Rafael Elmi era daquelas crianças que brincava sozinha no quintal de casa. Com uma relativa diferença de idade entre ele e seus irmãos, encontrava naquele espaço o que precisava para se divertir: além do ambiente, as imaginações e o que surgia na sua cabeça. As crianças têm, de fato, imaginação fértil. Umas, seguem assim. Outras, burocratizam a ludicidade. Já Rafael percebeu com o tempo que aquela imaginação era o suporte ideal para viver do que ele, realmente, queria viver: da arte.
“Minha mãe sempre me perguntava de onde eu tirava essas minhas ideias. E a minha resposta era sempre a mesma: ‘Eu tirei da minha cabeça’. E eu achava um máximo poder falar que eu tirava essas coisas da minha cabeça, como se ela fosse esse baú mágico, com ideias infinitas”, conta Rafael, rindo. Entender, então, que isso poderia ser mesmo um caminho foi, basicamente, compreender que, sem essa criatividade que o acompanhou desde a infância, não faria sentido. “Percebi que eu não conseguia me ver feliz e realizado senão com a arte.”
Cursar Artes Visuais na Universidade Federal de Juiz de Fora foi concretizar essa ideia e a perseguir. É forma também de ir se desenvolvendo em outras modalidades e mídias, sempre dentro da artes visuais. Foi o que aconteceu quando decidiu pesquisar o giz pastel oleoso. Essa descoberta, que iniciou com um flerte, fez com que sua arte se ampliasse também, de certa forma, e ele encontrasse uma possibilidade que ainda o agrada – e muito.
“Logo de cara, lembro que fiz um primeiro desenho, uma mãozinha, e gostei muito do resultado e das texturas que consegui alcançar no papel e, principalmente, do aspecto sujo que ele tinha. Por algum tempo, eu tive medo das coisas feias e assustadoras. Mas eu entendi que o medo era, na verdade, uma curiosidade. Me assustava porque me tocava de uma forma diferente. E esse medo foi se tornando uma curiosidade, um interesse, e eu vi que queria fazer mais desenhos com giz pastel, e eu queria que eles fossem sujos, feios e grotescos”, destaca Rafael.
Mostra de Rafael no Occa
Parte desse trabalho pode ser conferido na mostra “Bonito é ser feio”, que Rafael expõe, durante este mês, no Occa, que fica na Rua Padre João Emílio 11, Passos. São várias obras, em diferentes formatos, que surgiram dessa pesquisa a partir do giz pastel oleoso e que, principalmente, discutem sobre o que é de fato feio e apontam para a importância de se abrir, também, para o que pode ser grotesco e, por isso, incomoda.
Os corpos são uma constante no trabalho de Rafael. Passando pelo Occa, é possível ver suas representações de formas variadas: sempre extrapolando o real e o imaginário a partir, sobretudo, dos sentimentos, como da dor. E isso começou com aquela “mãozinha”, como contou. Ela tem dedos longos e deformados, que vão para todas as direções, feita a partir de suas folhas, uma sobreposta a outra.
E isso só foi possível por um erro. “Tinha feito uma mão que eu detestei. E esse erro acabou sendo uma oportunidade perfeita para explorar a tridimensionalidade. Foi aí que eu tive a ideia de recortar a mão, de forma que o fundo todo saísse e eu só tivesse a mão, e eu a apliquei por cima de outra folha. E, com as próprias ondulações que acabei causando no papel enquanto recortava, ela deu impressão que era uma mão mesmo repousando em cima de uma folha”, explica. A obra, que recebeu o nome de “Cerca”, que, com luz, ganha um jogo interessante de luz e sombra, foi o começo para que Rafael explorasse ainda mais o papel, a partir do giz pastel oleoso.
Depois dessa, surgiu “Vislumbre”: um dedão que expõe uma ferida, com uma pele arrancada que escancara a carne. Foi um experimento de, literalmente, rasgar o papel. “Algumas pessoas sentiram agonia quando viram, e eu achei interessante. Porque é uma obra que eu acho que está muito completa. Foi a partir dela que eu descobri que eu podia explorar mesmo a tridimensionalidade.” A partir disso, surge uma outra: “Aparelho e aparato”, também perturbadora, de uma boca com um aparelho dental que, visivelmente, dói, com um arame de vai além da tela. “É mais uma obra que tem esse significado um pouco mais óbvio, mostrando como que esse movimento de correção das formas, dos corpos, é esse processo doloroso.” Algumas palavras impressas como tatuagem deixam isso ainda mais claro.
Uma outra peça pendurada no teto do Occa mostra ainda mais esse trabalho tridimensional. É mais uma mão distorcida, feita a partir de várias camadas e finalizada, como deveria ser, com giz pastel oleoso. É um experimento ainda mais real, com um jogo de movimento, formato e profundidade. E esse caminho foi sendo encontrado exatamente durante o processo: nada pré-estabelecido. A partir dos erros, principalmente, e usando o papel apenas como começo. “Durante o processo que desenvolvi minha poética”, acredita Rafael.
O lugar do feio
Foi também nesse processo que Rafael foi entendendo que tudo isso ia muito além da estética, de fato. “As ideias vêm até mim, eu tenho esse primeiro impulso de produzir algo, e à medida que eu produzo, às vezes até depois que eu já terminei, eu começo a olhar para aquilo e investigar onde aquilo se encontra, onde aquilo me toca e me comove. A partir da arte já pronta é que eu consigo desenterrar lá de dentro um sentido para aquilo, e como aquilo, de certa forma, está relacionado a mim.” Muitas vezes, são os lados obscuros que aparecem ali.
Rafael confessa que suas obras, como o próprio nome da mostra sugere, é sobre o feio: aquilo que perturba e raramente ocupa as salas de arte. Mas é isso que ele quer. “Falar sobre o feio e o grotesco é uma ferramenta muito interessante e muito boa para desentorpecer o olhar sensível das pessoas, para fomentar essa reflexão, essa discussão acerca do que a gente tem como feio e porque a gente categoriza essas coisas dessa forma”, justifica.
Esse movimento para ele, inclusive, faz pensar qual o papel da arte e qual sua função, ainda nesse sentido de “desentorpecer o olhar”. “Uma coisa que a gente não pode fazer de forma alguma é pensar que a única função da arte é ser bela. Eu acho que a arte está aí para ser algo que choca e assusta também. Porque é nesse momento que ela vai ao contrário do que a gente tem como o belo e o normal e o que já é visto, que ela alcança esse potencial máximo de chocar as pessoas e causar uma reflexão e uma inquietação nelas.”
Sobretudo em um momento em que as redes sociais são tomadas por vidas perfeitas de dias sempre ensolarados, falar sobre o feio, para Rafael, é pontuar que esses momentos desagradáveis, ou grotescos, também existem. “Acho que esse movimento de a gente exaltar o que é feio e o que é estranho, o que é grotesco, tem esse sentido não só do estético, mas muito e, principalmente, nesse sentido do autoconhecimento, de abraçar os lugares escuros e as partes escondidas e sombrias que a gente tem dentro da gente, mas que a gente prefere fingir que não vê, esconder.” É um momento que ele mesmo tem realizado na medida em que compõe essas obras. Um ato contínuo de se rever e se encontrar.
Serviço
“Bonito é ser feio”, de Rafael Elmi
Visitações quarta-feira (das 19h às 23h); quinta e sexta-feira (das 19h às 00h); sábado (das 18h às 00) e domingo (das 18h às 22h)
Até 4 de agosto
No Occa (Rua Padre João Emílio 11 – Passos)