Heitor Coutinho tinha meses quando esteve em um bloco de rua pela primeira vez. Seu pai, Marcony Coutinho, um dos responsáveis pelo “Meu concreto tá armado”, desde sempre fez questão de incluir o filho em sua rotina – e ali não seria diferente. Heitor tinha de estar ali, ao lado, o vendo reger ou tocar com o grupo. Dentro de casa, não seria diferente. Foi em um ambiente cheio de instrumentos que o menino cresceu: era violão, pandeiro, tambor, em todo o canto. Eram esses os brinquedos por ali. Como devia ser, hoje, com 11 anos, Heitor já se considera um artista, e caminhou para isso. O pai, agora, mais que ensina: aprende com esse olhar tão novo e tão curioso e que apresenta mais um tanto de caminhos.
Esse ambiente musical foi construído, na verdade, há anos. Isso porque a herança, para Marcony, veio também de seu pai. Sua família já tinha uma ligação forte com a música como um todo, principalmente com o samba, a partir das escolas de Recreio, onde morou até os 17 anos. Assim como Heitor, ainda pequeno Marcony frequentava esses lugares e observava, principalmente, os instrumentos. Com 6 anos, já integrava um grupo de pagode composto, em sua maioria, por amigos de seu pai, tocando percussão. “Foi nessa época que eu entendi que era isso mesmo que eu queria”, confessa.
O pai de Marcony, fã absoluto de Bob Marley, o incentivava a tocar o violão também, dentro de casa. Ele solfejava algumas canções e pedia para que o filho as tirasse no instrumento, de ouvido mesmo. “Um belo dia, depois de tanto insistir, eu tirei algo parecido com o que ele cantava. Ele ouviu, falou que era isso. Naquela noite eu não dormi. Fiquei tocando, repetindo o que tinha tirado a noite toda. Comecei a olhar, também, para o vilão.” Ele passou a comprar as revistas que ensinavam a tocar para aprender ainda mais. Em outro grupo de pagode já quis tocar o violão. Mas ele era novo, não permitiram a mudança da percussão para as cordas. Insistente, comprou, então, as revistas com as cifras das músicas de pagode. Virou como sua missão. Até que deu certo, a partir de uma mudança de formação. Com 11 anos, ele já era o violonista de um grupo de pagode.
Até voltar para Juiz de Fora, com 17 anos, a música era vista como um divertimento mesmo: um lugar que Marcony gostava e queria estar. Aos poucos, ele foi conhecendo a noite da cidade, as pessoas. “Sempre com o violão e esse sorriso no rosto. Então, eu ia me enturmando, tocando com algumas pessoas, tocando percussão também.” Foi aí que ele entendeu que a música era também um trabalho, de fato. Mesmo com outros empregos, a música sempre esteve ali, virou um segundo trabalho. E, há 11 anos, com Heitor ao lado, acompanhando esse caminho: vendo ele tocar em casa, na noite, descobrir novas possibilidades que nem ele sabia.
Descobertas
A relação de pai e filho com a percussão se estreitou, principalmente, com o surgimento do Muvuka, em 2017. O grupo, que surgiu primeiro como um bloco carnavalesco, foi, aos poucos, encontrando seu caminho no estudo, na pesquisa e no ensinamento da música afro-brasileira. “A gente foi se entendendo nesse caminho, entendendo o que a gente tocava, quais eram aqueles instrumentos. E, aí, virou um bloco afro, de fato. E aí a gente vira um bloco afro. E isso faz parte do processo do meu entendimento como um homem preto. Eu pude ver o Muvuka também nesse processo de entendimento do que era. Foi junto. O Muvuka e eu nos entendemos como pretos.” Foi quando Marcony passou a atuar como militante do movimento negro da cidade e se encontrou no candomblé.
E foi quando, também, Heitor entrou, de fato, em um grupo percussivo. Sempre ali, junto de seu pai, ele aprendeu vendo. “Eu só sei tocar porque eu ouço”, afirma, muito consciente do que quer ser e do que já é. A rotina do menino é corrida: aulas no Conservatório, no grupo Treme Terra, no Muvuka e, daqui a pouco, no Muvukinha, uma vertente que surgiu a partir de uma sugestão do próprio Heitor, que pediu para criar um grupo para crianças para que ele pudesse reger, assim como o seu pai.
Para voar alto
Tem seis anos que ele toca. “É mais fácil perguntar o que eu não toco”, brinca. E não é só na música que ele se encontra: ele também fez teatro, chegou a estrelar uma propaganda, pinta e ainda faz breaking. O mais interessante é que ser artista nunca foi imposição: sempre foi vontade do próprio Heitor. “Eu desde novo vi meu pai tocar, sempre estava no meio da música. E eu vi que era algo que eu tinha vontade de fazer e experimentar. Desde quando eu nasci eu estou aí tentando fazer música. E meu pai é minha maior inspiração. Ele me ajuda em tudo. Me indica os caminhos. É como um mapa guiado.”
Para Marcony, a grande questão sempre foi, exatamente, indicar os caminhos a seu filho. “Tudo o que já me atravessou, chega hoje na construção do que é o Heitor. Nunca foi uma coisa imposta. Isso serve para tudo: música, religião, política. Para minha felicidade, ele foi refazendo minhas escolhas, mas também trilhando a trajetória dele. Quando ele ouve uma música, ele identifica um instrumento e sabe de onde ele veio. E isso conecta muito a gente. E isso tudo é muito nosso. E ele está comigo em tudo. E a construção se deu assim: tanto do meu pai para mim quanto de mim para o Heitor. E isso deixa a gente feliz, quando percebe a naturalidade que as coisas acontecem, quando vê o brilho no outro. E, com ele, é tipo pipa, que você vai dando corda e vai subindo. Ele é a nossa pipa.”
Olhar para essa história faz com que o Marcony se veja, realmente, em Heitor, e com orgulho. “Na minha época, como eu não tinha acesso, tudo o que eu queria é o que ele tem hoje. O que eu fiz era o que eu conseguia, dado o acesso e as condições que eu tinha. Hoje, isso é o que me motiva a incentivar ele nesse sentido. Porque o que eu mais queria naquela época era acesso. E eu tento dar acesso a ele a tudo, em todos os sentidos. Ver ele querendo esse caminho dá um prazer muito maior.”
O que fica para Marcony e Heitor
É uma relação que ultrapassa a música, chega também na religião, e se aplica na forma como os dois se relacionam, diariamente. “Eu gosto muito de estar com ele. Porque tem uma coisa muito a ver com a nossa religião, que é a oralidade. É muito importante saber conversar. As nossas discussões são para resolver. Nunca é briga. Porque eu sei que é o que ele fala comigo é para agregar na minha vida.” Com os olhos marejados, Heitor se espelha no pai e trilha esse caminho para ser o artista que quer ser. E é por isso que, hoje, é Marcony quem aprende com Heitor. “Hoje, eu sou um dos regentes do Muvuka, mas ele toca timbal muito mais do que eu”, ri o pai.
Para além do ato do tocar, pai e filho se encontram de outras formas. E sempre pela música. Um costume que se perpetua desde sempre eles contam com o sorriso no rosto. “A gente tem uma paixão muito grande por coisa antiga. E uma das coisas que nos conecta muito são os discos de vinil e as fitas cassetes. Sempre que estamos em em casa, pegamos a caixa de fita, colocamos e descobrimos as coisas. E tem muito samba, MPB, reggae, que veio do meu pai, passou para mim e passou para ele.” É isso que fica.