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Cota de tela: tentando salvar o cinema nacional dos super-heróis

cota de tela
cota de tela
Crédito: Felipe Couri/Arquivo TM
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Entre abril e maio de 2019, quem fosse ao cinema e quisesse assistir a um filme nacional dificilmente encontraria opções. As salas estavam ocupadas: “Vingadores: Ultimato” estava em cartaz, e tomou mais de 80% das salas de cinema brasileiras. Isso estava acontecendo por um motivo: a “cota de tela”, mecanismo que regulamenta a obrigatoriedade de filmes nacionais nas salas de cinema, não havia sido renovada. A indignação entre os produtores audiovisuais brasileiros foi tanta que, em 2020, ela voltou a ser praticada, em uma tentativa de salvar as exibições de filmes nacionais mesmo em um cenário de predominância dos filmes de super-heróis.

A cota de tela é um mecanismo que obriga a exibição, por parte das salas comerciais de cinema, de filmes de longa-metragem brasileiros. Essa obrigatoriedade remonta aos anos 1930, com o primeiro decreto de proteção ao filme brasileiro, mas existe de forma similar em diversas partes do mundo. No Brasil, a obrigatoriedade é calculada a partir do número de salas e do grupo exibidor. Ou seja: nos casos em que há duas ou três salas disponíveis, os cinemas devem exibir produções nacionais em 28 dias do ano. Um complexo com 20 salas, por sua vez, deve ter uma cota de 80 dias. Há também a obrigatoriedade de serem títulos diferentes. No primeiro caso, devem ser no mínimo três títulos diferentes por ano, já no segundo, ao menos 24 títulos diferentes.

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Mesmo assim, em caso de grandes estreias hollywoodianas, como “Homem-Aranha: Sem volta pra casa” (2021) e “Batman”(2022), as salas de cinema são novamente tomadas e não é possível encontrar muitas opções. Para Luís Rocha Melo, professor associado do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora, apesar de ser um mecanismo importante, a cota de telas é insuficiente para garantir a penetração do produto brasileiro no mercado interno. “Foi esse mecanismo que garantiu, em diversos momentos da história, a permanência da produção nacional nas telas. O problema é que ele não é entendido de forma estrutural, e está sempre na dependência da vontade política dos governos. Por isso, pode desaparecer de uma hora para outra, como vimos no ano passado”, diz. Em 2021, “Homem-Aranha: Sem volta pra casa” ocupou 90% das telas justamente porque o decreto sobre a cota de telas não havia sido renovado, fazendo com que fosse mais fácil burlar essa proteção.

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Mas a questão da cota de telas é importante não só pelo ponto de vista econômico, como explica Felipe Muanis, também professor associado no Instituto de Artes e Design no curso de Cinema e Audiovisual da UFJF. “O cinema não é só um produto comercial. O cinema é cultura, é imaginário, é um bem intangível. O audiovisual como um todo é um bem imaterial e material”, diz. Nilson Alvarenga, professor do curso de Rádio, TV e Internet da UFJF, afirma o mesmo e ressalta a importância exatamente por isso: “Essa questão das cotas de tela é importante porque é onde convergem as questões de natureza econômica, sobre um determinado produto, e uma questão de incentivo cultural. É uma política cultural atrelada a uma política de desenvolvimento econômico”.

Produção nacional é penalizada

Para Felipe, é bem simples a finalidade da cota de tela: “É uma questão de fundo, sobre você ser uma indústria cinematográfica ou não. O Brasil não é. A gente tem um esforço, temos filmes, cineastas, uma mão de obra super importante. A televisão, sim, é uma indústria. O mercado fonográfico também. Mas o cinema nunca foi. A gente não tem condição de andar com as nossas próprias pernas”. Por isso, as cotas de tela podem fornecer um apoio para que o cinema nacional seja divulgado e ocupe espaço.

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Para Nilson, essa importância está na dificuldade do cinema nacional competir com as grandes produções hollywoodianas, que já contam com um mercado e uma estratégia de marketing totalmente massiva. Uma vez que o cinema nacional passa a ter um espaço garantido de exibição no horizonte, ele explica que isso garante que os filmes não vão ficar engavetados. “Quanto mais houver filmes em tela, mais as pessoas vão se acostumar a assistir aqueles filmes e, assim, eles passam a funcionar como uma oferta tão importante ou valorável quanto qualquer oferta de outros tipos de filmes disponíveis”, diz.

