Na primeira vez que Elza morreu, esganaram-lhe o pescoço com uma corda. A seu redor estavam parceiros do Partido Comunista Brasileiro e uma suspeita de que a menina de 16 anos, analfabeta e interiorana, traia o movimento, à época já agonizando após o fracasso da Intentona Comunista. Na segunda vez que Elza morreu, arrancaram sua história, sumiram seus vestígios. E nem o corpo, cujo desaparecimento só foi percebido quando já estava enterrado, foi capaz de narrar o que Elvira Cupello Colônio aguentou viver.
Na primeira vez que Elvira nasceu, era 1920, e o endereço, Sorocaba. Na segunda vez, o ano era 2008, e o endereço eram as páginas de um livro escrito por Sérgio Rodrigues, que, passados dez anos, reedita “Elza, a garota: A história da jovem comunista que o Partido matou” (Companhia das Letras, 214 páginas). Na terceira vez que Elvira nasceu, aquele Brasil que a menina conheceu durante a Era Vargas, de uma polarização entre esquerda e direita e nada mais, parece pleno em sentido e atualidade.
Os passos de Elza, silenciados para a narrativa oficial e resgatados pela literatura, reconstroem um país de contradições políticas constantes, cheio de espaços em branco para os quais se volta o olhar do escritor nascido em Muriaé, na Zona da Mata mineira, e radicado no Rio de Janeiro, de onde escreve suas colunas para a “Folha de S. Paulo”, seus livros que transitam entre diferentes noções de verdade e de Brasil. “Escrevo. O veículo televisão é mais um deles. Aliás, é o que mais alcança gente. No caso do Brasil, a televisão é a que realmente alcança a população como um todo. Os livros, até por um problema de educação, nunca vão chegar aos calcanhares da TV nesse aspecto”, acredita ele, um dos 12 roteiristas do programa global “Conversa com Bial”.
Tribuna – Porque resgatar e reeditar “Elza, a garota” dez anos depois?
Sérgio Rodrigues – A ideia da reedição surgiu porque esse livro estava, já há alguns anos, desaparecido. Ele pegou uma fase da Editora Nova Fronteira muito complicada. Teve um lançamento bom, um início de carreira editorial bom, mas logo desapareceu. Ele não era mais encontrado em livrarias e nem distribuído. E eu queria trazer Elza de volta. É um livro que acho que tem fôlego para conversar com o país que a gente vive hoje, mais até, do que ele tinha em 2008. O país, de lá para cá, piorou em vários aspectos, a discussão política se deteriorou muito.
A polarização entre esquerda e direita, retratada no livro, diz muito ao Brasil atual. Acredita que, nesse aspeto, estagnamos durante quase um século?
O livro trata de uma polarização ideológica muito marcada, que vem desde antes da Segunda Guerra Mundial e se acentua com a Guerra Fria. A Elza teve sua história praticamente apagada da historiografia brasileira, num contexto de luta política muito violenta. Hoje, de alguma forma, vivemos uma polarização não igual, obviamente, mas também muito violenta. Aquela história tem muito a nos ensinar pelo exemplo negativo, pelos males que podem vir de uma situação de intolerância mútua tão extremada quanto a que existia naquela época. É um livro que, no contexto da Guerra Fria, nem poderia ter sido escrito. Ele só foi possível porque no século XXI já vivemos outra situação. Depois da queda do muro (de Berlim), do fim da União Soviética, passamos a encarar essa história de um outro ângulo, acima da divisão rasteira de esquerda e direita. Antes, qualquer pessoa que tentasse contar a história da Elza seria acusada de estar fazendo o jogo da direita. Mas acho que essa história interessa, talvez até mais à esquerda, para exorcizar, tirar esse esqueleto do armário. E é um belo esqueleto. A direita, por outro lado, também sai mal da história, que é triste e trágica. O livro tenta não tomar partido, mas contar da forma mais humana possível a história dessa garota. Ela foi vítima de um assassinato político, cometido pelos companheiros, o que é um agravante, porque eram pessoas em quem ela confiava. Ela foi uma espécie de bode expiatório, pagou o pato muito por ser mulher, analfabeta, pobre. Ela não tinha status social para defendê-la. A direita, por sua vez, inventou tantas mentiras sobre a Intentona, fez uma campanha de fake news – embora esse termo não existisse na época – tão grande, que a história da Elza acabou caindo numa “Geleia Geral” de descrédito, como se também fosse mentira. E não era.
