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‘Um dia eu viro semente’

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Para o próximo dia 22, quando se celebra Santa Rita de Cássia, estava previsto o lançamento de ‘Outra autobiografia’, em que a artista detalha seu processo de tratamento contra o câncer (Foto: Divulgação)
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Verdadeiramente, Rita Lee sempre foi uma mulher das palavras. Desde sempre, viu, através delas, a melhor forma de se expressar, seja nas músicas, nos livros infantis ou em suas autobiografias. Em 2016, escreveu “Uma autobiografia”, em que conta sua trajetória e dá foco àquilo que, realmente, foi importante para ela, vivendo, ainda, a sua despedida dos palcos. Para o dia 22 deste mês, data em que se celebra Santa Rita de Cássia, estava previsto o lançamento de “Outra autobiografia”, em que a artista detalha, dessa vez, seu processo de tratamento contra um câncer permeado pela pandemia. Rita, no entanto, não aguardou o lançamento. Foi-se, nesta segunda-feira (8), deixando mais um filho porvir. Como desejou, morreu cercada por sua família. Mas são mesmo as palavras da rainha do rock brasileiro que ficam. “Se Deus quiser/ Um dia eu viro semente/ E quando a chuva molhar o jardim/ Ah, eu fico contente/ E na primavera vou brotar na terra.”

“Uma autobiografia” destaca mesmo o que Rita quis guardar. Já anunciando ter uma memória seletiva, o livro conta com a presença de Phantom: um fantasma que, vez ou outra, aparece nas páginas com adendos que Rita acabou se esquecendo enquanto escrevia o livro. Mas tem coisa que é inesquecível. Por exemplo, quando seu pai chegou em casa animado por atender, como dentista, uma pianista famosa. Em troca do tratamento dentário, o pai pediu aulas de piano para a filha. “Fui recebida na primeira aula com impaciência diante da minha falta de talento com escalas básicas. O tempo passou e dei uma boa guinada. (…) Mais adiante, eu já despontava como uma boa aluna e fui escolhida para participar da próxima audição dos alunos da Escola de Piano Tagliaferro.” Foi essa sua primeira experiência com o palco. Ela conta que caminhou tensa em direção ao instrumento. Fez xixi no banquinho. Até que a professora disse a sua mãe: “Sinto muito, sua filha tem o que chamamos de stage fright, medo do palco. Ela é boa, mas não aconselho seguir na música”.

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Sua primeira guinada musical foi participando do Tulio Trio, em apresentações semanais no auditório da Folha de São Paulo. Ela conta: “Túlio, exímio pianista, imitava Ray Charles à perfeição enquanto eu e mais outra menina fazíamos os vocais das ‘negonas’ que cantavam com ele. Túlio morreu num acidente de carro a caminho do nosso ensaio e acabou-se o que era doce. Cheguei a pensar que meu negócio não era música, e sim o esporte. Ou um convento”, brinca. Ao conhecer os Beatles, teve vontade de entrar, mais uma vez, para a música e rapidamente fez um quarteto formado só por meninas, as Teenage Singers: “(…) com a belezinha Jean Ellen no teclado, a lindinha Beatrice no baixo, a mulatinha Suely na guitarra e eu, a canastronazinha, na bateria. Cantávamos bonitinho, tocando éramos um desastre (…) Começamos a participar de festivais escolares no teatro João Caetano, às vezes recebendo aplausos inesperados. Até que as meninas faziam bonitinho”.

