Idade das Trevas, a Idade Média guardou contradições que marcaram profundamente a cultura mundial. Enquanto a Igreja ampliava seus domínios e tentava, num árduo esforço, retomar sua relevância social, sistematizações foram propostas, contribuindo profundamente para a gestação de novos pensamentos e práticas. Na música, que durante algum tempo serviu como principal meio de instrução, o período medieval foi de grandes movimentos. Inclusive, Guido D’Arezzo (992-1050) foi o responsável por estabelecer as notas tais como são conhecidas hoje: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.
Formado na ponte aérea França-Brasil, o conjunto Atempo, com base no Rio de Janeiro, resolveu não apenas acolher a música medieval, com ênfase para os séculos entre XII e XV, como também pesquisar o assunto e os instrumentos típicos. Protagonistas do concerto que ocupa o Cine-Theatro Central no próximo dia 23, um domingo, os três músicos abrem o tradicional festival que carrega no nome, há 29 anos, o antigo investigado pelo Atempo. Programada para a semana entre 23 e 30 de julho, a 28ª edição do Festival de Música Colonial Brasileira e Música Antiga do Pró-Música/UFJF mergulha, mais uma vez, na produção que tem ganhado atenção crescente da academia, mas ainda tem se apresentado distante do grande público.
Com um repertório que privilegia tradições folclóricas, o conjunto parte do burgo francês, dos séculos XII e XIII, passa pela corte ibérica, do século XIII, pela catedral, do século XIV, e pelas margens do Pó e do Arno, também no século XIV. Composta por viola de arco medieval, flautas e gaita de foles e percussões, a formação traz, ainda, dois raros exemplares instrumentais: dois órgãos medievais, chamados órgãos portativos, e um clarivicymbalum, um precursor do cravo, primeiro do Brasil, feito a partir de uma planta do século XV. Segundo o coordenador do festival, o professor do Instituto de Artes e Design Marcus Medeiros, a apresentação do Atempo presta uma homenagem ao professor Helder Parente, integrante do corpo docente do festival por seguidas edições. Professor da Escola de Música da Unirio, onde também lecionam os instrumentistas do conjunto medieval, Helder morreu em março deste ano.
Uma ópera para chamar de nossa
No outro extremo do clímax do festival, o encerramento, no dia 30 deste mês, reserva outra reverência, marcada por um ineditismo na história do evento. No Cine-Theatro Central, será encenada a ópera “Il ballo delle ingrate”, montada especialmente para o festival. Escrita em 1608, com o intuito de celebrar o casamento de Francesco Gonzaga, filho do Duque Vincenzo de Mântua, e Margarida de Saboia, a ópera tem libreto de Ottavio Rinuccini, nobre e poeta italiano do final do Renascimento. “Trata-se de uma homenagem aos 450 anos de Claudio Monteverdi, grande compositor de música antiga, cujos madrigais foram o alvorecer da ópera”, comenta Marcus Medeiros.
Múltipla em formatos – concertos, palestras sobre a ópera, lançamentos e oficinas -, a programação do festival também inclui a apresentação do aclamado violonista Nicolas de Souza Barros e seu novo disco, “Chora, violão!”. Especialista em instrumentos de cordas dedilhadas, Nicolas recria, no violão, obras de Francisco Mignone (“Primeira valsa de esquina” e Valsa choro nº 3), Eduardo Souto (“O despertar da montanha”), valsas e tangos brasileiros de Ernesto Nazareth e polcas de Henrique Alves de Mesquita. “A rigor, o disco ‘Chora, violão!’ se situa na tênue fronteira entre as músicas erudita e popular”, comenta o crítico musical Mauro Ferreira em sua página virtual.
De acordo com Marcus Medeiros, a nova edição do Festival de Música Colonial Brasileira e Música Antiga do Pró-Música/UFJF teve dificuldades ainda maiores este ano, o que exigiu criatividade para a montagem da programação, que deve ser divulgada em sua totalidade ainda esta semana. “A verba foi ainda menor, e não pudemos contar com a verba de apoio da Prefeitura”, lamenta Medeiros. “E a burocracia parece aumentar a cada ano, dificultando sobremaneira a realização e mesmo a divulgação do festival”, completa o gestor e professor, referindo-se a uma nova fase na vida do evento, que a partir de 2015 tornou-se totalmente responsabilidade da universidade.
Desde então, o festival tem exigido grandes esforços para sua manutenção. Há dois anos, o evento chegou a ser cancelado e, posteriormente, realizado com atraso, em novembro. Em 2016, voltou a julho, aos dias mais frios do ano, mantendo formato mais enxuto, com orçamento menor (em relação aos anos anteriores) e apenas dez dias. Enquanto tornaram-se tradicionais as duas semanas de festival, este ano limita-se a uma semana. Em sua terceira edição sob os domínios da UFJF, o evento considerado bem imaterial de Juiz de Fora ainda parece viver pleno inverno, característica nada incomum para uma cultura nacional, regional e local, que, em pleno presente, experimenta uma nova Idade das Trevas.