“Hoje, de alguma forma, vivemos uma polarização não igual, obviamente, mas também muito violenta. Aquela história tem muito a nos ensinar pelo exemplo negativo, pelos males que podem vir de uma situação de intolerância mútua tão extremada quanto a que existia naquela época”
As duas histórias formam um contraponto muito interessante: podemos pensar na Elza e na Olga como vítimas, cada uma, de um grande monstro do século XX. A Olga foi vítima do Hitler. E a Elza, do Stálin. Em última análise, é isso o que elas foram, indiretamente e ricocheteando num país periférico. A história da Olga já foi muito bem contada. Ela exalta a esquerda, é uma heroína da esquerda. E falo isso sem nenhuma ironia. A história dela é uma baita história. E a da Elza também. E não havia sido contada, deixando uma lacuna que tentei preencher com esse livro.
Para contar essa história, você pesquisou, recorreu a documentos e entrevistas, mas não abriu mão da ficção. Quer dizer, com isso, que a ficção pode dar mais conta da realidade do que o simples relato dos fatos?
Acredito muito no poder da ficção para iluminar recantos mais escuros. Se quisermos entender como era a Paris do século XIX, como as pessoas viviam e se relacionavam, e pensavam, e se vestiam, é muito mais interessante ler Balzac que um historiador. A vida pulsa ali (em Balzac). A ficção é uma ferramenta que apreende coisas que o relato histórico não consegue apreender. Além disso, existia o fato de que seria impossível fazer um livro sobre a Elza que fosse só de não-ficção, porque a história dela já tinha sido literalmente apagada dos arquivos, e as pessoas que a conheceram, os grandes personagens, estavam todos mortos quando comecei a trabalhar nesse livro. Encontrei, então, tanta lacuna que a única forma de dar conta do quadro completo era a ficção. Eu não tinha escolha. Mas, de fato, existe dentro desse romance uma pesquisa histórica muito rigorosa. Como entrevistei pessoas, consultei e trouxe documentos inéditos à tona, achei importante colocar uma advertência ao final do livro até para assumir responsabilidade sobre essas informações. O ficcionista não precisa se responsabilizar por nada. Inventa tudo e pronto. Mas esse livro é um híbrido. Embora essa parte do ensaio histórico funcione dentro do romance como uma coisa que o personagem Molina escreveu, achei importante dizer, quando acaba o jogo ficcional, que eu, Sérgio, assumo responsabilidade por isso. É uma questão ética.
“A ficção é uma ferramenta que apreende coisas que o relato histórico não consegue apreender”
A impossibilidade de atingir a imparcialidade no relato dos fatos jornalísticos não configura uma ficção?
Acho que o jornalismo pode usar ferramentas para contar histórias que são trazidas da ficção, mas, em última análise, o compromisso do jornalista é totalmente diferente do do escritor. Ele não pode se afastar demais e não deveria inventar personagens. Pode usar ferramentas de narrativa para tornar mais interessante a história, mas não pode inventar. O escritor não só pode como deve. O Molina é um jornalista meio patético porque entende muito pouco e tardiamente o que está acontecendo. Não acho que seja um bom modelo de jornalista. Ele funciona dentro do livro, apenas.
“O compromisso do jornalista é totalmente diferente do escritor. Ele não pode se afastar demais e não deveria inventar personagens. Pode usar ferramentas de narrativa para tornar mais interessante a história, mas não pode inventar. O escritor não só pode como deve”
Não foi nada muito planejado, mas acabei fazendo um livro após o outro e me tocando que tinha um enorme interesse por história. Tudo o que faço, de alguma forma, conversa com personagens reais, com contextos históricos determinados. Isso é algo que me interessa como escritor. Não acho que seja uma forma melhor ou pior de fazer literatura, mas é a única que sei. Adoraria escrever um livro que se passasse num lugar totalmente indeterminado, numa época indeterminada. Admiro quem faça esse tipo de coisa, mas eu não consigo. Quero dizer para o leitor qual era a música que estava tocando no rádio naquele momento histórico, qual era o sucesso, como as pessoas se vestiam, do que falavam. A história acaba sempre enformando o que faço. E em todos os meus livros percebo que estou tentando responder, no fim das contas, que diabos de país é este, como chegamos a esse ponto.