Mas para os pesquisadores entrevistados, a política ainda não é suficiente. Nilson explica que, assim que a maioria das salas cumpre as cotas, elas não colocam outros filmes nacionais em exibição. “É um ciclo vicioso, pois quanto menos as pessoas encontram e procuram filmes brasileiros, menos eles vão ser atrativos para a população.” Felipe afirma o mesmo, e diz que a cota de tela sozinha não é capaz de resolver o problema do cinema nacional, já que “a competição é muito desigual”.

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Regulamentação do streaming

Para Luís Rocha Melo, qualquer medida relativa à exibição de filmes que não passe pela regulamentação do streaming não faz mais sentido no cenário atual. Para ele, regulamentar também o streaming de maneira favorável para o cenário nacional é a grande questão do momento. A Lei do Audiovisual da Espanha, por exemplo, entrou com medidas para tentar modificar essa situação, regulamentando também o streaming para incentivar o cinema nacional espanhol e inserindo na lei mecanismos para, a partir disso, fomentar a formação de novos profissionais. Eles também definiram que as plataformas de streaming, para funcionarem no país, deveriam contribuir para a produção – fazendo, assim, que fosse também de interesse deles divulgar essas produções locais. Foi exatamente por isso que, em fevereiro deste ano, vários filmes de um dos diretores espanhóis mais conhecidos e premiados, Pedro Almodóvar, entraram para o catálogo da Netflix.

Mas para Luís, no entanto, a inserção do audiovisual brasileiro nas grandes plataformas tem sido problemática. Ele explica que “elas tendem a invisibilizar os filmes de médio porte, como é o caso dos filmes brasileiros, de uma forma geral” e, além disso, Por isso, seria importante políticas, como a da Espanha, que proporcionassem também uma visibilidade maior nesses serviços. “Ninguém clica naquilo que não vê”, diz. Também por isso considera que é prejudicial que o fluxo de audiovisual consumido esteja sempre na mão de poucas empresas. Para ele, já há uma produção razoável para cinema e televisão, o que não tem resolvido a situação: “se essa produção não tiver o selo Netflix, Amazon ou Globoplay, quais as chances de ser vista? É necessário um novo marco regulatório da comunicação, que não tem nada a ver com censura de conteúdo, que inclua as big techs. Mais uma vez, sem um governo interessado em comprar essa briga, vamos continuar a reboque deste tipo de situação”.

O consumo de filmes e de audiovisual hoje se dá por muitas outras formas e dispositivos além da ida ao cinema, principalmente com a pandemia. Luís sugere, por exemplo, a criação de pontos alternativos de exibição por parte da Prefeitura, alcançando vários bairros da cidade. Ressalta, também, o fato de Juiz de Fora contar com um curso universitário de cinema e audiovisual, o que seria um fator para impulsionar projetos nesse sentido, além de formar pessoas interessadas nessa questão. “Por que não se pensar em alternativas como a que está sendo buscada em Piracicaba, que tem discutido com a Câmara Municipal um projeto de cota de tela municipal para a cidade? Por que não pensar em uma proposta como essa, combinada com as leis de incentivo à cultura nos âmbitos municipal, estadual e federal?”, provoca.

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Cinema nacional reflete o Brasil

Para Nilson, há outra questão para a qual é preciso ter atenção: os produtos feitos para venda global, como os blockbusters, têm um tipo de apelo cultural, artístico e estético. Sendo o cinema, também, uma forma de nos identificarmos culturalmente e pensarmos sobre a nossa sociedade, a reflexão proposta por ele é a respeito do impacto gerado pela desvalorização do nacional. “Os produtos nacionais têm outra dinâmica de construção de personagens, de citações, de ambientes e de espaços cênicos, e toda uma dinâmica de construção de narrativa”, diz.

Para Felipe, é importante sempre lembrar do aspecto imaterial do cinema, que “não é um produto como um saco de feijão”. Além disso, ele ressalta que a indústria audiovisual brasileira gera tanto lucro quanto a automobilística, mas ninguém fala disso. “Para cada R$ 1 investido pelo Estado, retornam R$ 5 em movimentação econômica”, afirma o professor. Para ele, a maneira de resolver o problema, então, é investir em posturas sérias, duradouras e que respeitem o cinema brasileiro, fazendo com que ele consiga competir mesmo num cenário que a princípio é tão desigual.

A Tribuna consultou as principais salas de cinema da cidade sobre como é a aplicação dessa política aqui, mas não obteve resposta.

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