O apito está à altura da voz. Você fala alto assim mesmo? “Esse é o som da minha voz”, diz, quase gritando. Antes disso havia lhe perguntado: porque apita? “Porque gosto e acho legal. Tiro uma análise do povo, como eles reagem. É uma coisa que me faz bem”, responde o homem alto, negro, que anda pelas ruas do Centro e de seu bairro JK com um apito preto pendurado no pescoço. Como começou essa história? “Sou da Amac, do Pró-Idoso, e no ano passado me chamaram para eu vestir de Papai Noel. Brincava que era o primeiro Papai Noel preto. Não tinha um instrumento. Tinha uma moto e andava buzinando muito por aí, mas, devido às leis, ela saiu de circulação (foi apreendida por falta de habilitação). Não está fazendo falta. Foi quando surgiu a ideia do apito. Vi as pessoas protestando, reclamando dali e daqui, mas falei: Não vou desistir de uma coisa que é diferenciada. Continuei apitando e lá vou apitando, apitando, apitando.”
Diferentemente do que alguns podem pensar, Carlinho, como a inscrição na bicicleta indica, sabe bem do desconforto que gera. E quer mesmo incomodar. “Quer sossego? Cemitério! Aqui é o Parque Halfeld! O povo gosta de tragédia, briga, ver algemado, mas não curte meu barulho”, ri o protagonista de um concerto desconcertante. “Sou ameaçado, xingado, mas nada me atinge. Há pouco tempo eu passava assim (ele apita), com a bandeira do Brasil, e uma mulher falou: ‘Ô demônio!’ Eu respondi: ‘Se eu sou ‘demonho’, você é ‘demonha!”. Ela estava andando de muleta e veio atrás de mim, capengando. Quanto mais ela chegava perto, eu aumentava o passo. Ela veio e jogou a muleta em cima de mim. Eu estacionei a bicicleta, catei a muleta dela e entreguei e saí apitando. Está rolando na internet uma gravação que fizeram. A agressão não faz parte do meu cardápio.”
Nas ruas das violências, Carlinho é agressor e agredido. Para ilustrar o lugar da rejeição no qual é encerrado, conta-me uma pequena parábola, a seu modo: chama-se “O vagalume e a cobra”. “Dona Cobra, o que incomoda de mim na senhora?, questiona o pequeno bichinho a piscar. Ela vira e fala assim: O seu brilho! Então a senhora vai ter que ficar cega ou morrer, diz o inseto de luz própria.” Carlinho, nessa história, incorpora o vagalume. E sabe dos riscos que corre na selva da cidade.
Instantes de consciência
O mesmo veículo que lhe serve para o trajeto da Zona Leste ao Centro, serve-lhe como publicidade para seu ofício de sapateiro. “Já trabalhei em firma, de motorista, corri trecho. Há mais de 40 anos servi o exército e tinha a facilidade de arrumar emprego. Trabalhei em Santos na Casas Bahia, na GM como tapeceiro, e voltei para Juiz de Fora. Deus botou no meu pensamento para eu trabalhar como sapateiro. Acatei e está dando para comer, pagar minha luz e dançar meu forró. Não puxei nenhuma cadeia e não fui internado como louco, então, já estou no lucro. Sapateiro foi o primeiro emprego, aos 12, com um cunhado”, conta ele. A bicicleta representa a vaidade que carrega no próprio tênis azul, já gasto, mas recuperado com fitas douradas. “Busco trabalho na casa das pessoas e entrego. Estou até dando uma esnobadinha: sou restaurador de calçados. Olha o meu tênis!”, aponta o alvo de tantas ofensas públicas.
Segundos de lucidez
O mesmo Carlinho que não passa despercebido pela cidade diz não dançar solitário na vida, ainda que more sozinho no bairro onde foi criado. “Sou um idoso vaidoso. Tenho cuidado comigo, principalmente na parte espiritual. Sou católico praticante. E sou dançarino dos bons. Tudo o que a vida me oferece estou curtindo”, afirma ele, que gosta de dançar nas casas de show do Mariano Procópio. “A melhor coisa que fiz nos últimos tempos foi pular fora das drogas e da bebida alcoólica. O que a vida me proporcionou eu vivi, só não roubei e não me travesti”, diz ele, que se casou aos 21, mas não viu a relação coroar seus 30 anos. Pai de Elizângela, Elizabeth, Josiane e Carlos Eduardo e avô de quatro, o homem de riso fácil sentiu as lágrimas escorrem pelo seu rosto ao se despedir do único filho homem. “Se estivesse aqui, estaria completando 37 anos. Assassinaram o moleque com uma porrada de facadas, lá perto do bairro onde moro, no JK. Já tentaram me pegar também”, conta ele, foco confesso.
Minutos de sabedoria
Com a mesma agilidade com que monta na bicicleta, Carlinho retira do bolso um livrinho e começa a ler uma das mensagens publicadas. “Isso aqui sou eu”, adianta, para logo iniciar a leitura: “Levante sua cabeça. Não fique triste. Porque vai aborrecer por aquilo que os outros disseram de você?” Nesse instante, decide interpretar o trecho: “Por exemplo: quando dizem ali ele, ele é um bobo! Será que sou mesmo? Não acredito!”. E prossegue: “Por quanto tempo continuará queixando e reclamando da vida?” Uma vez mais, interpreta: “Reclamando que as coisas estão difíceis. Sempre foi difícil. O que foi fácil?”, conclui. Um dos 13 filhos de um pobre casal, Carlinho defende que é preciso insistir para não desistir. Seu ato, portanto, é um grito de presença e, principalmente, de um invejável amor-próprio. “Não tenho horário. Sou um cara independente. Converso comigo, danço, brinco, tiro onda comigo. A melhor pessoa para lidar comigo sou eu”, ri. “Não misturo as estações. Uma rádio nunca pega junto com a outra. Se eu não tivesse um comportamento bom, já teriam me tirado de circulação. Eu respeito, mas a sociedade é que não tem me respeitado. Acham que eu tenho que ser como todo mundo pensa. Só espero chegar minha aposentadoria. Faltavam 20, agora só dois anos”, conta o homem, para imediatamente mostrar-se consciente dos riscos que corre na selva da cidade: “Isso se não me matarem antes!”