda, me instigam. E a morte existe na ficção para valorizar a vida”, acredita Portella, para quem o arco do protagonista Tom desperta, justamente, um pulsar da vida.
“De repente o Tom, aquele cara todo desenhado, empolado, vira um ser humano quase bicho, com toda a essência e instinto do que temos de mais primitivo. Esse movimento dele é incrível. É uma peça atualíssima e urgente, porque é preciso falar desse assunto, não só porque toca na questão da homossexualidade, mas, principalmente, porque toca na questão humana e familiar e no que estamos nos tornando nesse mundo dominado pela imagem.”
“‘Tom na fazenda’ me provoca o caos. É um espetáculo que me demole. Que pouco me reconstrói. Como ator eu sentia que precisava falar sobre isso, sabia que teria que produzir, mas não me imaginava tradutor. Não tinha outra pessoa para dirigir essa peça senão Rodrigo Portella com sua poderosa escuta”, afirma o ator Armando Babaioff, em texto para o “Tempo-Festival”, do Rio de Janeiro, para logo concluir: “Falamos de coisas que nos inquietavam a vida. Encenar Michel Marc Bouchard pela primeira vez no Brasil. A trilha sonora acontecendo de forma espontânea nos ensaios, junto dos nossos improvisos. Os testes de cenário, a produção enlouquecendo, o figurino, a luz. A estreia. A reação das pessoas. A sensação de que estamos mostrando parte da complexidade e da crueldade do mundo no palco; ver e sentir no final de cada apresentação que as transformações que nos atingiram durante os ensaios chegaram à plateia. Às vezes, pensamos que somos seres humanos liberais e, no momento seguinte, percebemos que somos reprimidos, às vezes repressores. Quando um texto escrito em Montreal em 2011 se torna um discurso universal. Quando a fazenda não é apenas uma fazenda.”