Neste ano, o Governo do Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult), lançou um edital de fomento à cultura com o intuito de premiar congadeiros, reinadeiros e irmandades do estado. A proposta é a valorização das tradições afro-mineiras e que, a partir disso, fosse fomentada a realização de celebrações, festividades, festas populares, circulação de grupos e coletivos, ações de fortalecimento em rede, dentre outras ações que estimulem a preservação e a salvaguarda dos congados e reinados mineiros.
O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) também tem realizado, neste ano, a catalogação de grupos de reinados e congados no estado. Uma medida que continua em atividade e pode ser feita no site do Iepha. Até julho deste ano, quando o edital de fomento foi lançado, foram identificados 800 reinados e congados em 263 municípios mineiros. Mas, como se tem percebido, esse número pode ser bem maior. É possível perceber, ainda, que, em algumas cidades mineiras, a tradição do reinado e do congado existiu. No entanto, com o tempo, ela foi sendo ou esquecida ou, de alguma maneira, apagada. E esse é o caso de Juiz de Fora.
Reinados e congados mineiros são uma tradição secular de manifestação de fé. São celebrações que têm ligação com a história de negros escravizados que se reuniam para professar sua fé aos santos, sobretudo também negros, com toadas, tambores e ritos. Os santos são, geralmente, São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário. Essas celebrações ainda levam uma relação profunda com a África, sobretudo religiosa, de forma que, no Brasil, houve inclusive um sincretismo a partir desse encontro. Há ainda a figura do rei e da rainha, que ocupam a posição de homenageados ou de provedores que garantem a realização das festas. Geralmente, essa tradição nasce nas próprias famílias e, ainda, nas irmandades.
No Granbery
Renato Balbino é historiador e, em sua defesa de mestrado, pesquisou a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário que existia na igreja, construída no Bairro Granbery. “Irmandade, dentre vários fatores, eram esses espaços de sociabilidade. As Irmandades do Rosário eram centros de convivência. Eram os poucos espaços que os escravizados tinham algumas liberdades e também lugares de memória onde eles relembravam suas tradições e suas religiosidades, de certa forma reinterpretadas. Você tinha, por exemplo, o reinado, o rei e a rainha. Além desses espaços de sociabilidade e ajuda mútua, era um espaço onde usufruíam, de certa forma, de liberdades e resistências contra o sistema opressor que existia na época”, define o historiador.
Nas pesquisas que realizou, ele identificou que as festividades idealizadas pela Irmandade ocorreram, sem interrupção, entre os anos 1893 e 1901. Eram forma de a irmandade angariar verbas para sua manutenção e, à princípio, para a construção de uma igreja, no terreno doado por Rita de Cassia Tostes, viúva do Capitão Antônio Dias Tostes Junior, em um lugar que, naquela época, era nomeado Morro do Rosário. As festas ocorriam, sobretudo, em outubro, quando se celebrava Nossa Senhora do Rosário. “As festas eram celebradas ao som de tambor e coroações a reis negros e príncipes e princesas da irmandade”, identificou Renato em seu artigo. Em um jornal da época, ele encontrou ainda um registro que mencionava que as festas eram realizadas no primeiro domingo de outubro, em Juiz de Fora.
No jornal O Pharol de 3 de outubro de 1895, constava: “No domingo, 13 do corrente, terá lugar a festa de Nossa Senhora do Rosário, constando de um tríduo de preces, missa solene às 9 e meia da manhã, acompanhado de cânticos sacros, reinado precedido de uma banda de música, às 4 horas da tarde, e, em seguida, a posse da nova mesa e da juizada. Na véspera terá lugar também o levantamento do mastro da bandeira da mesma Santa, no adro da igreja do Rosário em construção, com toque de música e fogos”.
É a partir desses registros que Renato identificou a presença dos reinados em Juiz de Fora. “Desses reinados, o que eu pude ver, através dos jornais, principalmente o Pharol, que todo ano, no mês de outubro, eles seguiam em procissões na cidade, faziam festas com vendas, e tinha o congado em alguns momentos também. Tinha uma representação religiosa muito forte na irmandade aqui também. Eu pensei que era necessário lembrar que Juiz de Fora também vivenciou isso”, afirma.
Durante esse tempo, a Irmandade do Rosário, responsável pelas festas e pelo reinado, ainda estava em construção da igreja. No entanto, ao que indica, por falta de verbas, sua construção foi paralisada. E quem assume a construção é, então, a construtora Pantaleone Arcuri, uma das mais importantes em Juiz de Fora, que dá um novo rumo, inclusive arquitetônico, à igreja. Praticamente nesse mesmo período de mudança de século, a Igreja Católica passa por um processo de remodelação, um processo de “Romanização” que tinha como intuito restaurar os costumes do catolicismo romano, e o principal alvo para que isso acontecesse foram as irmandades, já que, naquele momento, elas tinham uma autonomia que incomodava a igreja.
