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Mary del Priore lança livro que recupera história da velhice no Brasil

historia da velhice
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‘Uma história da velhice no Brasil’ é trabalho mais recente da escritora de ‘Histórias íntimas’ e ‘Histórias das crianças no Brasil’ (Foto: Divulgação)
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A expectativa de vida no início do século 20 era de 33,7 anos. Em pouco mais de um século, esse número mais que dobrou. De acordo com dados do IBGE, a expectativa de vida em 2023 foi de 76,4 anos. Isso significa, por exemplo, que pessoas nascidas em 1940, quando a expectativa era de se viver cerca de 45 anos, tiveram a chance de viver quase o dobro do que poderiam imaginar que viveriam – muitas dessas pessoas, em 2025 com 85 anos, encontraram um novo mundo pela frente. É justamente para buscar entender a longevidade na sociedade atual que a historiadora e escritora Mary del Priore lança “Uma história da velhice no Brasil”, obra que recupera a representação dos idosos do século 16 ao século 20. A autora usa de documentos históricos, jornais, memórias, correspondências e depoimentos literários para traçar um painel da velhice – e pensar não só o que mudou, desde então, mas também as representações desejadas para essa fase da vida. O lançamento da obra, pela editora Vestígio, vai acontecer durante a Feira Literária Internacional de Tiradentes (Fliti). 

A ideia de escrever sobre a velhice veio da percepção de que esse tema é de interesse público, considerando o aumento geral da população idosa em todo o mundo. “Quis abordar a maneira como os nossos antepassados contavam a sua velhice. Durante muitos anos, a palavra ‘velho’ nem chegava a aparecer nos documentos, era como se não existisse”, diz a autora. Entendendo que era preciso abordar essa história a partir de um olhar pessoal, das vivências coletivas, ela foi usando os mais variados relatos para entender como essas pessoas se mostravam para as outras. E foi fazendo suas descobertas: “Os velhos antigos não tinham tanta preocupação com o rejuvenescimento, como hoje. Havia preocupação em manter-se de pé e trabalhando, tendo uma função dentro do grupo familiar, do vilarejo, na vizinhança. As pessoas queriam estar disponíveis para se ajudarem”. Foi preciso, também, entender a partir de que momento isso muda. E, para ela, foi a partir do século 20, com a chegada do conceito de aposentadoria.

Mary percebe que “ser aposentado” deu ao idoso a possibilidade de estar começando outra fase de sua vida. “Antes, a fase do trabalho, de ser disponível e estar junto, não tinha data para terminar a não ser a morte. Mas com a aposentadoria, isso marcou a interrupção de uma vida. Isso suscitou socialmente muitos suicídios e muito alcoolismo. A pessoa não sabia mais qual era o seu sentido”, explica. E, para ela, também é uma visão que vai se desenhando junto com o envelhecimento da população – que, pela sociedade do consumo, paradoxalmente, não quer se permitir envelhecer. “No século 21, vemos a imagem de um velho em cima da prancha de surf, sempre ativo, poderoso, o que deve provocar muita angústia nos velhos. Isso é exaustivo. E é feito para o velho se tornar um consumidor cada vez mais voraz.” É também nesse momento, e de acordo com essa visão, que o velho parece se tornar um problema social. “Não se pode dizer ‘eu sou velha’. Tem que dizer ‘terceira idade’, ‘melhor idade’. Parece que ‘velho’ é uma palavra até pornográfica. Eu acho que são bobagens pra travestir isso. É o que nós somos e o que vamos nos tornar”, destaca.

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A ideia de fazer esse trabalho, para ela, também partia da percepção de que todas as camadas da população e todas as áreas de conhecimento vão precisar discutir o tema – e não apenas a área da saúde. “Eu sou uma historiadora que me dedico a escrever para o grande público, o que significa que quero que mais e mais brasileiros leiam história. Para isso, ao invés de tratar de temas acadêmicos, prefiro tratar de temas da sociedade brasileira. Foi o caso do sucesso de ‘Histórias íntimas’, meu outro livro que tratava sobre sexualidade. E agora, resolvi abordar esse tema, que acho que interessa muito à sociedade brasileira, que está envelhecendo e precisa lidar com envelhecidos.” Recuperar o passado, então, ajuda a entender quais são as novas perspectivas para a velhice e o que é possível aprender com os mais velhos do passado.

Mary del Priore prioriza ‘fazer população ler história’ (Foto: Pense D/ Divulgação)

Visões diferenciadas sobre a velhice

Para isso, Mary entende que é preciso perceber que as visões sobre a velhice são variadas de acordo com os modelos de sociedade e também com recortes sociais. “A gente se reconhece como velho pelo olhar do outro. Quem determina que estamos velhos são os outros, em particular a juventude. Então, também vou mostrando, ao longo do livro, como as figuras de jovens e velhos vão sendo colocadas como opostas, seja na literatura grega ou nos estilos da semana de 22″, exemplifica. Ela analisou, por exemplo, a visão que várias comunidades indígenas têm sobre a velhice, assim como esse período aparecia retratado entre os povos escravizados. “Os velhos eram reverenciados. Eram considerados fontes de todo o saber. Eram os protegidos dos deuses”, relembra.

E também buscou entender figuras como a dos velhos imigrantes e das mulheres solteironas. Isso tudo levando também em conta essa perspectiva de acordo com gênero e, principalmente, classe. “O velho pobre vira um fardo pra família. Isso precisa ser dito: por isso que o velho trabalha até o final, por isso que ele precisa ter uma função na família. Quando o velho não tem nada, não tem recursos e não consegue nem se levantar, eles também começam a ser abandonados ou explorados”, diz, e destaca a quantidade de denúncias atuais de maus tratos aos velhos inclusive vindo de dentro das próprias famílias.

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Pensar o futuro dos velhos

Olhar para o passado, como Mary não se esquece, é sempre também uma forma de tentar entender o futuro. Apesar do seu livro não trabalhar o século 21, ela entende que a obra pode ajudar a entender o momento de mudança mundial no modo de vida e nos valores das pessoas. “A velhice quer ser representada como forte, enérgica, sexualmente ativa, viajando, mas há limitações que se impõem, a gente vê isso em toda parte. A representação de um velho sempre ideal é irreal.” Para ela, inclusive, uma das lições que esse registro traz e nossos velhos antepassados nos deixaram como legado foi o fato de terem uma dignidade e um pudor. 

Ela entende que a forma como os antepassados lidavam com a morte que é um tema que pode ser recuperado pelas demandas atuais de compreensão do mundo. “Como se preparar para o fim? Acho que isso é uma lição que nós desaprendemos. E, por isso, acredito que o grande tema desse século vai ser a morte assistida. Esse livro mostra como havia serenidade nessa questão do passado, como as pessoas deixavam escolhidas suas roupas, tinha gente que experimentava o caixão. Não havia um afastamento tão forte do fim de vida quanto a medicina contemporânea criou”, reflete.  A pesquisa, para ela, foi uma forma de tentar preencher essas lacunas – por isso, é um trabalho que, como percebe, não se esgota. Mas fica como um convite para as pessoas conversarem e trabalharem com o tema.

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