Em “Viva a língua brasileira!”, você pensa o país pela ótica da língua e seus variados usos. Essa reflexão sobre o país é um norte na sua criação?
Há uma preocupação muito grande com o Brasil. E não sei nem se ele merece. Tenho tido dúvidas, ultimamente. Mas tudo é uma tentativa de fazer a literatura, os livros, terem uma relevância na conversa sobre quem somos nós, para onde vamos, como podemos melhorar essa bagaça. Mesmo livros que são ficção pura, como “O drible” – que é cheio de personagens reais como o Nelson Rodrigues, o Pelé, o João Saldanha -, tem uma coisa que me agrada muito que é enfiar a ficção nas frestas da realidade para ver se ela faz um pouco mais de sentido, já que sozinha ela não faz muito. Quando a gente injeta ficções, algumas sinapses que aparecem podem ajudar a entendermos a realidade.
“E em todos os meus livros percebo que estou tentando responder, no fim das contas, que diabos de país é este, como chegamos a esse ponto”
E de que forma essa reflexão te leva ao gesto?
Meu trabalho é escrever. Não tenho uma militância política e um trabalho social a não ser o de escrever. É assim que posso contribuir, se é que posso contribuir, para alguma coisa melhorar. O Brasil precisa disso, de mais leituras, de mais gente escrevendo, mais gente pensando. Acredito nisso. E tenho uma postura meio iluminista. A gente tem uma tradição de anti-intelectualismo muito forte. A leitura é muito desvalorizada. Lembro de quando eu era garoto, adolescente, que lia compulsivamente, me sentia muito estranho, muito mal. Então, comecei a ler escondido. Aquilo era, claramente, uma transgressão. Não era para ser assim. Uma pessoa não deveria gostar tanto de ler. E isso estava no ar. E está até hoje. Temos um problema de educação gravíssimo e um certo desprezo pela cultura letrada, pelos livros. Isso perpassa tudo. Ao mesmo tempo em que vejo uma admiração nos que dizem “Ah! Os livros!”, no fundo tudo parece ser só uma fachada. A gente desconfia e despreza.
Essa ausência de letramento, inclusive, ajuda a colocar a Elza num lugar de vulnerabilidade…
E o fato de ela ser muito jovem contribui também. Ela não era nem uma cidadã em pleno gozo dos seus direitos. Tudo indica que ela tinha 16 anos mesmo, era uma garota. E era muito pobre, vinda do interior de São Paulo, não tendo uma família próxima que olhasse por ela. O fato de ela ser uma mulher, sem dúvida, também contou muito. As questões que trazem a história da Elza são muito contemporâneas mesmo: os excluídos, os que não têm voz, a opressão vinda dos supostos iguais. Por baixo da política, corre outro tipo de opressão. As pessoas que estavam, em tese, lutando por um mundo igualitário, não tinham escrúpulo em matar uma menina de 16 anos, analfabeta, mulher, uma pessoa totalmente “desempoderada”.
Acho que as coisas estão mudando muito. Nesse sentido de os grupos se fazerem representar, lutando por seus direitos, temos feito muitos avanços. A discussão política macro é que está mal parada. Têm novas formas de pensar que precisam surgir. O Brasil ainda está empacado em algumas ideias do século XX em termos de discussão política. Mas a situação da mulher, da Elza como uma pessoa socialmente vulnerável, é algo de que hoje temos muito mais consciência do que naquela época.
O programa “Conversa com Bial” já enfocou, em diferentes momentos, essas múltiplas tomadas de consciência. Como roteirista, o que mais te marcou nessa experiência?
Gosto muito do que estou fazendo. A literatura acaba, naturalmente, caindo mais para o meu lado. Teve um programa recente, com o Caetano Galindo e a Alison Entrekin, tradutores, do qual me orgulho bastante. Ele traduziu “Ulysses” (de James Joyce). E ela, uma australiana que mora em Santos, está traduzindo “Grande Sertão: Veredas”, do Guimarães Rosa, para o inglês. Levamos para a TV aberta um assunto considerado tabu: não se fala de James Joyce e de Guimarães Rosa ao longo de quase uma hora, numa TV aberta brasileira. Em tese o público não alcança, não está interessado e vai desligar a televisão. Nós fizemos um programa com uma audiência ótima, divertidíssimo, e me orgulho porque há muito preconceito em relação ao que as pessoas podem, querem, alcançam e entendem. Se dermos opções, as pessoas vão muito além do que imaginamos.