O apagamento
Para Renato Balbino, foi nesse momento que a irmandade e, então, os reinados foram sendo apagados na cidade. “Depois que a igreja tomou a frente da irmandade, não teve mais reinado. Porque a romanização quer extirpar tudo o que é tradicional e leigo.” E ele segue: “Eu tive um estalo, porque um dos membros, o Benedicto de Souza Penna vai ao jornal e diz o seguinte: ‘Venho às colunas desta folha despedir-se da irmandade acima por motivos justos: por já se achar cansado, na idade e doente; por essa razão despede-se de seus dignos companheiros e de toda a diretoria, estimando que com a sua retirada, os seus companheiros sejam muito felizes, sendo certo que a irmandade do Rosário sempre foi dos pretos’. Essa frase ‘sempre foi dos pretos’ também remete ao fato de a irmandade ser da tradição do Rosário.”
Outros fatos apurados por Renato contribuíram para esse apagamento, de acordo com ele: “Quando você tem essa tomada da igreja, enquanto instituição, da irmandade, que tira a mão dos leigos para assumir, você começa aí uma série de apagamentos. Na inauguração da igreja, você tem toda uma representação do poder da cidade e pouca menção, isso nas matérias dos membros da irmandade. Eles que começaram a construção, mas quem finalizou foi a Pantaleone Arcuri. Você tem uma virada. Os apagamentos começam porque, antes da inauguração da igreja, os jornais noticiavam todos os anos as procissões e as festas que eram noticiadas para arrecadação de fundos para a construção, depois dela você tem menções que tinham reuniões lá. Você perde um pouco dessa força da irmandade. Então, esse processo do poder da igreja de apagar e a perda de força das representações leigas acabam contribuindo para não ter essa memória tão forte nas pessoas. E aqui em Juiz de Fora não há cultura de preservação. Quando você não relembra e não celebra esse tipo de coisa, fica difícil manter vivas as memórias. A memória mais forte seria o próprio instituto Granbery, que vai ocupando os espaços. As irmandades vão sendo esquecidas”.
Cidade vive a tradição
Isso, no entanto, é um cenário que se compreende em Juiz de Fora. Em outras cidades mineiras é possível perceber a manutenção dessa memória e a continuidade dessa tradição. Como é o caso da cidade de Passa Tempo. Rodrigo Bastos é secretário de Cultura e Turismo de Passa Tempo e integrante do Moçambique Nossa Senhora Aparecida. Ele conta que as primeiras manifestações de reinado na cidade surgiram na Fazenda Campo Grande, onde, de acordo com ele, havia um grande número de pessoas escravizadas. Sem igreja no lugar, as celebrações eram feitas ou nos cruzeiros ou nas casas dos capitães das guardas. Até que uma capela é construída já na vila de Passa Tempo, dedicada à Nossa Senhora do Rosário, construída também pela irmandade, momento em que os reinados passam a acontecer dentro da, agora, cidade. Alguns ternos existem ainda hoje, outros, no entanto, foram se perdendo com o tempo. A grande maioria, como aponta Rodrigo, é fruto de uma mesma família.
Ele aponta que é comum que cada região tenha seus costumes ligados ao reinado e uma série deles é mantida em Passa Tempo. E muito porque o relato oral dos antigos é repassado de geração em geração. E é isso que mantém, inclusive, a existência dos reinados lá. “O que mantém hoje o congado é ter criança e adolescente inseridos dentro das guardas. É a continuidade que passa por esse lugar. Essa força de vontade dos jovens é isso que mantém nossa festa firme.” Ainda assim, Rodrigo conta que luta por essa manutenção. “A luta contra o apagamento é constante. E, principalmente, porque o povo preto não tem muita literatura, coisa documentada. Então, tem que buscar da oralidade mesmo os relatos. E, nos diálogos, a gente vai colhendo as coisas. Nessa luta de reconstrução, eu acho importante ouvir. E gosto de falar que é uma festa do povo feita pelo povo.”
Atualmente, Passa Tempo tem vivido um processo de estruturar a cidade para, na Festa do Rosário, receber cada vez mais pessoas, de forma a impulsionar o turismo ligado à tradição que é, sobretudo, religiosa. “Nesse sentido de acolher, a gente tem pensado em estruturas para receber bem as pessoas e criar ambientes que tragam as pessoas para a vivência que não seja só o congado raiz, como é o caso do Ingoma. Trazer essas novas vertentes do congado para despertar também interesse nas pessoas de conhecer o legado do congado.”
Plantar sementes
O Ingoma, no caso, é o grupo artístico juiz-forano de música popular. Lucas Soares, idealizador e diretor do grupo, conta que conheceu a tradição do reinado e do congado a partir de pesquisas que realizava sobre a música popular. Depois de conhecer a Festa do Divino em São João Del Rei, que reúne guardas de diversos lugares, percebeu que queria mesmo se aprofundar nisso. Com o tempo, foi criando laços com guardas de algumas cidades, principalmente de Piedade do Rio Grande, Passa Tempo e Ibertioga. Dessa forma, a partir do contato com eles, foi sendo guiado para, de alguma maneira, reverberar a tradição vivida por eles – o que é feito nas oficinas de tambor mineiro e nas apresentações artísticas. “O fato é que a gente teve que ir para outros lugares, já que aqui não era possível encontrar. A gente teve que ir para os interiores do estado. Então, o que a gente faz é como se fosse uma contra-narrativa da história de apagamento. E isso tudo orientado pelas pessoas que vivem a tradição. A gente vai até eles e se orienta. Plantamos uma semente para as pessoas irem atrás, a fim de conhecerem mais o reinado e o congado do interior mineiro”.
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