As ideias das mulheres musicistas jamais serão interrompidas. A poesia, a força e a capacidade artística destas, algumas que pela primeira vez estão tomando coragem de se lançarem como compositoras e instrumentistas, somadas à expressividade de suas vozes, contribuem para a vanguarda musical feminina brasileira. O termo “cantautora” significa a ampliação da história da música feminina, que tiveram, na primeira metade do século, Dolores Duran, Clara Nunes e Dona Ivone Lara começando a escrever música enquanto traçavam a origem do samba e do samba-canção.
Em 2017, surgiu o Women’s Music Event Awards (WME), a primeira premiação brasileira para musicistas e mulheres que trabalham nos bastidores, como jornalistas, produtoras, diretoras audiovisuais e outras tantas que contribuem para essa revolução. Os palcos das casas independentes e festivais estão pouco a pouco sendo ocupados por garotas apresentando um trabalho consistente, autoral, muito bem executado e, sobretudo, com poesia delas, feita com corpo, letra e texturas sonoras. Já em março deste ano, houve a primeira edição da conferência WME, em São Paulo, três dias com painéis, shows e debates que colocaram a música feita por mulheres como centro da indústria da música.
Enquanto Salma Jô, vocalista e compositora do Carne Doce, banda de rock goiana, realizava a turnê do segundo disco, “Princesa”, ela fazia com que inúmeras mulheres cantassem letras libertadoras. A minha primeira vez em um show do Carne Doce foi no Circo Voador, em janeiro de 2017, e eu jamais vou esquecer a sensação de estar naquele público. Era perceptível que as músicas adentravam nas mulheres de uma forma incomparável aos homens. Salma gritava, naquele momento, sobre a imposição, dela, enquanto cantora e compositora de estar sobressaindo com sua voz, passando por cima de todas as situações machistas que aquele mundo da música, antigamente dominado por homens, impunha às mulheres. “Já tá cansado da minha voz porque/ O tempo todo um timbre feminino é/ Pra maioria algo enjoativo/ Que tal se agora entrasse um homem aqui?/Pra gente dar aquela variada/ Não é um gosto pessoal/ Às vezes é o que pede o som/ E eu ainda posso ser a backing vocal/ E posso pagar pau/ Enquanto você me diz pra me inspirar/ Nos Mutantes e na Rita Lee”, diz a letra da canção “Falo”, de Salma Jô, do Carne Doce.
Os discos das artistas de JF
Somente em abril, pelo menos dois projetos musicais conduzido por mulheres serão lançados em Juiz de Fora. O grupo de seis mulheres unidas, Tata Chama & As Inflamáveis bem como a cantora e compositora Uiara Leigo estão com campanhas de financiamento abertas por meio da plataforma Catarse para viabilizar a gravação de seus discos. Recentemente, houve o lançamento de Karol Vieira (Mc Xuxu), com “Senzala”, Luisa Moreira, com “Todos os sonhos estão no vento”, além de singles lançados pela Alles Club, que tem como vocalista/baixista Nina Hübscher Lopes, e vídeo musical divulgado pela rapper Laura Conceição. Além disso, no último mês, eu vi nos palcos Laura Jannuzzi, Nega Lucas, a percussionista Maíra Delgado, a violonista Beatriz Nascimento e a flautista Amanda Martins, que é a produtora musical do primeiro disco da Tata Chama. Imagina as tantas outras musicistas da cidade que estiveram se apresentando, seja no rap, na MPB ou no hardcore; a tendência é que este movimento do cenário nacional tome conta da cena daqui também, com lançamentos ininterruptos.
