Projeto da professora Letícia Perani não se resume à teoria: é preciso praticar com games clássicos como ‘River Raid’ (Olavo Prazeres)
Os atuais consoles de videogames são um dos exemplos da convergência de tecnologias previstos há muito tempo. Dependendo do modelo, é possível acessar a internet, conversar com os amigos, assistir a vídeos, séries, esportes e filmes, ouvir música, fazer compras etc. – e até mesmo jogar um dos milhares e milhares de títulos à disposição do gamer: da tradicional porradaria de um “Mortal Kombat” aos duelos do violento esporte bretão das séries “Fifa” e “PES”, é possível encontrar jogos de tiro, estratégia, infantis, simuladores de voo, batalhas espaciais, de dança, fitness e outros em que os movimentos corporais do jogador ditam o ritmo da brincadeira. Tudo baseado em gráficos que, dependendo do jogo, podem ser praticamente tão fiéis quanto a nossa realidade.
Diferente, mas bem diferente mesmo, dos primórdios dos videogames, entre as décadas de 70 e 80, em que era preciso ter muita criatividade para enxergar algum pingo de realidade naqueles bonequinhos formados pelos gráficos dos consoles de 8 bits da Atari e outras marcas famosas na época. Mas é justamente esse tipo de design, praticamente ignorado pelas produtoras atuais, que é objeto de estudos da professora Letícia Perani, do IAD/UFJF, que coordena o projeto “Retrogaming: análise do design de games nas suas décadas formativas”, iniciado em 2015 com a colaboração de alunos da instituição. Letícia, que está ligada ao campo dos Game Studies desde o início dos anos 2000, mantém assim sua proposta de estudar os games como um produto cultural independente, incorporando elementos teóricos das áreas de psicologia, sociologia e história da arte.
“Este é um projeto de iniciação científica que vai ajudar não apenas na pesquisa sobre os videogames, mas também a treinar futuros profissionais para a indústria de games. Inclusive, foi a partir do projeto que os alunos iniciaram um projeto de extensão sobre (o jogo) ‘League of legends’. E também teremos um grupo interdisciplinar para eventos e pesquisas conjuntas, uma ideia do professor Stênio Sã Soares, formado por professores do IAD, do departamento de computação da UFJF e IF/Sudeste-MG”, comemora Letícia. Até o momento, o projeto já publicou um artigo científico e terá outro apresentado no Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital.
Do joystick para a academia
A escolha pelo estudo dos games na vida acadêmica, quem diria, vai de encontro ao lugar-comum que vigorou – e, vá lá, eventualmente ainda dá as caras – até o início do terceiro milênio: de que os videogames eram passatempo que prejudicava a formação dos jovens, incitaria a violência e resultaria numa geração de seres humanos com déficit de atenção. “Jogo games desde que nasci, tive sorte de ter vários consoles desde a infância”, conta Letícia. “Era o meu modo de diversão e de entretenimento favorito. Na faculdade, comecei a estudar sobre os games e vi que poderia falar sobre a importância deles para a cultura.”
No projeto atual, ela escolheu o estudo dos chamados retrogames por considerá-los esquecidos pelos produtores dos jogos atuais, cheios de gráficos elaborados e outras bossas que o desenvolvimento da tecnologia permite. “Hoje eu vejo que a indústria dos games se preocupa basicamente com o estado da arte, nas tecnologias mais recentes, e no desenvolvimento da parte gráfica em particular. Por isso resolvi analisar o desenvolvimento dessa indústria entre os anos 70 e 90 a partir das suas características interativas”, explica. “É engraçado que desde os anos 2000 existe esse movimento retrogamer, de valorizar os jogos antigos, mas as empresas não se preocupam em relançar os clássicos.”
Neste sentido, o projeto se debruça sobre as regras desses jogos a partir das possibilidades de uso do avatar (personagem) e do ambiente em que ele está inserido, sejam cenários ou ambientes fixos e/ou móveis. “Quando analisamos esses jogos, vemos que a parte da mecânica dos games passou por grandes modificações nessas quatro décadas. A interação do jogador com o game evoluiu, como foi o caso do aumento do número de botões. A parte visual é mais visível, enquanto a interatividade é mais sutil.”
Estudando e jogando
O estudo não se resume apenas a analisar as questões acadêmicas. A prática, ali, é essencial – e como o assunto são os games, acaba sendo divertido. Uma das salas do IAD foi reservada para o estudo, com Letícia e seus alunos dividindo o tempo de estudos com joysticks, consoles e games clássicos como “River Raid”, “Super Mario Bros.” e “Pitfall”, entre outros. “Quando coloco esses jogos para os alunos eles se divertem, afinal muitos deles nasceram na década de 1990 e não tiveram contato com os games clássicos.”
Ao mergulhar nessa onda, Letícia pode traçar também uma linha evolutiva na combinação consoles/games. “A partir do momento em que você tem uma evolução na memória, há uma desenvolvimento maior dos computadores. O console, afinal, é uma espécie de computador dedicado apenas à execução dos jogos. No Atari, por exemplo, você tinha uma limitação de avatares, movimentos. Com o aperfeiçoamento dos hardwares, foi possível uma evolução no visual, mas também na interação, a exemplo do ‘Pitfall’, que se aproxima mais da realidade. A evolução tecnológica sempre aumenta as possibilidades criativas.”
Para a professora, muito do encanto pelos games de outrora vem do fato de se tratarem de uma forma de entretenimento intuitiva e fácil de jogar para qualquer pessoa – assim como os games criados para serem utilizados com os sensores de movimento de consoles como o Nintendo Wii e o XBox. “São jogos casuais que resgatam um mecanismo de jogabilidade mais simples e rápido.” Ou seja: quem não consegue passar das fases iniciais de jogos como “GTA (Grand Teft Auto)”, “Gears of war” e afins também pode se divertir – e até mesmo queimar algumas calorias – jogando tênis, fazendo flexões e outras atividades que exigem mais do que apertar botões.
O encanador bigodudo e o alienígena
Veterana que é no mundo dos games, Letícia aponta alguns jogos que foram marcantes na era dos 8 bits. “‘Super Mario Bros.’ inaugurou os jogos em plataforma e também foi o primeiro a ter trilha sonora contínua e era um game de ação rápida e contínua”, opina. Já o pior dos piores foi o game de um certo alienígena que conquistou milhões de corações poucos anos antes na tela de cinema. “Um exemplo clássico de game ruim é o ‘E.T.’. O jogo teve um prazo de produção pequeno, porque queriam lançá-lo antes do Natal, e ficou mal construído graficamente. A interação com o jogador é horrível, os movimentos são péssimos, e você sequer sabe qual é o objetivo do jogo.”
O período que vai até meados dos anos 80, salienta, foi marcado por produtos que hoje são exemplo do que não fazer. “Muitos jogos ruins foram lançados por causa da saturação do mercado, com várias empresas investindo em games de forma errada, com pouco tempo de desenvolvimento dos jogos. A quantidade de games mal feitos levou ao crash de 1983, em que muitas empresas foram exterminadas devido à queda nas vendas. A recuperação teve início apenas com o lançamento justamente do ‘Super Mario Bros.’