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Peça inspirada na tragédia de Mariana estreia em JF nesta sexta 

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Sem fazer referência direta à tragédia de Mariana, peça da Cia. Sala de Giz mostra coveiro que precisa lidar com os vivos e os mortos de uma terra devastada (Foto: Divulgação)
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Nenhuma forma de expressão artística, a princípio, é ou precisa ser política. Ao mesmo tempo, porém, toda arte pode ser política – há quem defende que a arte, por si só, já é uma forma de se fazer política, mesmo que inconscientemente -, depende apenas que esta seja a intenção de seu criador ou de que o público, aquele que é provocado, convidado a refletir, assim a compreenda ou dessa forma se aproprie dela.

No caso da Cia. Sala de Giz, a arte tem se tornado uma forma de prática política, seja a partir da discussão de questões de gênero (caso de “O Circo dos Quase Velhos”, de 2015) ou de tragédias como a ocorrida em 5 de novembro do mesmo ano, com o rompimento da barragem de Fundão, localizada no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, que destruiu toda a localidade e provocou a morte de 19 pessoas, sem contar os danos ao meio ambiente que serão sentidos por muitos anos. A catástrofe, a maior do gênero na história brasileira, é o mote do espetáculo “Terra sem acalanto”, que estreia nesta sexta-feira (12), às 20h, no espaço Sala de Giz, e que permanecerá em cartaz até 4 de novembro, com apresentações de sexta a domingo – exceto em 21 de outubro.

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O espetáculo foi escrito por um dos integrantes do grupo, Felipe Moratori, e tem direção da carioca convidada Tatiana Henrique. Na história, que parte do real para criar uma metáfora poética, um coveiro (Bruno Quiossa) chega a uma cidade devastada para enterrar mais que as vítimas: é preciso, também, enterrar as memórias e os desejos dos sobreviventes, milagrosamente salvos por estarem protegidos por uma cerca de arame. Ao mesmo tempo, aos poucos ele passa a conhecer pedaços, fragmentos das histórias daqueles que se foram (interpretados pelo próprio Felipe Moratori).

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Vivência com os atingidos

Todo o processo de desenvolvimento da peça durou cerca de dois anos e teve origem em várias fontes. Uma delas, conta Felipe, foi a partir das notícias da época do crime ambiental, de como a mídia divulgou a tragédia e o relato das pessoas. A outra foi conviver in loco com o impacto que o rompimento da barragem teve em toda a região, uma vez que os dois atores fazem mestrado na UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Por fim, a companhia contou com o auxílio de alunos de diversos cursos da UFJF que fazem pesquisas acadêmicas a respeito do que aconteceu em Mariana.

“Nós tínhamos essa proximidade com a região, de poder ver tudo isso in loco. Uma coisa é acompanhar as notícias, outra é ver o que estava acontecendo lá: o medo, a preocupação de quem temia perder o emprego, placas que pediam a volta da Samarco (empresa responsável pela barragem). Quem vive lá tem questões específicas, micropolíticas. A Tatiana também esteve presente, e foi uma presença fundamental para instigar nosso processo de criação”, diz Felipe.

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“Após iniciarmos o processo de reconhecimento de linguagem (ou seja, quais seriam as linhas de trabalho para construção do espetáculo), fizemos essa visita, porque percebíamos como essencial ver as pessoas, o local, ouvir daquele lugar e sobre aquele lugar estando nele mesmo”, relembra Tatiana. “Foi quando tivemos esse impacto: não poder chegar até lá, porque a ‘empresa’ impediu! Uma ‘empresa’ impede o acesso de brasileiros àquele lugar. Sentimos como uma atmosfera de silenciamento recobrindo o crime, a cidade, as pessoas, os que queriam acompanhar os acontecimentos.”

“Ficaram as perguntas: ‘E agora? Quem é que pode dar essas respostas para a gente? Quem é que a gente pode ouvir?’. Tudo se tornou um grande mito”, acrescenta a diretora. “Foi então que surgiu a primeira fabulação: o que a terra ouviu e viu naquele dia que Deus não conseguiu evitar? O que ela poderia dizer a nós? E se aquela terra de lá se comunica com a terra daqui, essa de agora, que eu e você estamos pisando, se essas terras são uma só, será que podemos ouvir, será que esses elementos podem nos contar então?”

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Ao mesmo tempo, Moratori relata o quanto esse processo foi difícil, e a preocupação em não tomar para si as dores alheias. “Os atingidos sempre se sentiam muito desconfiados, invadidos, sem saber que tipo de retorno poderiam ter com essas pessoas os procurando. Era uma questão ética que discutíamos o tempo todo, afinal não era uma experiência nossa, e não era nosso desejo nos apropriar deles. São relatos importantes, mas que precisavam ter um distanciamento da nossa parte.”

O pensamento do ator e dramaturgo é compartilhado pela diretora. “Temos um senso de responsabilidade que não nos permitia seguir por um caminho em que a gente ‘explorasse’ as histórias pessoais, as histórias com nome e sobrenome. Fomos compreendendo que poderíamos investigar e aprofundar pela via dos arquétipos e de alegorias que trouxessem a complexidade do crime e das vidas envolvidas, deixando o espetáculo também fora de uma esfera de julgamento. Isto é, não tratamos de Bem versus Mal, mas das forças de Vida e Morte que estão envolvidas.”

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Fragmentos de memórias perdidas

O resultado, acredita Felipe Moratori, foi uma dramaturgia que não fala diretamente do crime ambiental. “A tragédia se transformou numa metáfora poética. A peça não tem exatamente uma linha narrativa, são fragmentos e ações performativas que se inspiram nessa tragédia”, explica Felipe. “Fazer esse personagem (o coveiro) é revisitar as violências que meu corpo já sofreu nessa existência e como ele entende essa violência cotidiana”, pontua Bruno Quiossa. “A partir disso, de todas essas tragédias, junto às minhas vivências, que ocorre a transformação cênica do personagem, pois não posso vivenciar o que os outros passaram. Só é possível tentar entender a partir do que aconteceu comigo mesmo.”

Antes da estreia, a Sala de Giz realizou duas mostras de processo do espetáculo. A primeira foi no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFOP, e a segunda, no Museu Ferroviário de Juiz de Fora, ambas no início do ano, sendo que esta última serviu para divulgar ao público a campanha de financiamento coletivo (crowdfunding) realizada pela companhia, que não só alcançou como ultrapassou a meta estipulada. “Fomos o primeiro grupo da cidade a realizar esse tipo de campanha, e por isso não tínhamos um parâmetro local sobre como proceder, quanto pedir. Nos inspiramos nos grupos de São Paulo para ter uma ideia. E a campanha foi um sucesso”, comemora Felipe, ressaltando que esta foi uma forma de não ter que esperar por um possível financiamento por meio da Lei Murilo Mendes, que deixou de realizar seu edital em 2017. “Havíamos convidado algumas pessoas, como a Tatiana, e não queríamos adiar e nem esperar por causa da Lei. Foi uma alternativa interessante.”

TERRA SEM ACALANTO
Estreia nesta sexta-feira (12), às 20h. Sexta-feira a domingo (exceto 21 de outubro), às 20h, na Sala de Giz (Rua Mariano Procópio 65). Até 4 de novembro.

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