“Despertar”
Com apenas três meses de banda, Tata Chama & As Inflamáveis se inscreveram para a virada cultural de Raul Sampaio, em Marataízes (ES). Ainda que a maioria das integrantes esteja estreando na música, a criação entre as seis é tão natural que o rigor técnico parece ser a menor parte da arte. O que sobressai é a manifestação daqueles corpos femininos e a união de mulheres com coragem para experimentar o novo, inundadas de sentimentos em comum em relação ao mundo. A sutileza da apresentação, com arranjos vocais florescendo no palco, chamou a atenção para que ganhassem como prêmio o direito à gravação de um disco, com todas as etapas de áudio, aluguel de estúdio e equipamentos, custeadas pela prefeitura da cidade.
Porém, para arcar com despesas extras das logísticas da viagem de gravação e o show de lançamento, a banda está com uma campanha aberta para doações até esta sexta-feira (13). E se apresentam neste sábado (14), a partir das 15h, no Bananal, com a entrada convertida para os custos do disco.
“Essa questão das vozes foi uma das coisas que mais nos aproximou. Eu, Alice e Nicole começamos cantando em casa, e esse foi um fio condutor do nosso começo, porque não somos instrumentistas, somos autodidatas”, conta Tata Rocha.
A banda se formou de maneira espontânea, quando Nicolle Bello e Tata Rocha, que trabalhavam com arquitetura e design, foram morar no Bananal, uma espécie de residência artística abrangendo outros criadores, como tatuadores, ilustradores e designers. Alice Santiago, que já estava inserida no ambiente musical desde criança, passou a frequentar o lugar, e as rodinhas de violão foram se tornando frequentes, enquanto Nicole e Tata foram descobrindo o potencial de suas vozes. Mariana Assis, formada em percussão na Bituca, juntou-se ao grupo trazendo base para essa parte instrumental tão primordial na música brasileira, assim como Daniela Zorzal, que é a contrabaixista e também cria elementos de percussão. Sarah Vieira, cantora e compositora, já havia estudado um pouco de canto, trouxe essa experiência para o grupo, além de contribuir com as composições.
“É tudo intuitivo, é muito mais uma percepção sentimental do que teórica da música. Embasada na simplicidade, estamos aprendendo juntas a criar. Essa questão da composição, algumas já surgem na cabeça com melodia, ainda que seja uma melodia simples. Agora estamos aprendendo a trabalhar melhor as músicas, fazer arranjos mesmo. O disco deu uma impulsionada na gente, estamos crescendo nesse sentido de estudar e aprender juntas”, conta Nicole. Alice e Tata têm se revezado no violão ao longo das apresentações, Tata também assume os teclados, além das vozes, ao lado de Nicole, Alice e Sarah.
Para a gravação do disco, de nome “Despertar”, que é uma das faixas compostas por Sarah Vieira, as meninas decidiram gravar apenas músicas assinadas por elas, seguindo um trabalho íntimo e peculiar, que situa a vivência em Minas Gerais, combinada à força emanada pelas mulheres, de criação que nasce do fogo. “Nossa primeira música autoral é ‘Chama Tata, chama Tupi’, autoria minha e da Tata. Conta sobre a origem da banda, fazendo uma homenagem à Tata, que é como se diz fogo em tupi. A música diz: ‘Fogo chama Tata em Tupi e a Tata nem sabia que se chamava Fogo’.
Outras faixas que estão cotadas para o álbum é “Azul concreto”, um presente composto por Alice Santiago em um “artista-oculto”. “Pedacinho de queijo”, uma parceria de Nicole e Alice que tem uma pegada musical bem mineira, citando memórias que remetem ao modo de vida simples. “É sobre o ciclo da vida, e isso vai se associando a Minas. Começamos falando do queijo e de repente estamos falando da lua”, completa Nicole, dizendo que todas as músicas tem relação com a natureza e a conexão de cada uma das seis mulheres consigo mesmas. “Na areia” traz a história de um romance, faixa composta por Tata em parceria com o amigo Renato Muller, assim como “Amaré”, de Alice e Vitor Santiago, que nos leva a entender o ritmo da vida, de saber entender o tempo de cada momento sem viver sob a pressão da ansiedade. Já “Despertar”, faixa homônima, é composição de Sarah e arranjo em parceria com Gustavo Wood. “Essa música todas nós amamos, acabou sendo o fio que uniu todas as ideias, casou muito com a nossa história de despertar até para a música, momento de despertar para a vida. Autoconhecimento, valorizar a si mesma e a sua própria companhia”, descreve Nicole.