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Rita Lee ficou interessada em baterias e pedia a seu pai que desse o instrumento. Mas ele não queria e pedia que a filha investisse no violão, que fazia menos barulho. Mas, nesse tempo, aconteceu a primeira gravação das meninas em estúdio. Em 1964, elas fizeram vocais no LP e Prini Lorez e, depois, em uma gravação de Tony Campello. Mas, como ela diz, “banda vai, banda vem”, um grupo de rapazes surgiu e acabou mudando o rumo das coisas: uma rivalidade entre as Teenage Singers e Wooden Faces, esse formado pelos irmãos Dias Baptista (Cláudio, Arnaldo e Serginho). Acabou que os dois grupos se juntaram e formaram um grupo de nove pessoas. “Não durou um verão (…). Até que sobraram seis no grupo, imediatamente batizado com o sugestivo O’Seis. Na bateria entrou Luiz, Arnaldo continuou no baixo, Serginho numa guitarra e Raphael na outra; no lugar das outras três Teenage entra Moggy, namoradinha de um deles, fingia que cantava porque era bonitinha. E eu lá no meio tocando a saga ‘mulher também sabe fazer rock’.”

Surgem Os Mutantes

Tempo depois, o sexteto vira trio e Rita e Arnaldo começam a namorar. No começo, eles não tinham nome, mas, depois de um episódio, passaram a se chamar de “Os bruxos”. Rita, nessa época, ainda entrou na Universidade de São Paulo (USP) para cursar Comunicação. “Lembrando que na casa do pai e da mãe ou se trabalhava, ou se estudava, música era hobby”, diz. Na faculdade, assume que não tinha tanta presença. Gostava era de assistir televisão e ver as novidades. Foi por ela que descobriu a Jovem Guarda. “Meu favoritos eram Erasmo e Wanderléa, ele pela atitude, ela pelo encanto”, afirma. Chegam os “bons tempos chatos” da ditadura e Os Bruxos fazem mais apresentações. Foi em uma investida da Rita que eles quase tocaram com a Jovem Guarda, o que não rolou por, com eles, o palco ser tomado por muitos fios e caixas de som. Só seria possível se eles abrissem mão disso, mas eles não abriram.

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Mas, depois, Ronnie Von acaba conhecendo o trio, e eles estreiam em seu programa em 1966. No ano seguinte, o trio, que ganhou o nome de Os Mutantes pelo próprio Ronnie, estreia também no estúdio no disco “Ronnie Von nº 3”, na música “O homem da bicicleta”. Ela considera que foi ele que deixou a vida dos três “mais agitadinha”. Em 1967, então, eles participam do primeiro festival de música. Gilberto Gil conhece o trio quando eles foram gravar vocais em uma música de Nana Caymmi, composta pelo próprio Gil para o festival da Record. Eles levaram seus instrumentos e Gil ficou espantado com a guitarra. “Assustado com o high-tech mutante, arrisca a pergunta que mudou a humanidade.” Gil pergunta se eles topam participar do mesmo festival com ele. Eles acham estranho por se tratar de um festival de música brasileira e eles tocarem rock. Gil, então, diz: “Então vamos fazer rock brasileiro, oras”. Eles tocaram “Domingo no parque” e, a partir de então, foram essenciais para o que veio a ser o Movimento Tropicália, com a inclusão da guitarra elétrica na estética.

Os Mutantes, com isso, foram impulsionados a ter um repertório próprio para, por fim, lançar o primeiro LP solo. Da mesma forma que os baianos foram influenciados pelo rock dos Mutantes, eles foram influenciados pela brasilidade dos baianos. Nasce o primeiro disco, em 1968, com Os Mutantes estampados no nome e na capa. Outros festivais vieram e eles foram ganhando cada vez mais destaque, com uma temporada de shows na Boate Sucata, no Rio de Janeiro, acompanhando Gil e Caetano. Mas o fim estava quase anunciado. Ela já havia lançado um disco solo, o “Build up”, em 1970. Em 1972, surge o segundo, o “Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida”, mesmo ano em que ela sai dos Mutantes.

