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Cultura indígena: o imaginário comprometido e a busca pela ressignificação

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OBRA DO ARTISTA plástico e escritor indígena Jaider Esbell, morto em 2021 (Foto: Reprodução/Facebook)

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As histórias dos povos indígenas vêm sendo contadas por terceiros há décadas, colaborando para a formação de um imaginário limitado. É o que percebeu a pesquisadora juiz-forana Thays de Miranda durante sua investigação de mestrado, frutificada no livro “Diluição de fronteiras: a identidade literária indígena renegociada”, lançado em março deste ano. De acordo com ela, a produção cultural do homem branco acerca das tradições indígenas é limitada, por isso é fundamental que as escolas trabalhem com produções dos próprios indígenas.
Segundo Thays, a produção do livro foi árdua e de muito aprendizado. “Estive na Amazônia por alguns dias e tive contato com indígenas daquela região (índios kambebas) e pude comprovar a sua simplicidade e sua simbiose com a natureza. Eles vendem artesanato e recebem turistas que desembarcam às margens do Rio Cuieiras, afluente do Rio Negro, e que queiram conhecer um pouco de sua cultura. Foi uma experiência indescritível, pois pude in loco e em tempo real conhecer um pouco da vida desses silvícolas e ter um novo olhar para este povo, os primeiros habitantes do nosso país.”

A autora Thays de Miranda acredita que sua experiência “in loco” contribuiu para que ela tivesse outra visão sobre os povos indígenas (Foto: Arquivo pessoal)

Apesar de o livro não ser sobre os índios kambebas, a pesquisa de campo ajudou Thays a se desvincular da sua noção pessoal acerca dos indígenas. Thays conta que, durante o processo de escrita, teve contato com as obras dos indígenas Daniel Munduruku e Eliane Potiguara, e também entrou em contato por email e WhatsApp com Olívio Jekupé, guarani da aldeia Krukutu, situada em São Paulo. “Ele é um escritor de literatura infantojuvenil, que transcreve para seus livros toda a magia de suas histórias e crenças indígenas. Alguns de seus livros são escritos em guarani, com tradução em português.”

Olívio Jekupé: contando suas próprias histórias

Olívio Jekupé contou à reportagem que o personagem Saci da obra de Monteiro Lobato, conhecido como um garoto travesso de uma perna invertida, na verdade, é uma entidade da cultura africana que se popularizou em nosso país, mas existe também o Jaxy Jaterê, entidade da cultura indígena que é o guardião da floresta, mas não é muito conhecido. Por isso ele escreveu quatro livros sobre o Saci presente na história do seu povo.
O escritor enxerga a produção de terceiros sobre os indígenas extremamente deficiente. “Mas, com o surgimento dos escritores indígenas, isso começa a mudar, porque é a visão do próprio indígena falando dos problemas sociais. A ficção que José de Alencar escreveu, por exemplo, gerou muito preconceito fazendo com que a sociedade criasse um guarani que não existe”.

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O ensino indígena e o interesse mercado editorial

Doutor em antropologia, Paulo Victor Lisboa, estudioso das obras de Olívio Jekupé, recorda que foi a partir da Lei 11.645, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”, que as editoras começaram a dar visibilidade para os trabalhos indígenas. Logo, a demanda dos educadores por materiais escritos pelos descendentes dos povos originários começou a crescer.
No entanto, o antropólogo relata que muitos escritores indígenas enfrentam desafios, como a preferência das editoras por “fábulas” e “contos infantis”, que corrobora para uma infantilização da produção literária indígena. O que eles vêm reivindicando é a ampliação do espaço editorial para ensaios, escritos políticos e ficções literárias. Apesar da dificuldade, já existem no Brasil escritores bem sucedidos nessa linha, como o ambientalista e filósofo Ailton Krenak.
Paulo Victor ressalta que a “escrita indígena” deve ser pensada a partir das mais de 160 línguas e dialetos indígenas falados. “Hoje, no país, há línguas e dialetos falados por mais de 300 povos e etnias com variados sistemas de grafias e grafismos, gêneros discursivos e performances narrativas, danças e ritos, dos quais a literatura é e pode ser um desdobramento. Podemos falar, ainda, do complexo sistema de referências sonoras, acústicas e visuais, escutas e ‘leituras’ que abrangem outras espécies e seres que habitam as matas, os rios, a terra, o céu. Sem dúvida, a literatura indígena contemporânea é uma faceta da descolonização do imaginário nacional.”

O textos indígenas nas escolas de Juiz de Fora

Dina Amara Faria, professora de língua portuguesa da Escola Municipal Menelick de Carvalho e da Escola Estadual Delfim Moreira, vê como problema a ausência de textos escritos por indígenas nos livros didáticos. “O do sétimo ano da Editora Saraiva, por exemplo, trabalha as lendas com imagens dos indígenas, mas o texto é da Clarice Lispector”. Diante disso, a docente trabalha com o site “Mirim.org” para apresentar a influência dos indígenas na língua portuguesa ou no gênero textual mito ou lenda. “A vantagem desse site é que ele tem bastante recurso audiovisual e uma linguagem bem acessível para o público que eu atendo, que são os alunos do sexto ao nono ano.”
O Colégio dos Jesuítas tem a temática do indígena presente ao longo de toda a educação, e aprofunda esse conteúdo no sétimo ano do ensino fundamental, na disciplina de história, a partir das sociedades indígenas da América, visando conhecer seus múltiplos saberes e organizações sociais. De acordo com o professor de história da escola, Thiago Firmino, um trabalho interdisciplinar entre história e produção textual foi realizado, no qual os estudantes analisaram relatos de memória produzidos por indígenas brasileiros. “Os textos envolveram os mais diversos assuntos, como escola, infância, língua e tradição. Dessa forma, buscamos realizar uma educação intercultural de nossos estudantes, promovendo valores de igualdade, de respeito e de reconhecimento da diversidade cultural.”
Os livros didáticos adotados pelo colégio, todavia, também não apresentam textos escritos por indígenas. Com o intuito de complementar a formação dos estudantes, o docente utilizou os livros “Professores indígenas: memórias de vida, relatos e experiências com a educação diferenciada no estado de Roraima”, organizado pela professora Stela Damas, do Centro Estadual de Formação dos Profissionais da Educação de Roraima, e “Histórias que ouvi e gosto de contar”, do escritor indígena paraense Daniel Mundukuru, como forma de apoio nas aulas.

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