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Com textos curtos e cheios de humor ácido, W. Del Guiducci lança “Suíte cemitério”

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W.Del Guiducci: “Não necessariamente o leitor precisa desvendar o que está abaixo do iceberg. Ele pode inventar o que está abaixo do iceberg” (Foto: Fernando Priamo)
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“Venha sem calcinha.” Com apenas três palavras W.Del Guiducci dá conta de narrar um romance. Um pedido, um convite ou uma ordem? Quem solicita, deseja ou exige? Está dado o que se sucede, mas não o que antecede. Houve flerte? Romance? Antes, ainda, existiu anuência? Tamanha síntese não indica, porém, ausência de complexidade. Precisas, as três palavras justapostas evocam a profundidade que se multiplica em “Suíte cemitério” (Cachalote, 210 páginas), novo livro do escritor, músico e editor da Tribuna. “Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta”, escreve Dalton Trevisan na epígrafe utilizada pela obra claramente filiada ao “Vampiro de Curitiba”, seja pelas temáticas entre o mistério e o underground, seja pelo domínio da palavra num labor que se inicia nas ruas para terminar na solitária lapidação de termos.

“Muita coisa é colhida na escuta, no imponderável do dia a dia. Obviamente isso é retrabalhado. Quando escrevo os textos pequenos, às vezes de duas linhas apenas, tenho a ponta de um iceberg”, define, retomando a teoria de Ernest Hemingway, que defendia haver no conto apenas uma parte que se deixa ver, enquanto toda outra porção está submersa. “Os personagens são elaborados na minha cabeça, o cenário é elaborado e tudo mais. Nem tudo é descrito. Escolho o que vou deixar de fora. Tem muita coisa colhida no inusitado do cotidiano”, reconhece o autor, perto da concisão dos 140 caracteres e longe da vulgaridade dos efêmeros comentários produzidos no Twitter. “Não é qualquer tuíte que te faz pensar. É preciso ser bem composto. O mesmo vale para o miniconto”, defende Guiducci.

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Um bom miniconto, segundo o autor, deve ter o leitor que o escritor italiano Italo Calvino definiu como aquele que lê de cabeça em pé, que passa o olho nas palavras que estão no livro e depois levanta os olhos para refletir. “Costumo brincar, quando entrego o livro, dizendo para que a pessoa não leia tudo de uma só vez. Para poder ruminar o que está ali. O minicontista quando elabora um texto conta muito com o leitor. O que a gente quer quando escreve um miniconto é criar uma comunidade entre autor e leitor. O comum entre nós é o texto que está nas páginas do livro. Não necessariamente o leitor precisa desvendar o que está abaixo do iceberg. Ele pode inventar o que está abaixo do iceberg”, pontua Guiducci. E conclui: “O jogo fica muito mais interessante assim”.

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LEIA W.DEL GUIDUCCI

“Seu Júlio segurou o quanto pôde, mas, por fim, colocou o mercadinho à venda. Desde que abriu o atacadão ali do lado, mal tem feito pra pagar a conta de luz. Então resolveu passar o ponto. Porteira fechada. Com tudo dentro. Menos o engradado com uma dúzia de garrafas de cachaça Jeremias, que vai bebendo aos poucos, enquanto matuta o que vai fazer da vida. Caixa do supermercado é que não vai ser.”

A radicalização como procedimento
A morte, simbolizada no título e no projeto gráfico (de Ruy Alhadas, com ilustrações de Guilherme Melich) do novo livro, ronda os textos, segundo o autor, num processo intuitivo. “Não tinha o projeto de escrever sobre a morte. Apareceu. Talvez porque seja uma experiência de radicalidade. O miniconto radicaliza o número de caracteres usados num texto e a morte é a radicalização final da existência”, sugere ele, que também recorre aos temas de amor e sexo, sempre com o humor ácido que lhe é peculiar e está presente em suas crônicas publicadas na Tribuna. Não há o romantismo convencional, no entanto. “É difícil pensar numa existência sem amor. E esses minicontos, por mais que caminhem junto do fantástico, às vezes do horror, também têm uma vontade de presentificar e mostrar as coisas que acontecem no mundo em que vivemos. Talvez seja o meu lado jornalista falando”, indica Guiducci, rejeitando quaisquer rótulos para o miniconto. “Tentar rotulá-los é uma violência contra esses pequenos textos narrativos”, diz. “O nome que a gente dá para esses escritos interessa mais ao pesquisador que ao leitor, porque é preciso nomear para poder pesquisar.”

Guiducci persegue uma trilogia. Enquanto o primeiro livro foi escrito ao longo do mestrado em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFJF, o segundo foi redigido durante o doutorado na mesma instituição. “Os dois livros derivam de um trabalho experimental”, explica ele, que dedicou sete anos de sua pesquisa à investigação acerca das minificções. “Curto & osso”, de 2016, reúne suas publicações num blog, onde às quartas-feiras, por dois anos, postou os pequenos textos. Já o novo “Suíte cemitério” radicaliza a experiência anterior ao reunir postagens feitas na plataforma Instagram, de imagens. “Tinha a limitação de escrever um texto que não fosse grande demais, que coubesse na tela. Além da limitação do tempo, de respeitar uma frequência de publicações, me coloquei a limitação mais radical do espaço. O miniconto, assim como a crônica e o conto, já parte de uma noção de limite espacial”, explica ele, que escrevia seus textos em folhas de caderno, guardanapos e outros pedaços de papel, fotografava e publicava na rede. A artesania da escrita à mão se encontrava com o ambiente digital.

