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‘Vento vazio’ é o novo livro da escritora mineira Marcela Dantés

Marcela Dantes horizontal
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A escritora mineira Marcela Dantés publicou seu primeiro livro, “Sobre pessoas normais”, em 2016, pela Editora Patuá. Naquele começo, alguns de seus temas de obsessão já apareciam: a loucura insurgente nos personagens e a interferência da realidade na ficção. Com o tempo, foi possível desenvolver ainda mais esses assuntos em “Nem sinal de asas” (Editora Patuá, 2020) e “João Maria Matilde” (Editora Autêntica, 2022), indicados para os Prêmios São Paulo e Jabuti de Literatura. Em 2024, ela expande o seu universo e vai para a Companhia das Letras com o romance polifônico “Vento vazio”, que se passa na Serra do Espinhaço, em local fictício próximo à Diamantina, e explora com profundidade quatro personagens à beira da insanidade e esquecidos pelo resto do mundo. O romance, que trabalha bem a oralidade dos personagens, foi seguido da participação na coletânea “O dia escuro”, organizada por Fabiane Secches e Socorro Acioli, em que autoras brasileiras trazem contos aterrorizantes. 

(Foto: Divulgação)

A escritora também participa da programação principal da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em uma mesa junto com a escritora Ilaria Gaspari e com mediação da também escritora Natalia Timerman, e fala sobre seu mais recente romance. A concepção de “Vento vazio” começa quando Dantés escutou lendas que percorrem vários lugares do mundo, seja no Sul do Brasil, Suíça ou Califórnia, de que o vento pode enlouquecer pessoas – no caso do vento Fohn, nos Alpes, ele servia, séculos atrás, como atenuante quando acontecia algum crime, tamanha era tal crença. Isso despertou a atenção de Marcela. “Pensei que podia dar uma ótima história. E isso juntou com uma vontade muito grande que eu estava de escrever um romance que fosse mais mineiro”, conta. Apesar de não ter um caso parecido em Minas, a região da Serra do Espinhaço, que ela conhecia pouco, era muito ventosa e podia dar vazão a essa ideia. 

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Foi a primeira vez que suas histórias se ambientaram no lugar de onde veio, e vários elementos foram complementando a história, como, por exemplo, as sempre-vivas típicas da região. “Eu nunca tinha escrito nada que tivesse a ver com as minhas raízes, que fosse algo bem mineiro, que de alguma forma se parecesse comigo conversando com a minha vó enquanto tomava um cafezinho e comia um queijo.” Além disso, ela descobriu uma usina eólica abandonada, que de fato existe, e que ajudou a ambientar a história. “Eu acho que tem coisas muito mineiras: uma rotina, um tom de voz, uma estrutura de fala e inversões de palavras. Às vezes, escrevendo o livro, me sentia muito próxima das minhas avós. (…)  São elementos que também são da minha vivência, mas não são exclusivos da minha vida, e que vão nos aproximando.”

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A proximidade com a narrativa e a criação da Quina da Capivara, em que apenas oito pessoas moram, fez com que ela fosse se aprofundando na história, que é dividida de acordo com o “livro” de cada personagem. Para isso, ela também foi se inspirando em notícias que via, como a de mulheres cavando a própria casa, e foi acrescentando esses elementos ao seu processo criativo. Só ao final é que ela foi, de fato, até onde o vento estava. “Foi um momento muito emocionante: pisar na usina, ver ela lá. Foi muito legal ver o espaço que tinha sido, e é muito importante pra mim. Eu construí vidas lá. As coisas foram se afirmando pra mim”, revela.

Mosaico de vozes

Para compor essa narrativa, ela recuperou uma vontade antiga, que é escrever um romance com múltiplas vozes.  “Fazia sentido para a proposta do livro, que era mostrar um vilarejo e pessoas atravessadas por um vento que enlouquece. Todos ali estão mexidos de alguma forma. Só um narrador contando não seria tão forte”. Foram, então, quatro personagens de idades distintas e experiências de vida completamente diferentes, mas que dividem aquele pequeno território em comum. “Queria um livro com vozes distintas, que fossem construídas de forma convincente, muito particulares e com os narradores com as suas características. Foi difícil encontrar o equilíbrio entre o que diferenciava cada uma dessas vozes e o que os unia”, conta.

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Para criar o que chama de “mosaico de vozes”, foi preciso mergulhar fundo no olhar de cada personagem. Durante o processo, ela precisou desenvolver melhor a oralidade, já que a maior parte dos relatos funcionava como se os personagens estivessem contando essa história para terceiros. “Eu lia, gravava e depois ouvia, para ver se estava fazendo sentido e no ritmo que eu queria, se estava fluindo como uma conversa. Então foi um processo longo de idas e vindas, de revisão”, diz. Neste processo, ela destaca a ajuda do editor Antônio Xerxenesky, que trouxe frescor para a maneira como estava trabalhando os personagens. 

