
Marcelle trata as duas gatas como parte da família
A escritora romena Herta Müller nem sequer imagina que num cantinho do Brasil vive uma gata que tem o nome inspirado na Nobel de Literatura de 2009. A autora de "Tudo que tenho levo comigo" – um relato dos horrores vividos pelos saxões residentes na Transilvânia deportados para campos de trabalhos forçados como "pagamento" do nazismo hitlerista – sempre me gerou repulsa e um tanto de desconforto, sentimentos que me nortearam quando a pequena Herta entrou em minha casa. A arte, assim, inspirava a vida. Já no livro "Um gato de rua chamado Bob", os mesmos afetos parecem ter surgido no autor James Bowen ao se confrontar com um felino que iria mudar por definitivo sua trajetória. A vida, assim, inspirou a arte. Na lista dos mais vendidos na última semana – quarto lugar nas listas do site Publish News e das revistas "Época" e "Veja", na categoria de não-ficção -, a obra traça um caminho já percorrido por muitos outros produtos artísticos que seduzem leitores e espectadores ao retratar a relação de companheirismo entre animais domésticos e seus donos.
Natural da Inglaterra, James Bowen, de 34 anos, mudou-se para a Austrália ainda criança, e, no início dos anos 2000, aos 18 anos, retornou a Londres. Seu desejo era mergulhar no universo do rock’n’roll e se tornar o próximo Kurt Cobain, mas a cena underground londrina acabou por aproximar-lhe das drogas e da marginalidade. Das bandas à sociedade em um estúdio, o músico morou nas ruas e fez da calçada o palco para suas indigentes apresentações. Quando um gato laranja, parecendo maltratado, chega a sua casa (paga com uma subvenção do governo, destinada aos viciados em recuperação), as coisas começam a mudar. Bob foi castrado, ganhou peso e começou a acompanhá-lo, permanecendo, durante os shows, na caixa do violão, que passou a render muito mais moedas do que de costume.
"Ver-me com um gato suavizou-me aos olhos das pessoas. Ele me humanizou. Especialmente depois de eu ter sido tão desumanizado. De certa forma, ele estava devolvendo minha identidade. Eu tinha sido uma não pessoa; e estava me tornando uma pessoa novamente", relata Bowen em passagem da obra. Segundo Fernando Baracchini, presidente da editora Novo Conceito, responsável pelo livro no Brasil, a narrativa reúne de tudo um pouco, desde o relacionamento do gato com um ser humano até a superação do autor, passando pela realidade inglesa e detalhes dos felinos. "O Bob foi um amor à primeira vista. A história é muito boa, e logo acreditamos no potencial comercial dele", comenta Baracchini. "Foi uma das nossas apostas, tanto pelas pesquisas que fizemos quanto pelo investimento em marketing", completa ele, que no projeto gráfico admitiu até mesmo inserir o desenho de um gato junto à logomarca da editora.
Com uma tiragem inicial de 50 mil exemplares, já esgotada, a obra de Bob acaba de ganhar uma reimpressão, repetindo o sucesso de "Marley & eu", do jornalista John Grogan, que passou mais de 110 semanas na lista dos mais vendidos, alcançando mais de 700 mil exemplares comercializados, além de ter se tornado filme, com grande sucesso de bilheteria. Mas, tanto na literatura quanto no cinema (os direitos autorais de "Um gato de rua chamado Bob" estão em negociação em Hollywood), latidos e miados rendem altas cifras, além de boas doses de simpatia. "Sempre ao seu lado", longa estrelado por Richard Gere, enfoca a fidelidade de um cachorro com seu dono. Da década de 1990, "Beethoven, o magnífico" se tornou um clássico cinematográfico canino, assim como a história de "Lassie". "Anjo de quatro patas", do novelista Walcyr Carrasco, traduz em palavras o sofrimento do autor com a perda de seu cão. Do Garfield ao Snoopy, os bichanos se integraram à arte e, de maneira silenciosa, movimentam um mercado.
A história de Bob e James Bowen revela, nas entrelinhas do livro, uma configuração contemporânea das casas, que veem diminuir as famílias. E, numa possível substituição, as pessoas profissionalizam o tratamento dos animais domésticos. Antes restritos aos quintais, os bichinhos hoje constituem o lar, como exatas companhias e membros de um clã, recebendo até mesmo heranças (como o caso da milionária americana Gail Posner, que deixou US$ 21 milhões para seus três cachorros) e participando de divisões de bens (atualmente já existem decisões judiciais que conferem a guarda compartilhada de animais de estimação) . A arte, assim, apenas reflete o cotidiano.