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“Suíte cemitério” tem projeto gráfico de Ruy Alhadas, ilustrações de Guilherme Melich e foi editado pelo selo Cachalote com recursos de financiamento coletivo. (Foto: Fernando Priamo)

A concisão como opositora da dispersão
De acordo com o autor e pesquisador, o miniconto chegou à academia e se popularizou entre o público na virada do século XXI, mas é praticado com tal nome desde os anos 1960, quando ocorre um boom desses textos na América Latina. “Temos uma tradição reconhecida muito maior na América espanhola do que no Brasil”, destaca sobre um tipo de texto que em muito dialoga com a velocidade e a síntese da internet, mas é anterior ao tempo dos algoritmos. “O texto breve está na gênese da literatura universal. Os primeiros textos eram escritos em placas de argila, vasos e urnas funerárias. Houve vários textos breves de gêneros diferentes ao longo da história”, observa. “A minificção é uma espécie de antivanguarda, porque toma formas antigas, como o epigrama ou o haikai, que são retomados e reelaborados. Pega a tradição e subverte, adiciona o poema, a notícia de jornal, o slogan publicitário”, analisa.

Em 2021, o livro didático de leitura e produção de texto da Coleção Apoema, editado pela Editora do Brasil, assinado pelos professores Cláudia Miranda, Edson Munck Jr. e Jaciluz Dias, recém-lançado, passa a ser adotado por algumas escolas do país apresentando dois minicontos de Guiducci e dez perguntas sobre eles. Em tempos de dispersão excessiva, as narrativas breves podem ser uma aliada no processo de ensino e aprendizagem, acredita o escritor. “O miniconto pode ser uma ferramenta importante para introduzir o hábito da leitura entre crianças e adolescentes. Tem uma lógica pedagógica nesses textos que não deve ser negligenciada. Há uma produção bibliográfica bastante grande no país que pode ser buscada, desde as ‘micrônicas’ da Clarice Lispector, que muitas vezes podem ser lidas como minicontos, aos livros da Marina Colasanti e de Drummond”, aponta, resgatando, ainda, um mestre do humor nacional: “Millôr (Fernandes) é nosso Michelangelo”.

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“Só incomoda aqui nessa nova vizinhança o martelar obstinado, noite sim noite não, do Seu Cícero Sapateiro, morto em 3 de outubro de 1994”

O rascunho como processo e o labor como fim
W.Del Guiducci conta se divertir fazendo os breves textos. Não restam dúvidas, como comprova o texto que reproduz um inusitado diálogo: “- Canta no meu show?// – Não.// – Por quê?// – Vai que depois você pede pra cantar no meu.”, inspirado em epigrama do romano Marco Valério Marcial. Não é possível concluir a leitura sem que escape um riso. “Há um esmero na feitura desses textos”, reconhece o autor. “Travo há sete, oito anos contato com teorias literárias diversas sobre o miniconto. Também sobre a crônica e o conto, mas mais especificamente sobre o miniconto. Não só li muitos minicontos e textos adjacentes como haikai e fábulas, como as teorias sobre esses textos. Isso forma na minha cabeça certo compromisso com eles, porque o texto mínimo pode dar a impressão de que é algo fácil de fazer. Às vezes é, mas tem história no ‘Suíte cemitério’ que demorei um ano e meio para concluir, uma história de sete ou oito linhas. O miniconto tem um pouco do rascunho, do que está inacabado. E gosto disso”, observa. “Mas há a preocupação em não fazer do texto pequeno um texto menor.”

Músico que completa duas décadas de estrada como vocalista da banda Martiataka este ano, Guiducci pela primeira vez utiliza o financiamento coletivo como forma de viabilizar um trabalho artístico. Deu certo. A meta estipulada foi superada em quase 20%, o que possibilitou ao autor ampliar a tiragem de “Suíte cemitério”. “Há a segurança de que o livro só existe porque tem quem queira lê-lo”, comemora ele, que utilizou vídeos de artistas e intelectuais lendo alguns textos para divulgar o projeto nas redes. A compilação de leituras foi contemplada, ainda, no edital Janelas Abertas e está disponível nas redes sociais da Pró-Reitoria de Cultura da UFJF. O lançamento presencial, contudo, não está nos planos. Sem a possibilidade de aglomeração, não há negociação, pontua Guiducci.

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“Querida Jacinta
Esperar por mim é esperar pela morte.
Te matarei de velhice.”

Segundo livro da trilogia não terá lançamento presencial. Sem a possibilidade de aglomeração, não há negociação, pontua Guiducci. (Foto: Fernando Priamo)
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