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Silêncio no Castelinho

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Ela ensinou o belo na arte. Retratos, paisagens, flores e outras figuras de delicadeza foram reveladas por uma paleta sóbria, capaz de mostrar uma psicologia por trás de cenas objetivas. Segundo o irmão Carlos, Nívea Bracher também ensinou que há beleza no adeus. "Esses últimos meses foram como um grande cântico, como um aceno longo da existência", emociona-se Carlos Bracher. Internada desde a última semana no Hospital Albert Sabin, a artista morreu na manhã de ontem, aos 74 anos. Lutando contra o câncer por 11 anos, em agosto passado, Nívea teve seu quadro agravado, entrou em estado de coma por alguns dias e, de acordo com o irmão, começou ali sua despedida. Velado na capela 5 do Cemitério Municipal, seu corpo será sepultado hoje, às 9h, no mesmo local.

"A Nívea tinha a dimensão exata do que é viver, tinha a noção do que é uma grande vida. Era uma pessoa capaz de se obscurecer, de maneira natural, por ser extremamente generosa. Foi minha segunda mãe, a mãe zeladora", comenta Carlos, um ano mais novo e também artista. "Quando começamos a pintar, iniciamos juntos e gostávamos de retratar os mesmos temas, mas os trabalhos dela eram sempre uma maravilha, e os meus, não. Dessa forma, ela foi uma grande mestra, minha progenitora artística", diz, destacando na irmã o olhar complementar dos quadros que pinta. "Eu mostrava tudo para ela primeiro. Nívea era meu grande eco."

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Logo que recebeu a notícia, Carlos rumou para Juiz de Fora, ao encontro de Décio, o irmão mais velho, que morava com Nívea no Castelinho dos Bracher (Antônio Dias 300). Antes, tentou expor em palavras as saudades que sente. Por telefone, compartilhou seu texto com a Tribuna: "Nossos feitos eram coligados, irmanados como algo coletivo, familiar. Nós sempre fomos um só no plural. Dentro de harmônicas condizências que se passavam de uns para os outros interligadamente. Nossas obras, portanto, são uma só. Com a participação direta de todos os irmãos numa mesma causa. Nós nos aprendíamos entre nós, com a nítida certeza de que nossos quadros foram pintados por múltiplas mãos. As mãos, muitas, que eram uma só. Com a falta de Nívea, ficamos sem a mão principal: a mão da grande arte, da grande artista, entre todos nós, os Bracher".

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"A Nívea se dispôs à arte numa atitude celibatária, de criadora consciente do seu tempo e da grandeza do juízo da arte. Como uma cidadã atenta, ela prestou à cidade relevantes contribuições no campo da cultura e da preservação da memória da terra de Pedro Nava e Rachel Jardim. Nívea também liderou, com a Galeria de Arte Celina, um marco do modernismo na pintura juiz-forana. Ela era detentora de grande generosidade, alegria e ética (tão escassa no tempo estranho de hoje)", destaca o professor do Instituto de Artes e Design (IAD) José Alberto Pinho Neves, idealizador da última exposição individual da artista, intitulada "Nívea Bracher – Retratos, paisagens, naturezas", apresentada no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) em 2011.

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"Encontrar a Nívea, para todos, foi um acertamento de intensa felicidade. Que o som desta terra sonora, outrora cercada de pianos por todos os lados, como escreveu Murilo Mendes, aninhe esse derradeiro sono", completa Pinho Neves, citando Vinícius de Moraes – "a vida é a arte do encontro". De acordo com ele, a artista tinha um compromisso com a mineiridade, que não era a Minas Gerais colonial, mas a Minas dos barrancos, dos casebres, dos coqueiros ao lado das casas. "Ela imprimiu em seu trabalho um caráter muito autoral. Há uma força na pintura dela, um vigor e uma potência muito grandes", analisa o professor e coordenador do IAD Ricardo Cristofaro.

De acordo com o pró-reitor de Cultura da UFJF Gerson Guedes, Nívea Bracher influenciou uma geração de pintores em Juiz de Fora. "Ela sempre preservou a pureza de seu trabalho, era uma artista com alma. Seu trabalho de retratos era bastante expressivo", afirma. Para Guedes, a ausência de renovação na pintura local, com poucos artistas dedicados a retratos, paisagens e naturezas mortas, reforça o grande vazio deixado por Nívea. Diante disso, Guedes pretende homenageá-la com uma exposição retrospectiva em 2014, no Mamm.

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Apesar de reconhecida por suas pinceladas, Nívea também exercitou uma faceta contemporânea, com procedimentos facilmente identificáveis como reflexo dos dias de hoje. "Ela tinha uma coleção de pedras de demolições, que guardava como registros de um movimento arqueológico. Ações como essa, feita há mais de 30 anos, revelam esse desejo por registrar o patrimônio, a cidade. Ela via a transformação urbana da própria casa, e isso gerou trabalhos muito fortes, de muita indignação", completa Cristofaro, apontando para uma outra característica da artista: a colecionadora.

 

Jornais, revistas, livros, quadros, esculturas, objetos de arte, fotografias e outras peças que considerava curiosas, esteticamente agradáveis ou pontapés para trabalhos. Tudo merecia a atenção de Nívea Bracher, uma mulher que colecionava, além de muitos amigos, um tanto de agasalhos, andando sempre com muitos casacos, cachecóis, luvas e tocas. Nascida em Belo Horizonte, em 1939, a filha do casal Waldemar e Hermengarda, irmã de Décio, Celina e Carlos, e sobrinha do também artista plástico Frederico Bracher, chegou a Juiz de Fora em 1940. Vinte e cinco anos depois, fundou, com a família, a Galeria de Arte Celina. Marco na história artística da cidade, o espaço em homenagem à irmã Celina, falecida em 7 de março de 1965, localizava-se no segundo andar da Galeria Pio X, ocupando 109m².

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Nascia, então, um grupo de ativos artistas, que, além dos Bracher, reunia Renato Stehling, Dnar Rocha, Wandyr Ramos, Ruy Merheb, Reydner Gonçalves, Roberto Gil, Roberto Vieira e muitos outros. Agentes de uma cena efervescente, foram esses e outros nomes que deram vida e lutaram pela sobrevivência da Capela Galeria de Arte, antiga capela do Colégio Stella Matutina, e foram às ruas para provar o amor à cultura local, reivindicando a transformação da antiga fábrica de tecidos de Bernardo Mascarenhas em centro cultural, na campanha "Mascarenhas, meu amor!". Nívea também foi uma das personagens principais na batalha pelo tombamento do Palácio Episcopal, conhecido como Casa do Bispo. Dona de uma voz doce, daquelas que refletem constantes sorrisos, Nívea Bracher colecionava uma cidade construída com arte.

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