Desde 2020, a professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e escritora Prisca Agustoni lançou quatro livros inéditos no Brasil. “O mundo mutilado” (2020), “O gosto amargo dos metais” (2022), “Entre o que brilha e o que arde” (2022) e “Pólvora” (2022). Um deles, “O gosto amargo dos metais”, ganhou o prêmio Cidade Belo Horizonte e um prêmio suíço de literatura, na versão “Verso la ruggine”. Já são mais de vinte anos em um mergulho literário intenso, e que, mais recentemente, fez com que o próprio processo se tornasse mais claro para ela. Além de escrever, Prisca, que é natural da região suíça de Lugano, aproveita as línguas que fala para reescrever e repensar suas obras. É um processo delicado e que coloca a escrita como algo que se movimenta constantemente. A possibilidade de se movimentar da mesma forma e ser uma escritora de todas as partes, também faz com que sua literatura chegue longe.
A escritora atribui este momento de diversas publicações a uma série de fatores que engloba tanto aspectos pessoais quanto aspectos sócio-políticos. De um lado, ela completa quinze anos como professora efetiva da universidade, já tendo mais estabilidade no mundo acadêmico e uma familiaridade com o ritmo de produção exigido nesse aspecto. Seus filhos, hoje com 17 anos e 9 anos, também demandam menos de seu tempo e passam a ter uma autonomia diferente de anos atrás. Por outro lado, há um amadurecimento evidente, que deixa marcas sobre a sua escrita. “É claro que à medida em que avançamos nos tornamos mais autocríticos, mas também ficamos mais cientes da escrita e dos tempos. Só que sem dúvida há uma urgência maior de falar, de escrever”, destaca.
Com o passar dos anos em terras brasileiras, Prisca também se aprofundou e viveu a cultura brasileira tão intimamente que passou a sentir a vontade de contribuir com o que tinha a oferecer, bebendo de tantas fontes. “Tenho esse desejo de ser parte de uma história que me molda. É um motor muito importante, que me leva a novos projetos, ideias e desafios”, explica. Ela ainda relata que os acontecimentos políticos do Brasil, que tornaram por tantas vezes as condições de vida mais difíceis e colocaram em xeque também o ser imigrante no país, fizeram com que ela tivesse uma reação paradoxal. As preocupações sociais, como conta, sempre estiveram presentes em sua vida e trabalho, inclusive acadêmico, mas acredita que tinha um certo receio ou pudor de falar a respeito para evitar um olhar superficial ou clichê. O momento de virada, então, foi quando tudo começou a atravessá-la mais profundamente. “Ao invés de me sentir expulsa e abandonada, me senti envolvida. Senti que era parte disso e com vontade de lutar por uma sociedade melhor, de reconstruir. A literatura é fundamental para a construção da memória e, por que não, da alegria”, reflete.
Foi assim que “O mundo mutilado” veio ao mundo, em 2020. Ela começou a escrever a obra em 2017, quando participou da Festa Literária Internacional de Paraty, montando, a convite de Joselia Aguiar, uma pequena performance dentro do que ela chamava de “os momentos de fruto estranho”. Trouxe uma série de poemas em várias línguas, alguns deles em português, que eram poemas novos. “Esse pequeno núcleo inicial dos poemas já estava voltado para a questão da migração, porque era uma temática que me atravessa, como sujeito feminino que migrou, e também como filha da minha época. Assisto com consternação e com espanto o êxodo que se dá através do mediterrâneo”, diz. Para ela, é o sentimento de estar agarrada à vida que deu impulso para escrever sobre esse fato e também sobre o eco-crime de Mariana e Brumadinho, relatado na obra que foi premiada no Brasil e na Suíça. “É um movimento que me levou à palavra poética. É uma tentativa de cavar, desde dentro dessa multidão de resíduos, de restos, de cadáveres inclusive da natureza, de tirar esse monte de lama e ver o que podemos encontrar ali, ainda de humano, e que possa comover.”
Autora que transita
“Pólvora”, lançado no final de 2022, por sua vez, é um livro que ela conta carregar na cabeça há muito tempo, mas só então conseguiu finalizar. “Ele não nasce de uma revolta em prol da comoção, mas dá vontade de dar voz a um sujeito feminino, a uma poética que colocasse na cena, diante dos olhos dos espectadores, a potência da voz feminina. Uma voz feminina que secularmente foi calada, muitas vezes suicidada pelo cânone”, explica. Tratou-se, para ela, de fazer isso de uma forma que o foco não passasse através do corpo, mas através do mundo imaginário e do simbólico. Já o “Entre o que brilha e o que arde” foi totalmente gestado na pandemia, no momento em que a população se encontrava impedida de sair e de ter outras fontes de alimentos de cultura. A relação com as artes plásticas sempre foi muito forte em sua vida e, durante esse percurso, acompanhou os movimentos e os artistas. “Escrevi a partir de imagens e artistas que estavam me tocando muito, e escrevi vários poemas inspirados em artistas, dialogando com artistas”, explica.
O fato de ser uma autora que transita, em sua visão, permite que tenha acesso maior a espaços múltiplos e possa ver movimentos culturais acontecendo. “No Brasil, nos últimos anos, tem tido um florescimento de feiras, eventos e publicações, inclusive para mulheres, e isso tem possibilitado um diálogo mais intenso. Vejo que o panorama em relação à inserção das mulheres mudou radicalmente nos últimos 5/10 anos”, explica. Para ela, isso significa, além de se alegrar com os prêmios e com as portas que estão sendo abertas, a possibilidade de um olhar mais aprofundado para a literatura que está no dia a dia da escrita, no que chama de “embate com as questões que nos atravessam e nos perturbam”.
Várias línguas e múltiplos sentidos
O seu projeto pessoal de escrita e recriação, que já leva adiante há anos, tomou mais corpo e densidade na medida que ela entendia que se tratava de algo muito mais orgânico e interligado. “Eu passei a viver essa multiplicidade de línguas e de personalidades literárias menos como algo separado, estanque, e mais como um conjunto orgânico que é a minha obra como um todo”, diz. Trabalhar com várias línguas é uma prática que Prisca integrou ao seu processo criativo e se tornou como um diferencial. “Quando escrevo em italiano ou em português, já sei que disso virá uma nova versão, uma recriação em outra língua. Vira um canteiro de obras infinito e gosto que não leve como objetivo final uma obra pronta, finita. Eu acredito muito na obra como um processo constante de produção. As várias interferências entre as línguas muitas vezes fazem com que eu mexa nas versões”, detalha, sobre esse processo.
Embora isso aconteça de forma muito natural, Prisca admite algo de caótico no processo. Mas o caminho faz com que chegue ao resultado. “A obra é esse movimento orgânico, quase que tem vida própria, e eu tenho que puxar as rédeas, de vez em quando, porque essa sou eu. Eu sou uma pessoa que fala em português, ama em português, e que, enquanto está escrevendo, lê uma obra de poemas em italiano e pensa em uma palestra que vai fazer em Genebra”, conta. Nessa dimensão, não existe uma só língua, literatura ou Prisca: “São várias camadas e várias facetas do meu ser, da minha pessoa no mundo, da minha forma de me inquietar com a vida que está fora de mim, da vida concreta, política, social”. Mas também algo que, no final, cria uma unidade que permeia a vida toda. “É também claramente um diálogo constante com o meu interior, de como eu, sujeito, me sinto deslocada diante de determinados acontecimentos e como isso reflete também na linguagem”.