Estava na janela ou próxima dela. Ou na varanda, no carro, na rua. Senão dentro, ao menos próxima do espaço público. Quando respondeu às perguntas enviadas pela Tribuna, a cantora Vanessa da Mata não estava envolvida em silêncio. Estava imersa no mundo. E “Quando deixamos nossos beijos na esquina”, seu novo disco, é resultado desse mergulho. “O mundo precisa de mais amor por favor”, canta na faixa que dá título ao álbum, certa de que toda revolução começa por dentro. E num disco que vai do samba à balada, passando pelo reggae e pela cantiga, Vanessa cria diferentes metáforas para falar de uma mudança que começa no íntimo e alcança o universo. “Qual é o problema/ de estar na sua própria companhia?”, questiona em “Vá com Deus”, música na qual desmitifica o desenlace de relações tóxicas. “Isso não é perda/ isso é livramento”, canta, atenta à linguagem jovem, imersa no hoje.
Em entrevista por áudios de Whatsapp à Tribuna, Vanessa da Mata é enfática ao defender o amor como elemento essencial de transformação do mundo. A mesma defesa faz no álbum inteiramente autoral, cuja penúltima e emocionante faixa é dedicada a um dos três filhos. “Não demora na cachoeira cuidado com as pedras/ deixa o telefone ligado/ Lipe, Lipinho, Lipe, Lipinho, Lipe, Lipinho”, canta em “O mundo para Felipe”. Num tom otimista, a cantora constrói um novo trabalho no qual se faz absolutamente contemporânea por enxergar o mundo tal qual ele se apresenta, mas com a leveza de apostar nos dias que chegam. “Aonde a fome vivia/ joguei minhas cores fartas./ E como a natureza é sábia./ Tem mazelas, mas tem cura”, dizem os versos de “Hoje eu sei”.
Tribuna – “Hoje eu sei” tem uma carga emocional por ser um testemunho muito genuíno. O que há de biográfico nessa letra? E o que há de biográfico nesse disco?
Vanessa da Mata – “Hoje eu sei” é meu testemunho da própria vida. Fala do que acho que tem que ser. Essa música fala da responsabilidade de ser adulto, de se achar no mundo e ter os efeitos de ressignificar as coisas, de achar sua felicidade, o que é para você a felicidade, as frustrações e os traumas e fazer disso um caminho para que consiga sobreviver, sem entregar isso aos outros, parando de culpar pais ou ex-namorados. É sobre parar de aglomerar pessoas e coisas que não têm nada a ver na vida, e saber escolher, inclusive, os próprios sentimentos, escolher o caminho mais leve e mais brando para continuar a vida. Ouvi muitas coisas ultimamente, pessoas desesperadas, querendo relacionamentos como se não soubessem viver sozinhas. Soube de pessoas próximas que se mataram. Soube de uma menina obcecada por um rapaz e que corria atrás dele de qualquer maneira, completamente desnorteada, de uma forma que dava vergonha de ver, sem autoestima. Isso tudo, de certa forma, me abalou e me fez pensar em como escrever essas canções e perceber o quanto o mundo está solitário num âmbito maior, dentro de si, olhando cada vez mais para fora e menos para dentro, não se acalentando. Isso causa um vazio gigantesco.
Em “Nossa geração” também há uma reflexão sobre a sociedade atual (“Nossa geração não se beija mais/ foram doutrinados a achar sujo./ Nossa geração mata o diferente/ padronizam frutos, flores e gente”). Qual foi o antecedente para essa composição?
Tenho visto cada vez mais as bonecas do amor no Japão, pessoas se relacionando por aplicativos, muito à distância. Vi uma pesquisa, depois de a música ter sido feita, que confirmou isso, apontando que em 30 anos não vai haver mais sexo, não do jeito que a gente conhece, não pelo tato. E é cada vez mais distante o tato, mesmo. Tenho lido (Friedrich) Nietzsche, e ele confirma isso numa teoria que chama de niilismo, defendendo que as pessoas vão chegar a um momento em que vão se distanciar, de fato. Tenho uma amiga que mora nos Estados Unidos e me contou que uma mãe foi chamada à escola porque a filha abraçava e beijava as amiguinhas. A diretora chamou atenção dizendo que aquilo não seria permitido porque na cultura delas aquilo era criminoso, era assédio, aterrorizava. Isso já já chega à nossa cultura. Temos uma cultura de abraçar e beijar, mas já depende de quem chega, de quem toca. Já não suportamos muito bem dependendo de quem é. Estamos cada vez mais distantes desses nossos instintos. Não à toa os robôs fascinam cada vez mais. Não à toa padronizam tudo, as pessoas não conseguem mais lidar com a diferença do outro, porque gostam de colocar tudo em caixinhas. Se a laranja tiver uma manchinha já não compram. Isso principalmente no exterior, mas já chegando aqui, dependendo do supermercado. Esse crescimento da extrema-direita tem essa ideia de que o diferente é mal visto, quase como se fosse um terrorista. Não há um respeito ou uma inteligência para ver o diferente. Existe uma restrição de inteligência para enxergar pessoas com aberturas, expansão de estilo, de artes e ideias. Essa música tem isso: nossa geração não sabe mais amar porque não ama o diferente.
