Havia um saudosismo expresso em cada canto da casa de janelas azuis e paredes brancas na esquina do Largo do Boticário, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Cada mobília e os muitos adereços que se espalhavam por mesas, estantes e cadeiras, escondiam uma história muito anterior às temidas críticas teatrais de Barbara Heliodora. Havia uma humanidade na senhora que, em 2011, me recebeu em sua casa, vestida de pijama, para uma série de entrevistas sobre sua formação, o que daria início à minha pesquisa sobre sua atuação crítica e resultaria em minha monografia de conclusão de curso. Muito alta, dona de uma voz grave, de gestos delicados e com o vício de falar “de maneira que” a cada frase, Barbara, aos 91 anos, despediu-se das plateias e da vida na manhã desta sexta-feira (10). A “dama de ferro do teatro carioca” estava internada desde março no Hospital Samaritano, em Botafogo, por conta de uma pneumonia, e seu corpo será velado e cremado neste sábado, no Memorial do Carmo, na capital fluminense.
Discreta em sua vida íntima e polêmica em sua atuação profissional, Barbara não era de grandes vaidades. Contava com simplicidade sobre uma trajetória que começou nos Estados Unidos, nas salas do Connecticut College, passou pela Unirio e pelos principais jornais brasileiros. Também não se gabava de uma sala frequentada pelos principais intelectuais fluminenses, amigos de sua mãe, a poeta Anna Amélia, e de seu pai, o primeiro goleiro da seleção brasileira e especialista na Era Pombalina, Marcos Carneiro de Mendonça. Barbara, na verdade, orgulhava-se por ter acompanhado a grande virada na história do teatro nacional. Contemporânea de Fernanda Montenegro, Tônia Carrero e Bibi Ferreira, ela viu a expressão moderna dar voz a uma linguagem brasileira e, principalmente, surgirem autores da estirpe de Nelson Rodrigues.
“Realmente devo confessar que não havia um plano de passar a vida sendo crítica de teatro, de jeito nenhum”, disse-me, sentada em um sofá em sua sala, mesmo ambiente onde fazia encontros sobre William Shakespeare. Das páginas de “O Globo” despediu-se em 2014, com a saúde debilitada e já impossibilitada de seguir uma agenda contínua de estreias, mas não parou de estudar o bardo inglês. Barbara tornou-se, ao longo dos anos, a maior tradutora de Shakespeare em língua portuguesa. Contudo, a Editora Nova Aguilar, que possui o direito de todas as traduções, ainda não disponibilizou todo o material. Seu último livro foi “Caminhos do teatro ocidental”, síntese de sua faceta como professora de história do teatro. Autora de textos que reduziram drasticamente temporadas e alçaram a ídolos atores e atrizes nacionais, Barbara se notabilizou como pensadora.
Disse-me, certa vez, que sua postura era a de um “espectador informado”. Modéstia. Estudiosa, dedicava-se dias e noites à reflexão sobre os palcos, sempre baseando-se num modelo que considerava ideal, o do teatro inglês. Ainda assim, não se combalia com as frequentes guerras dos sujeitos do teatro. “Não, eu não me avalio, os outros é que têm que me avaliar”, falou entre risos, certa de que suas palavras também estavam sujeitas aos juízos. Bradava sua postura de “amiga do teatro”, defendendo as verdades como impulso para uma cena forte e rica. Uma das últimas vozes da crítica jornalística, que cada vez mais perde espaço nos folhetins, Barbara viu, nos últimos anos, grandes amigos partirem. Em seu texto de despedida a Ítalo Rossi, exaltava sua dificuldade em lidar com o fim. “Adeus, meu amigo, mas a amizade não acaba. E tudo o que demos um ao outro continua conosco”, escreveu para “O Globo”.
Barbara, em seu adeus, continua conosco. Para mim, como um retrato na parede e em minha vida. Para o teatro, como a grande voz que fez das plateias um lugar iluminado.