Tata Chama & As Inflamáveis
Neste sábado (14), abertura da casa às 15h, no Bananal (Rua Marechal Setembrino de Carvalho 286 – Bairro Ladeira)
“Somos Feitos do Agora”
Uiara Leigo é potência na voz, fé na poesia e resistência no cantar. Além de voz poderosa para cantar samba, MPB ou rock’n’roll, não importa o gênero, a técnica afiada é a certeza de que vê-la desafinar é coisa rara. Uiara mantém uma postura profissional diante da música, de completa dedicação às composições que surgem em sua cabeça pela madrugada. Para não perder as ideias, tem o hábito de cantar as melodias e gravá-las em seu celular. Depois é apenas deleite o esmiuçar de cada inspiração, trazendo beleza às mais recentes faixas que estão sendo produzidas pelo músico e amigo Arnaldo Huff. Após “Basta”, projeto que rendeu um trabalho audiovisual com temática forte, em favor da luta das mais diversas minorias sociais, e absolutamente uma crítica ao preconceito, Uiara se prepara para lançar seu terceiro disco. Em 2010, estreou sua carreira com “Pedra bruta”, sucedendo “Meu canto é segredo”, de 2015, trabalho arranjado por Hérmanes Abreu.
O novo projeto traz no nome o frescor das composições, “Somos feitos do agora”. Uiara selecionou cinco das suas mais recentes canções que têm a ver com o que ronda sua cabeça, e porque não as de outros brasileiros e brasileiras. “Golpe”, por exemplo, Uiara traduz em palavra: “É pela dor de um golpe no coração dado por um amor perdido, elegantemente fazendo uma analogia ao momento presente vivido em nossa sociedade”.
Indo na contramão dos últimos discos com base instrumental na música popular brasileira e seus diversos subgêneros, Uiara apresenta neste EP seu lado mais puxado para o rock clássico, rock progressivo e até o blues, como em “Perdendo a revolução”, que se aprofunda na angústia do ritmo para dizer: “O homem que cala a alma endurece perdendo a revolução”. A cantora e compositora tem feito em paralelo ao seu trabalho autoral um tributo a Cássia Eller, que é forte influência para ela. Talvez a sonoridade deste EP tenha a ver com a entrega a essa interpretação mais pesada.
A ideia que costura todo o EP parece ser a celebração de tudo o que ela viveu intensamente e a fez ser o que é hoje. “As flores que criei” fala exatamente sobre sermos constituídos de tudo que foi bom e ruim, e como cada momento contribui para sermos seres humanos únicos no planeta. As letras estão ainda mais introspectivas e carregadas de existencialismo, como a faixa que abre o disco, “Teu sentido” (“Descreve a busca pelo próprio sentido de pertencer ao mundo, apesar dos caminhos incertos de cada um”), em uma poesia que acompanha o movimento de quem andou, caminhou e atravessou fases distintas na vida.
A campanha de financiamento coletivo de “Somos feitos do agora” acabou de começar a rodar e permanece aberta a doações até agosto, com algumas recompensas para quem contribuir para o projeto. A cantora e compositora, embora seja de Macaé (RJ), reside em Juiz de Fora, onde consolidou sua carreira musical que começou há sete anos. No texto de apresentação de seu crowdfunding, ela conta uma memória de infância, demonstrando que o encantamento pela música é algo inerente a sua existência: “Uma das primeiras palavras que falei foi ‘nicrofone’; nem sabia falar direito o nome de um grande companheiro da vida adulta”.