Poeticamente insanos, por Marcela Dantés

A loucura já aparecia no trabalho de Marcela Dantés, mas dessa vez assume uma outra forma. “Ela se manifesta através do vento. Foi muito fácil: para esse livro, especificamente, fui trabalhando de forma livre e solta”, diz. Em “João Maria Matilde”, por sua vez, a loucura aparece de forma mais diagnosticada e, para isso, a autora contou com ajuda de psiquiatra para entender bem os sintomas de cada personagem. Dessa vez, foi possível trabalhar a loucura “de forma mais solta e poética”, sem se preocupar tanto com o enquadramento dos transtornos mentais. Para ela, os quatro narradores, que são enlouquecidos, não são diagnosticados ou diagnosticáveis. “São loucos de uma maneira muito própria. Me permiti que a loucura seguisse esse fluxo do vento, que fosse soprando por todos os cantos”, revela. Também por isso, entende que o livro não podia trazer muitas respostas prontas para o público.

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Se tratam, como conta, de quatro narradores não confiáveis, enlouquecidos e perturbados, que tem sua sanidade ameaçada o tempo todo. “Eles se contradizem e se complementam muitas vezes. Queria que o leitor vivenciasse também isso, um pouco dessa confusão, porque eles estão perdidos e afastados do mundo. Mas ao mesmo tempo, claro, o livro tem que ter algum pé e cabeça, o leitor tem que ter chão para acompanhar: então foi preciso achar uma medida do que entrego e não entrego, de onde vem a confusão e incerteza”, conta. Este processo, então, demandou muito cuidado para conseguir chegar ao resultado. “É engraçado porque é um livro com muitas idas e vindas temporais, que tem muitas “pontas soltas”, em alguma medida. Mas por trás dele, tem uma planilha de excel obcecada, com várias camadas, um trabalho muito complexo de estabelecer uma linha de tempo para cada personagem e de entrecruzamento entre eles”, diz.

Terror no dia a dia

Quando recebeu a proposta para participar da coletânea “O dia escuro”, Marcela Dantés conta que não sabia sobre o que escreveria, ainda que gostasse muito de contos latino-americanos que tivessem esse olhar sobre o aterrorizante – especialmente aqueles escritos sobre mulheres. Foi pensando no que poderia acrescentar que surgiu “Gilda”, seu texto sobre a relação de uma mãe e filha, quando a menina faz 16 anos e as duas vão comemorar. “Quando vi quem me acompanharia, fiquei putz, como vou escrever algo à altura dessas pessoas? Mas a coisa fluiu”, relembra. Para ela, se trata de um projeto que também deu a oportunidade de quebrar expectativas que se tem sobre mulheres e, principalmente, mães. Não foi algo que apareceu só em sua história.

Para ela, o desconforto em seu conto está justamente em uma romantização muito grande da maternidade. “A gente sempre escuta a história do amor incondicional, que a mãe vai fazer tudo pelos filhos e, claro, na maioria das vezes é isso mesmo. Eu sou mãe e digo com tranquilidade que é o maior amor que já senti na minha vida, que é algo da ordem do inexplicável. Mas é claro que tem exceções, e quando nos deparamos com elas, isso incomoda muito. Não é isso que queremos ver”, diz. Ainda mais quando, como no conto, isso aparece como um planejamento de longo prazo e em uma personagem em que o próprio nome já significa “sacrifício”.

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‘Literatura brasileira contemporânea é uma mulher’

A escritora Carola Saavedra, a partir da personagem de seu conto dentro da coletânea, questiona: “Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror?”. A frase ajuda a guiar aquelas histórias, como Marcela também enxerga, já que as escritoras reunidas ali vão para um caminho em comum.  “Quando vamos pensar num conto de terror, podemos tentar pensar algo mais restrito, de histórias de fantasmas, múmias, castelos mal assombrados. Mas o livro não é sobre isso, é sobre pessoas reais, em situações cotidianas e contemporâneas”, destaca. A partir das vivências, ela entende que era possível escrever algo desconfortável sem atingir o sobrenatural. “Não precisamos ir para o caminho da fantasia para nos assustar, a humanidade já tem nos assustado o suficiente”, diz.

Para ela, também por isso, o projeto de reunir as escritoras brasileiras é genial. Elas são guiadas por um conto de Lygia Fagundes Telles, que funciona como uma “benção” para o caminho que vão seguir. Foram escolhidas mulheres de diversas regiões, com características e trabalhos diferentes, para saírem desse lugar comum e experimentarem. “A gente vem trilhando um caminho muito difícil e a passos de formiga para dar mais espaço para a literatura feita por mulheres. Finalmente acho que estão tendo a visibilidade que merecem. (…) Acho que a literatura contemporânea é feminina. Os trabalhos mais interessantes, mais ricos, mais complexos e apaixonados da literatura brasileira contemporânea estão sendo feitos por mulheres. Quando juntamos 20 mulheres diferentes, vemos visões de mundo dessas mulheres sobre o que é estranho e desconfortável e aterrorizante, foi uma quebra de paradigma”, ressalta.

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