
A obra “Um dia na vida de Abed Salama: Anatomia de uma tragédia em Jerusalém”, do jornalista Nathan Thrall, foi lançada em 2023 e chegou ao Brasil pela Companhia das Letras neste ano — encontrando um cenário internacional bastante diferente de quando a obra de não ficção começou a ser escrita. Remontando um acontecimento de 2012, quando um acidente rodoviário envolvendo um ônibus escolar acontece em Jerusalém, o profissional adentra o conflito de décadas entre Israel e Palestina, mas pela perspectiva das pessoas comuns, que são afetadas todos os dias pelas decisões políticas que envolvem o local. Apesar do contexto da guerra provavelmente ter mudado muito das dinâmicas descritas, compreender a violência presente no dia a dia e os seus efeitos cruéis nunca foi tão importante.
O livro premiado pelo Pulitzer de 2024 parte do ponto em que Abed Salama recebe uma ligação, que indica que seu filho, Miled, de 5 anos, pode estar em um dos ônibus envolvidos no acidente. A partir desse momento, ele enfrenta o trânsito desordenado na tentativa de chegar ao local e entender a real situação. Já o leitor é deslocado para outro lugar: é preciso conhecer a vida de Abed, seus posicionamentos políticos, seus casamentos e até a decisão de deixar seu filho ir ao passeio – não só pela relevância que isso passa a ter na história, mas também para compreender todo esse contexto. A partir das pessoas comuns, também é possível entender questões importantes: o encarceramento da população após a ocupação, o radicalismo crescente e os laços que de alguma forma ainda resistem.
Talvez nenhum acidente seja de fato um acidente, mas nesse caso isso fica ainda mais evidente: parte da tragédia que acomete os palestinos, no momento ainda sofrendo com os bombardeiros, é o projeto político que os deixa em uma situação muito mais vulnerável do que o que deveria ser aceitável. Um acidente envolvendo um ônibus escolar já seria uma tragédia por si só, mas com tantos aspectos que poderiam ter sido alterados ou pelo menos atenuados por pequenas decisões, ainda tão inacessíveis, tornam esse caminho quase inevitável. O apartheid ao qual os palestinos são submetidos, é claro, tornou-se ainda pior com a guerra — assim como o número de crianças mortas, com mais de 14 mil dessa população tendo sido atingidos apenas na faixa de Gaza, de acordo com dados divulgados pela ONU em dezembro de 2024.
As nuances presentes no livro são bonitas justamente por se tratarem de pessoas comuns: não são aquelas responsáveis pela manutenção dessa tragédia, mas as que continuam sendo afetadas por ela e de alguma forma precisam manter suas rotinas. O trauma ao qual são submetidos também se apresenta na narrativa, que consegue adentrar tantas perspectiva reais, fruto de um trabalho de jornalismo intenso e muito aprofundado. A obra tem mais o mérito de conseguir fazer isso sem se tornar demasiado explicativa ou até mesmo incompreensível para quem não está tão imerso nos acontecimentos do conflito.
Escrita crua e contínua
A escrita crua de Thrall, que parece narrar de uma perspectiva distante e ao mesmo tempo próxima, ciente do que está acontecendo com os personagens mas não se inserindo em cena, consegue complexificar todo o panorama — e sua falta de delicadezas ou sutilezas também se explica por isso. Ao final do livro, a sensação é que o desfecho era impossível de contornar: o pior acontece, o pior continua acontecendo. Talvez, então, o diferencial da obra possa ser nos fazer pensar que caminhos são possíveis de traçar para fora do livro, para fazer por uma mudança mais permanente e definitiva, que sirva para justamente preservar os mais vulneráveis. Ou, ao menos, serve para sensibilizar ainda mais o público para um dos acontecimentos mais importantes de nosso século.
Para se aprofundar sobre o conflito, também vale a recomendação da obra “Palestina”, de Joe Sacco, e “Quero estar acordado quando morrer”, de Atef Abu Saif, ambas também de não ficção. Enquanto o genocídio não acabar, fazer o esforço de entendê-lo é um gesto político não só necessário, mas humano. Não à toa, Thrall, um judeu americano crítico a Israel, que ainda reside em Jerusalém, continua sendo uma voz potente para falar sobre o assunto.