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Como construir a história de muitas vozes

JF Leo Costa
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Existiram os bandeirantes e também os cariris, índios nordestinos que se revoltaram contra a invasão estrangeira. Existiram Isabel, a princesa, e também Luiza Mahin, ex-escrava de origem africana que comprou sua alforria e tornou-se quituteira na Bahia, distribuindo em seu tabuleiro mensagens que resultaram na revolta do povo malê. Existiram Zumbi e também Dandara, guerreira negra casada com o homem dos Palmares. Existiram os militares e também Stuart Angel, filho de uma conhecida estilista que até sua morte lutou para enterrar o corpo do filho morto pela ditadura e nunca mais encontrado. Toda história tem avesso, canta o samba-enredo “Histórias para ninar gente grande”, da Estação Primeira de Mangueira, vencedora do grupo especial do carnaval carioca, e defendem especialistas, atentos a uma historiografia transformada décadas a fio. “A história é uma forma de falar sobre o passado, e essa forma é sempre parcial. O historiador está sempre em busca da verdade, mas não é possível uma narrativa única sobre o passado”, ressalta Fernando Perlatto, historiador, professor do departamento de história da UFJF e coordenador do programa de pós-graduação em história pela mesma universidade.

A formação da história como disciplina, pontua Perlatto, data do século XIX e sempre foi identificada com os grandes líderes. “A história sempre esteve focada no indivíduo. A história de ser contada era a dos grandes feitos, das grandes conquistas, das grandes lideranças. No início do século XX, há a formulação de novas perspectivas históricas, com o marxismo e com um movimento importante que surge na França do final dos anos 1920 chamado Escola dos Annales, que começam a problematizar que a história contada era a dos grandes homens e era preciso pensar a partir de outros olhares, sem estar centrado nos indivíduos, olhando para outros espaços que não os das elites. Se pensarmos nessas duas correntes, elas ainda atuavam com uma perspectiva generalista, dando pouca atenção ao que era singular, sem pensar em demandas específicas. A partir dos anos 1960 começam a surgir novas correntes historiográficas que passam a enfatizar a importância de olhar para o que vem de baixo”, explica o docente, citando movimentos como o da “História vista de baixo”, na Inglaterra, e da “Microhistória”, na Itália.

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A historiografia tem se voltado para a narrativa de anônimos, mas desafio atual é lidar com excessos de depoimentos disponíveis (Foto: Leonardo Costa)

A apreensão da história, por sua vez, também foi impondo novos dilemas. De acordo com o historiador e pesquisador Antônio Carlos Siqueira Dutra, existem perguntas que deixamos de fazer. “Os grandes nomes ainda prevalecem na edição da história, que vai sendo feita dentro da lógica, dos princípios e dos valores de quem é formador de opinião, de quem é imprensa, de quem é governo”, aponta. Segundo ele, tais ideias baseiam livros de história e fazem, assim, perpetuar uma única versão. Professor da rede pública municipal e do curso de produção cênica da Fundação Educacional Machado Sobrinho, Dutra investiga em seu doutorado em educação a noção de que a história é uma edição, que deixa de fora fatos e pessoas que não interessam a quem edita e propõe que escolas e associações repensem essa escrita (ou reescrita) da história. “Muito pouco sentido pode fazer para a vida dele saber qual a importância do papiro na sociedade egípcia. Todo conhecimento é importante, obviamente, mas considero que precisamos voltar mais para quem faz a cidade andar, quem vive a cidade no dia a dia”, defende ele, que como objeto de pesquisa tomou a própria história de Juiz de Fora para além de sua versão canônica.

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O exercício da escuta

Reconstrução requer audição, afirma a professora da Faculdade de Comunicação Social da UFJF Christina Ferraz Musse. “A história oral é incorporada hoje à história oficial. As pequenas vozes têm sido consideradas para a narrativa do tempo presente”, comenta a pesquisadora, líder do grupo de pesquisa “Comunicação,cidade, memória”, do programa de Pós-graduação em Comunicação da UFJF e integrante da rede de pesquisa “Jornalismo, imaginário e memória”. De acordo com ela, o holocausto foi um marco na valorização dos depoimentos de anônimos. “Desde então vemos a força dessas fontes, que não são aquelas grandes fontes que narravam os acontecimentos. Na grande mídia ou na história com H maiúsculo, os acontecimentos são narrados pela voz dos vitoriosos, daqueles que têm os cargos mais importantes. O curioso é que até o jornalismo tem colhido o depoimento dessas pessoas simples, que a Eliane Brum (jornalista e escritora) chama de ‘desimportantes’, pessoas comuns que também contam suas narrativas sobre esse mundo que não se resume ao universo dos gabinetes, dos grandes eventos e das personalidades. Hoje percebo que a história dita oficial começa, forçosamente, a ser questionada. O fato de termos mídias muito rápidas, a internet 3.0 e a interatividade que ela proporciona, derrubou a versão única para um fato que glorificava os que tinham direito a falar e serem ouvidos. É impossível pensar a história e o jornalismo sem escutar essas outras fontes, que hoje querem ser escutadas e criam seus coletivos, seus blogs, seus perfis nas redes sociais. Não sei que tipo de revolução vivemos, mas é uma subversão.”