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Começo de clássicos

Ela diz, no livro, que foi Arnaldo quem a tirou dos Mutantes. Ela, aos poucos, foi tomando de volta a vontade de compor com seu violão e ser a “roqueira no país do samba”. Depois de um tempo, surge a Tutti Frutti, com a qual ela se mudou para Rio de Janeiro e lançou um disco com o nome da banda que, de acordo com ela, naufragou. “Pudera! Gravar um disco inteiro viajando de ácido dá nisso.” Apesar do desastre outras oportunidades foram aparecendo. André Midani, para ela, foi quem viu que tinha ali um “talento musical”. Com um contrato com a Som Livre, surge “Fruto proibido”, já com clássicas como “Agora só falta você”, “Esse tal de roquenrou”, “Cartão postal” e “Ovelha negra”. O rock puramente de Rita Lee. Com ele, ela volta para São Paulo.

Companheiro de música e vida

Acontece que Rita Lee conheceu Roberto de Carvalho anos mais tarde e isso mudou, mais uma vez, o rumo de sua vida. Sobre ele, ela discorre páginas e páginas. Tanto que, apesar de estar, nessa época, sob a ditadura, ela pouco fala sobre o período, citando apenas dona Solange, que ficava responsável por avaliar as canções que seriam lançadas, além de sua temporada na prisão após a de Gilberto Gil, a mesma época de sua primeira gravidez. Com o Tutti, ela ainda gravou “Entradas e bandeiras”. Já sem o nome acoplado, foi lançado “Babilônia”.

Roberto de Carvalho sempre foi a maior inspiração de Rita e seu maior parceiro. “O casal Lee/Carvalho se tornava cada vez mais fazedor de músicas e filhos”, diz. Com ele, Rita pariu mesmo clássicos: “Mania de você”, “Baila comigo”, “Caso sério”, “Flagra”, “Lança perfume”, entre tantos outros. Com ele, ela voltou a rodar o mundo. Ganhou atenção, finalmente, de João Gilberto, que adora sua voz.

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No palco, em casa

Por incrível que pudesse parecer, o palco virou casa para aquela menina que fez xixi na primeira apresentação. “Sim, é um clichê. Sou mais uma a dizer que o lugar onde me sentia em casa era no palco.” A vida de Rita foi seguida de turnê e novos lançamentos, sem parar. Até que Rita se afundou no alcoolismo, e acabou internada. Uma bateria de exames, na época, acabou no diagnóstico de Parkinson Medicamentoso. “O acúmulo de medicamentos químicos que andei tomando nos últimos anos mais a batelada que eu andava tomando naquele momento é que provocara o treme-treme. (…) A partir daquele momento, entendi definitivamente que minha santa boquinha não poderia engolir mais nenhum ‘biscoitinho’.

O “Acústico MTV” foi um modelo pioneiro que deu certo. Ela já resgatava seus sucessos com nomes diversos na música e fez uma turnê com esse modelo. Mesmo já sendo uma grande artista, ainda se mostrava receosa no terreno que estava pisando. “Nos registros dos hotéis, no item ‘profissão’, eu nunca escrevia ‘cantora’ (cá pra nós, até acho meio brega) e para camuflar meu complexo de inferioridade vocal eu preenchia ‘compositora’, e quando me sentia mais segura, ‘musicista’.

Profecia

O último show de Rita foi feito em 25 de janeiro de 2013, no aniversário de 459 anos de São Paulo. “Eu queria mesmo era dançar o último tango da minha vida em São Paulo. (…) e durante toda a apresentação a santa da casa fez, enfim, o milagre de ser ovacionada. Missão cumprida au grand complet.” Depois, brinca: “Reconheço que minhas melhores músicas foram compostas em estado alterado, as piores também”. Estranhando onde estava, quando escreveu a autobiografia, afirmou: “Aos setenta tem-se a impressão de que a vida passou rápido demais, escrevendo a própria bibliografia, percebe-se que foi longa pra caramba”.

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Como já pensando em sua morte, escreveu também uma profecia sobre como fãs, políticos e tantos outros se comportariam com sua partida. “Epitáfio: Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”, finaliza.

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