“Temos uma cultura de abraçar e beijar, mas já depende de quem chega, de quem toca. Já não suportamos muito bem dependendo de quem é. Estamos cada vez mais distantes desses nossos instintos. Não à toa os robôs fascinam cada vez mais. Não à toa padronizam tudo, as pessoas não conseguem mais lidar com a diferença do outro, porque gostam de colocar tudo em caixinhas”
Qual o lugar do disco “Quando deixamos nossos beijos na esquina” em sua trajetória? O que representa para você esse novo trabalho?
Estou muito muito feliz com esse trabalho. Talvez seja o trabalho de maior satisfação e certeza que tenho. Não posso me vangloriar de ter um a memória maravilhosa, não posso me lembrar de todos os discos, e de minhas sensações inteiras, mas como produzi esse novo disco, saí dele com um orgulho imenso e sem nenhuma dúvida. Esse disco é totalmente autoral. Por eu estar presente em tudo, absolutamente tudo, até o fim, na mixagem, e por ter o domínio sobre os detalhes, tenho um xodó com esse disco.
O Mauro Ferreira, em crítica do recente show diz que você “dá a impressão de fazer música por intuição, jorrando notas e versos sem as amarras das métricas”. Como é seu processo de composição?
Não toco instrumentos porque gosto da fluidez que a melodia pode me trazer. Tenho o domínio da melodia, mas não me demoro procurando um acorde como meus amigos fazem. Ela pode começar por uma intuição, e com todos é assim, mas tenho um domínio. Vou buscar uma primeira melodia: “E se o tempo fosse andar” (cantando). Busco uma melodia como busco uma palavra. Ela sai e vou desenhando. Isso é um domínio de ano. Não comecei assim, estudei esse processo. Como sou “mezzo” soprano, exploro esses graves e agudos. Gosto de canção. Gosto de letra, significados, poemas e procuro costurar isso muito bem, fazendo disso um grande pergaminho, um grande artesanato de histórias brasileiras.
O que te move, hoje, a compor e a cantar?
Tenho a necessidade de falar. As minhas músicas têm uma sutileza grande, mas falam muito. “Nossa geração”, por exemplo, fala da intolerância imensamente. “Vá com Deus” fala desse fenômeno que é as pessoas não conseguirem viver sozinhas e estarem desesperadas, adolescentes se matando por não conseguirem lidar com a frustração do primeiro amor, o desalento de não entender o que é a busca de si. Tenho muitos caminhos de diálogo. E gosto de psicologia, de falar de um lado que parece ser de amor e não é bem assim, onde um adulto se mostra mais quando está acompanhado ou não, mas por causa do amor. Você quando está com uma pessoa ou quando está só, por causa da ligação com o outro, tem muitas reações, profundas, existenciais, de autoboicote, de autoflagelo. O ser humano me interessa muito. A vida me interessa muito. Tenho um interesse por definição, por ligar caminhos, ligar significados, por deixar escrita uma existência.
“O ser humano me interessa muito. A vida me interessa muito. Tenho um interesse por definição, por ligar caminhos, ligar significados, por deixar escrita uma existência”
No novo show, você canta “Comportamento geral” (“Você merece, você merece/ tudo vai bem, tudo legal/ cerveja, samba, e amanhã, seu Zé/ se acabarem com o teu Carnaval?”), do Gonzaguinha. O que essa música te diz hoje, em 2019?
Essa música tem tudo a ver com 2019 porque, por exemplo, tivemos uma diminuição enorme de investimentos no carnaval do Rio de Janeiro, que é uma das pouquíssimas coisas que o povo tem e dá alegria, gera emprego, amplia o turismo. O (prefeito do Rio Marcelo) Crivella tirou esses investimentos e deixou o povo quase que completamente sozinho fazendo esse carnaval. Acho muito preocupante como está indo o Brasil. Há uma falta de noção da liberdade do outro em suas crenças, em suas práticas. Há um Estado que corrompe para sua própria crença. Acho extremamente forte, feio e desonesto com o que é de fato o cargo público, que não é o de pastor. O cargo de política é para todos. Quando vejo coisas assim fico completamente desnorteada. O povo brasileiro é pacífico demais e isso faz com que a gente fique na mão de raposas enormes.
Recentemente a Maria Bethânia disse numa entrevista: “O palco é minha tribuna”. O que é o palco para você? Também dá sua opinião no palco?
Sim, ele tem um lugar sagrado de púlpito, o palco-tribuna. Mas, para mim é um oratório, um caminho onde mando meus recados invisíveis. A música é um recado gigantesco invisível, a qual as pessoas recebem e devolvem ao mesmo tempo. Que coisa mágica é a música! Ela carrega tanto, é um rio de palavras e sensações, e é totalmente invisível. Isso eu respeito imensamente, tanto ao ouvir música quanto ao cantar. Respeito muito meus ouvidos e a música que estou ouvindo, escolho bastante.