A professora de história Natália Paganini confirma o fato com a Liberdade que tem em casa. A despeito do nome de sua gata preta, a introdução do bichinho em sua rotina impôs muitos limites, até porque o felino não fica quieto, nem quando é para sair no jornal. "Esse conceito de liberdade é algo muito indefinido para nós, e os gatos parecem compreender profundamente. Ela faz o que quer, na hora que quer. A casa ficou mais alegre, cheia de vida", comenta Natália, que publicou um vídeo no Facebook para confirmar que a tal Lili (para os muito íntimos) atende mesmo o telefone (quando ele toca, ela corre, dá um tapa, derruba-o e põe a cabeça no fone). Na fila à espera de fazer uma adoção, Natália é pontual ao afirmar que Liberdade não substitui a maternidade. "A criança preenche outro lado, o da mãe, que tem outra dimensão de relação", explica.
Para a arquiteta Marcelle de Morais, os gatos são muito inteligentes e sensíveis à energia de quem os circunda. Dona de Jolie e Charlotte, ela diz que eles são tão exigentes quanto os seres humanos, por isso afirma que em sua casa moram as três, e cada uma sabe de seu espaço. Tratadas com todos os cuidados necessários, elas acompanham a dona em todas as atividades, do banho à escovação dos dentes. "A dinâmica dos gatos é muito rica. A prioridade deles é estar bem, por isso passei a cuidar mais de mim", pontua, destacando a importância da adoção dos bichinhos e dos muitos cuidados que eles exigem. De acordo com Marcelle, as políticas públicas em relação ao controle e cuidado dos animais domésticos ainda são muito precárias, diferentemente do que Bowen mostra em sua obra, revelando o eficiente esquema de proteção aos animais em Londres.
Por conta desse controle de natalidade, a jornalista aposentada Tuca Prazeres, que já teve 40 gatos em seu quintal, voltou a ter um número próximo a esse. Hoje alimenta 30 felinos, considerado por ela selvagens, rodeados com uma cerca elétrica para que não fujam e incomodem os vizinhos. Dentro de casa, convivem três dóceis cachorros (dois já velhinhos, com 14 anos, e um mais novo, com apenas três), e outros sete gatos, tudo sem raça definida. "É uma boa vida danada aqui em casa. Todo mundo queria ser cachorro e gato aqui", brinca, ressaltando a pouca liberdade que tem. "Não posso deixar nada dando sopa na mesa que eles logo comem", diz, contando que o marido prefere sentar-se numa cadeira dura a ter que tirar os cachorros do sofá, tamanho o amor. Mesmo assim, entre muitos latidos e miados, Tuca afirma enfática: "Não conseguiria viver sem eles".
Mas, se a história de Bob não é nada incomum, porque tamanha atração? Numa rápida olhadela por uma banca de livraria, é possível encontrar uma pista: a vida dos outros provoca. As 236 páginas de "Um gato de rua chamado Bob" contam muito mais sobre o autor do que sobre o próprio bicho. Trata-se de um gênero que paulatinamente tem ganhado status comercial: a autobiografia. Objeto de estudo do teórico francês Philippe Lejeune, a forma parte de um "pacto autobiográfico", no qual o autor assume estar dizendo a verdade. "A identidade entre o autor e o personagem narrador por si só já dá uma certeza de que mesmo que ele fale mentiras é ele quem está dizendo", explica a professora da Faculdade de Letras da UFJF Jovita Noronha.
Segundo Jovita, que orienta diversas pesquisas sobre o assunto e coordena um site (escritasdesi.com.br) com algumas delas, o interesse pela vida dos outros é um fenômeno atual, apesar de a forma narrativa já aparecer em Jean-Jacques Rousseau no século XVIII. "A experiência pessoal é um tema que interessa muito a literatura contemporânea", afirma. Atento ao crescimento do mercado de não-ficção, o presidente da Novo Conceito, Fernando Baracchini, diz que de uma maneira geral o número de leitores da ficção é muito maior. "Os livros de não-ficção acabam sendo mais maduros, talvez por isso as vendas sejam um pouco menores. São leitores mais preparados", diagnostica. A vida, enfim, é a própria arte.