Eles ainda habitam o imaginário dos telespectadores com mais de 30 anos, mas não são exatamente os mesmos. Personagens de clássicos da teledramaturgia brasileira, como o vidente Herculano Quintanilha, de "O astro", voltam às telas em versões atualizadas. Apesar de se aproveitarem da mística do passado, essas adaptações trazem a indelével marca do tempo, ressaltando mudanças tanto na linguagem das novelas quanto no perfil do público. A diferença do remake para a reprise, aliás, fez parte das chamadas da produção que estreia hoje, às 23h, na "Rede Globo". Em uma das vinhetas, uma voz em off deixava no ar a indagação: "Uma novela igual à de Janete Clair. Será?"
"Uma novela é feita para o público contemporâneo, não para os saudosistas", resume Nilson Xavier, autor do livro "Almanaque da telenovela brasileira" e criador do site www.teledramaturgia.com.br. Ao ressaltar essa realidade, o escritor faz referência a situações e costumes que podem soar ultrapassados aos olhos do espectador de hoje. Modernidades aparentemente banais também podem dar bastante trabalho para os autores na hora de atualizar antigos folhetins. O advento do telefone celular, das câmeras digitais e da internet, por exemplo, comprometeu recursos utilizados para promover os eternos desencontros das tramas. Em compensação, permitiram o surgimento de outras tantas artimanhas.
Xavier ainda coloca em pauta aspectos de ordem técnica, como a duração dos capítulos, que quase dobrou nas últimas décadas. "As novelas hoje são bem mais dinâmicas, ágeis. O ritmo da televisão mudou muito de 30 anos para cá. Hoje, se não houver ritmo, o telespectador muda de canal com o controle remoto, objeto que não era popular nos anos 70". Com mais tempo para prender a atenção das pessoas, as tramas paralelas cresceram em tamanho e importância, exigindo a elaboração de mais núcleos de personagens. Algumas produções recentes, como "Caminho das Índias", de Glória Perez, e "Páginas da vida", de Manoel Carlos, se aproximaram dos 200 personagens.
Esse descompasso com a demanda atual faz com que os autores recorram a mais de uma novela em um remake, caso de "Ti-ti-ti". A recente versão de Maria Adelaide Amaral aproveitou não só os personagens da trama original, como os de outra novela de Cassiano Gabus Mendes: "Plumas & paetês". A esse caldo, ainda foram adicionadas participações de outros personagens clássicos do autor, como Mário Fofoca (Luis Gustavo), de "Elas por elas", a "Divina" Magda (Vera Zimmermann), de "Meu bem, meu mal", e Rafaela Alvaray (Marília Pera), de "Brega & chique". Em 1993, Ivani Ribeiro utilizou o mesmo recurso para adaptar "Mulheres de areia", somando tramas de "O espantalho".
Criatividade a toda prova
"Acho bom que os ‘remakes’ não sejam cópias fiéis. Se fossem, não teria sentido produzi-los. Bastaria reprisar as versões originais, como faz atualmente o canal Viva", opina André Bernardo, autor do livro "A seguir cenas do próximo capítulo". Na opinião do escritor, os remakes são uma oportunidade de apresentar autores consagrados à nova geração com uma linguagem atual e qualidade técnica aprimorada. "Muitos dos telespectadores que, hoje em dia, veem ‘Cordel encantado’, ‘Insensato coração’ ou ‘Vidas em jogo’ não tiveram a chance de assistir a novelas de Janete Clair, que morreu em 1983, ou seja, há 28 anos."
A recente onda de adaptações que atingiu a TV nos últimos anos não soa como crise criativa para André Bernardo e Nilson Xavier. Na opinião de ambos, trata-se de um recurso antigo, utilizado não só pelas novelas como por outros formatos de dramaturgia, incluindo o cinema. O primeiro registro dessa modalidade no país data de 1968, quando a TV Record reeditou a novela "As professorinhas", trama que já havia sido apresentada na TV Cultura em 1965. "Desde os anos 60, se faz remakes de novelas na televisão. Hollywood também copia, a si mesma e aos outros. Não vejo problema algum com isso. O que sinto é que atualmente a ‘Globo’ descobriu um filão de sucesso, já que seus últimos remakes deram certo", avalia Xavier.
André Bernardo pondera, ainda, que êxitos do passado não garantem a repetição do sucesso. A propósito, a própria obra de Janete Clair não conta com um histórico favorável nesse sentido. As adaptações de "Selva de pedra", "Irmãos coragem", "Pecado capital" e "Vende-se um véu de noiva" acabaram não funcionando como o esperado.
Em contrapartida, algumas das maiores contribuições recentes partiram de autores da nova geração. "Uma das mais inventivas novelas dos últimos tempos, "A favorita", foi escrita por um novato: João Emanuel Carneiro. O mesmo acontece com "Cordel encantado", uma grata surpresa de duas autoras, Thelma Guedes e Duca Rachid, ainda em promissor começo de carreira. Pode parecer paradoxal, mas fazer um bom ‘remake’ requer tanta ousadia e criatividade quanto escrever uma novela original", resume André Bernardo.