“A música é um recado gigantesco invisível, a qual as pessoas recebem e devolvem ao mesmo tempo. Que coisa mágica é a música! Ela carrega tanto, é um rio de palavras e sensações, e é totalmente invisível”
Na música que dá nome ao novo álbum você canta que o “mundo está doente”. Como vivencia isso? Como é ser artista nesse cenário?
Artista tem uma sensibilidade além do normal, fica paralisado diante de certas agressividades, grosserias, brutalidades, perversidades. Eu não sou diferente disso. É muito difícil ver pessoas defendendo atrocidades, cada vez mais baixando o nível do que é humano, sendo absurdamente grosseiro, colocando o dedo na cara do outro por ser diferente. Isso é, acima de tudo, burro. Tenho visto cada vez mais pessoas grosseiras, sem educação, num nível muito baixo de evolução e sendo legitimadas. Aí está o perigo. Fico morrendo de medo dessa coisa das armas (mudança nas regras para posse e porte de armas). Isso é muito sério. “Vai ser muito difícil tirar armas, conseguir documentos!”, alguns dizem. Mas você paga e consegue qualquer coisa no Brasil. É fato. Eu me lembro de quando era mais fácil ter armas no país e bastava dar uma buzinada na rua e corria o risco de levar um tiro. Eu me lembro que atiraram no pescoço do irmão de uma amiga minha. Dentro de uma boate um cara brigou com outro por causa de uma namorada e quando o irmão saiu, o cara confundiu e deu um tiro nele. Os caras esperavam do lado de fora da boate, pegavam a arma no carro e atiravam. Era um bang bang esse Brasil. Não sou ligada a partido. Não confio em nenhum deles. Não venham dizer que sou do centro, da direita ou da esquerda. Estou completamente fora, sou apartidária, e acho que certas coisas a gente não deveria admitir.
O Zé Pedro classifica sua música como resultado do encontro entre “o pop romântico, a brasilidade, a canção, o reggae californiano, os ritmos dançantes”. Como encara essa mistura? Elas refletem suas influências?
Tem um reggae californiano, tem um ska também, tem canção (que é “Hoje eu sei”), tem romance (que é “Só você e eu”). Sempre gostei dessa miscigenação rítmica. Curto essa influência de vários lugares. Sou mato-grossense e estar no meio do Brasil me ajudou muito a ouvir músicas do Norte e do Sul. Esse Centro-Oeste me deu uma facilidade geográfica que as pessoas não tinham em outros lugares. Ninguém do Rio de Janeiro ou no Sul de Minas ouvia o que chegava no Pará. Ninguém do Pará ouvia o que chegava no Sul, mas ouvia o que tinha nas Bahamas e na Jamaica. Eu tinha um pouco de tudo. As guitarradas chegavam ao Mato Grosso. Isso foi me talhando musicalmente, o que me trouxe uma naturalidade com esses ritmos todos, e, ao mesmo tempo, pôs para mim uma riqueza, com várias possibilidades de composição. Na verdade, é o que me facilita em cores e diagramas e páginas que posso preencher.
“Sempre gostei dessa miscigenação rítmica. Curto essa influência de vários lugares. Sou mato-grossense e estar no meio do Brasil me ajudou muito a ouvir músicas do Norte e do Sul. Esse Centro-Oeste me deu uma facilidade geográfica que as pessoas não tinham em outros lugares”
Sua atividade nas redes sociais é bastante intensa. Ao mesmo tempo você parece bastante discreta em relação à sua vida pessoal. Como equilibra isso?
Essa coisa das redes sociais foi se tornando muito natural para mim. Acho que fui me expressando de uma maneira, ao meu ver, como sou. Não tem como ser diferente. É natural. Eu sou essa pessoa, na minha, completamente discreta. Ao mesmo tempo intensa, como você diz. E não gosto muito de dar a minha cara a tapa, do tipo de perguntar para as pessoas se elas gostam do meu namorado. Isso é um horror. A partir do momento que você mostra, começa a falar da vida muito pessoal, e as pessoas vão achar que têm o direito de opinar. Acho extremamente perigoso, porque a gente sabe sempre de um vizinho que é meio doido, de um vizinho da mãe que é meio doido. Imagina isso para uma pessoa pública, que convive e está perto de milhares de doidos, porque aquele sujeito está sempre olhando para o Mickey que aparece na multidão. E o Mickey é o ser conhecido, o que faz a música, aparece na televisão e que escolheram como o que tem o holofote em cima. É preciso ter bastante cuidado. Acho que estou conseguindo fazer esse inter entre eu e as redes sociais, sendo um pouco generosa sem ultrapassar uma linha que é de respeito comigo mesma.
Fotos: Rodolfo Magalhães/Divulgação
VANESSA DA MATA
Nesta sexta (9), às 23h, no Cultural Bar (Av. Deusdedit Salgado 3.955 – Teixeiras)