Por novos ídolos emoldurados: desfile campeão da Mangueira questionou cânones e chamou atenção para outros personagens fundamentais para a construção da história (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil/Divulgação)

A valorização da história oral e de narrativas extra-oficiais, para Fernando Perlatto, desperta novos impasses. “Um dos problemas que vive a historiografia é que não necessariamente dar voz aos de baixo é dar voz à verdade. Não é por que não é a voz da elite que é a voz verdadeira. O historiador atua nessa mediação, no contraste com outras fontes, em um trabalho metodológico de depurar o que é falado pelos que vêm de baixo. Porque na ânsia de dar voz aos que vêm de baixo não se pode cair na tentação de que tudo o que é dito é virtuoso”, pontua o historiador, professor e pesquisador. “No passado, havia certa escassez de fontes. A elite sempre deixou mais registros do que o povo. O historiador sempre teve muitas dificuldades de contar a história dos que vêm de baixo, porque os registros que eles deixavam eram muito restritos ou raros. Hoje, a partir da possibilidade de os de baixo falarem, da valorização de novos espaços, como os blogs, que estimulam o fortalecimento de novas memórias e agendas, a grande dificuldade é lidar com os excessos. O trabalho é estar sempre cotejando, contrastando, por exemplo, o que é dito em uma entrevista com documentações. Se antes o desafio era o silenciamento, hoje o desafio é não naturalizar tudo o que é falado”, acrescenta o autor do livro “Esferas públicas no Brasil: teoria social, públicos subalternos e democracia”.

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Juiz de Fora é (ou deveria ser) outra

“A memória é uma narrativa cheia de lembranças, esquecimentos, paradoxos, pontos nebulosos, reconstruções que incluem a fantasia. Não é uma narrativa totalmente baseada na lógica. Tem a ver com os afetos. Por isso, a narrativa do trauma também é uma reconstrução que deixa muitas lacunas”, assinala Christina Musse, autora de “Imprensa, cultura e imaginário urbano: exercício de memória sobre os anos 60/70 em Juiz de Fora”. Segundo a professora e pesquisadora, por meio de depoimentos anônimos, uma página importante do passado recente do país foi reescrita.

“A partir de fontes desprezadas pela mídia oficial ou pelas grandes estruturas do Estado e das empresas, faz-se uma história das narrativas que ficavam submersas, desaparecidas, que não vinham à tona. Em países que sofreram grandes traumas como a América Latina e as ditaduras, tivemos um trabalho muito intenso de comissões e comitês da verdade que buscaram em depoimentos de pessoas perseguidas, ameaçadas, presas e torturadas fazer uma reconstrução da história recente. Fora a imprensa nanica, a grande imprensa no Brasil estava amordaçada pela censura. No caso brasileiro, por exemplo, temos uma polifonia de reconstruções da história recente que é incrível. A cada dia, descobrimos um novo documento, uma nova narrativa, porque nem sempre as histórias vêm à tona de maneira muito fácil, porque há uma dificuldade na revelação das lembranças”, pontua Christina.

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Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil/Divulgação

Organizador do livro “Outras memórias possíveis”, publicado em 2016 pelo selo Funalfa, fundação da qual era superintendente, Antônio Carlos Siqueira Dutra reuniu narrativas de descendentes de alguns dos povos fundamentais para a formação da sociedade juiz-forana. Para ele, é urgente atentar-nos para a generosidade dos fisionomistas locais, “pessoas que dão um perfil diferenciado da cidade diferente daquele que está posto, dos grandes nomes, dos grandes feitos, e valorizam o que foi ficando para trás”. Como Dona Geralda, uma das entrevistadas da obra, que, ao falar das próprias raízes, falou também da origem negra da cidade e das fontes de uma ordem social hoje naturalizada. “Ela se coloca numa percepção de uma ex-escrava, uma mulher com pouco estudo, pouco conhecimento e poucos links. Ela dizia que o sonho dela era sair de Mercês e vir para Juiz de Fora para ser empregada doméstica porque ela receberia pelo que fizesse. Quando ela morava na fazenda com o pai, a mãe e as irmãs, todas trabalhavam, e somente o pai recebia pelos trabalhos prestados. As filhas, ainda, deveriam ser gratas pela senhora da casa por ensinar os serviços que elas deveriam fazer para manter os serviços na casa das elites”, narra Dutra, assegurando a relevância da história por trás da história do chão que pisamos dia após dia.

“Sempre construímos uma lógica de nos compararmos a grandes coisas: Manchester Mineira, Princesa de Minas, Atenas Mineira. Sempre há uma alusão a alguma coisa maior do que realmente somos ou fomos. Na realidade, a cidade não para para olhar suas reais necessidades e fica sempre na ilusão da grande cidade mineira que perdeu a industrialização e o berço cultural. Vive um saudosismo que não a permite se revisitar e se reconstruir num outro caminho. Vivemos um eterno lamuriar das coisas perdidas e do que poderia ter sido”, comenta o historiador, professor e doutorando, citando os dados do Arquivo Histórico que dão conta de uma população negra em Juiz de Fora que chegava a 60%. “Quando falamos da história de Juiz de Fora, nunca a tratamos como uma cidade negra. Não é uma terra de negros. Os sobrenomes são sempre os mesmos: Halfeld e Mascarenhas. Não que eles não tenham sua importância na construção dessa cidade, mas existem outras tantas pessoas que ficaram de fora dessa criação”, diz. Toda história tem avesso.

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