A Barca da Cultura foi um sonho que começou em 1947, quando Paschoal Carlos Magno idealizou o “Navio da Cultura”, projeto esse que, no entanto, não foi para frente. Alguns anos depois, ele tentou criar o “Trem da Cultura”, em 1962, e que, assim como o primeiro, não vingou dada a falta de apoio. Mas isso mudou, de certa forma. O ano era 1974 e o país enfrentava uma onda de censura e repressão nos chamados “anos de chumbo”. Apesar de ser um momento de repressão, ela não foi suficiente para impedir com que uma barca, povoada por cerca de 120 artistas de diversas regiões do Brasil, cortasse as águas do Rio São Francisco, o Velho Chico, levando cultura para as mais distantes cidades do país. O sonho, naquele momento, era democratizar a arte e a cultura.
O que foi a Barca da Cultura?
Concebida por Paschoal, dado ao seu apetite insaciável por divulgar a cultura nacional, a Barca da Cultura foi um projeto que se destacou com o objetivo de levar arte e cultura para regiões remotas do Brasil, ideia que ainda hoje é pouco divulgada. A nau itinerante percorreu em torno de 56 cidades do interior do país, realizando apresentações de dança, música clássica e popular, teatro de fantoches, teatro infantil e adulto, folclore, poesia, canto, cinema e oficinas. Tudo isso em cima de um palco improvisado na própria barca ou, por vezes, montado em cima do ônibus nos trajetos terrestres.
Mesmo em meio a ditadura militar (1964-1984), o embaixador, diplomata afastado da carreira após o golpe militar, e teatrólogo Paschoal Carlos Magno conseguiu verba a partir do Programa de Ação Cultural do MEC em 1973. A princípio, o projeto receberia o montante de Cr$ um milhão – cerca de R$ três milhões corrigidos pela inflação -, mas após a aprovação do projeto o montante foi reduzido para Cr$700 mil, o que desagradou seu idealizador, mas não o impediu de realizá-lo. Luciana Frazão, historiadora da arte e mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), explica que “a barca foi uma resistência cultural sutil, valendo-se do próprio aparato estatal para driblar a censura do regime militar”.
O projeto, porém, terminou muito diferente de quando começou. Paschoal instruía os artistas da Barca da Cultura a não beberem e não fazerem nada que pudesse chamar a atenção dos militares. Foi assim que o diplomata conseguiu fugir da censura e, aos poucos, incluir novos números e espetáculos nas apresentações do projeto.
José Luiz Ribeiro, diretor do Grupo Divulgação e imortal da Academia Brasileira de Cultura, relembra, com carinho, o chamado feito por Paschoal Carlos Magno, que se tornou um grande amigo. “Era um convite que não podia recusar, imagino. Foi uma coisa muito rica, tomamos um banho de cultura com o povo e com outros grupos artísticos.”
Paschoal Carlos Magno: O Sonhador
Paschoal foi ator, poeta, teatrólogo, diplomata, produtor e embaixador. Personalidade fundamental para a cultura nacional, ele criou o Teatro de Estudante do Brasil (TEB). Inspirado nos teatros universitários europeus, ensinava e formava novos profissionais para o teatro. Paschoal também construiu o Teatro Duse – feito em sua própria casa em Santa Tereza – e criou a Aldeia de Arcozelo, um espaço pensado para se tornar local de repouso para artistas e intelectuais e um centro de treinamento para as diferentes áreas das artes, inaugurada em 1965, em Paty dos Alferes (RJ).
Mas Luciana Frazão relembra que, além de tudo isso, Paschoal também era engenhoso. “Ele era um estrategista […] Como ele conseguiu a aprovação do Estado para patrocinar o projeto? Ele tinha muitos contatos e usava muito a imprensa.” Declaradamente homossexual, Luciana lembra também que Paschoal foi perseguido mesmo antes do golpe militar pela sua sexualidade. “Ele foi perseguido no Itamaraty por não esconder sua homossexualidade.”
Amigos de muitos anos, José Luiz Ribeiro relembra o início da amizade com o diplomata. Ele foi procurado por Paschoal, após uma matéria de um jornal estudantil que falou sobre sua experiência de quase morte. “O Jornal do Estudo publicou uma matéria porque eu tive um sangramento de úlcera, que deu uma parada cardíaca e esse jornal publicou uma reportagem: ‘Ele tem um amor pelo teatro’.” O jornal, de algum modo, caiu nas mãos de Paschoal que ficou admirado. “Paschoal ficou encantado comigo, com a minha história, e mandou uma carta. A partir daí, ficamos muito amigos, e essa relação foi forte até a morte dele”, afirma.
Um homem a frente do seu tempo
Além de projetar e executar o projeto da Barca da Cultura, uma ideia que ainda nos dias de hoje seria tida como inovadora, Paschoal levou para o interior não apenas apresentações de uma qualificada trupe itinerante, como quebrou padrões. “A prima dona (cantora que interpreta o papel principal de uma ópera) da Barca era uma cantora lírica negra, algo inimaginável na época. Isso por si só já era revolucionário”, conta Luciana Frazão, que também ressalta a importância da encenação de “O navio negreiro”, poema de Castro Alves, cuja a montagem e apresentação foi incluída após o início da Barca, com o intuito de fugir da censura dos militares. “No final do espetáculo, as pessoas vieram perguntar se aquilo tinha acontecido mesmo. Se tinha acontecido o navio, os horrores dos porões do Navio Negreiro.” Ela segue sobre a importância de Paschoal: “Isso é incrível, porque é muito atual. Porque ela trouxe à tona questões relacionadas à representatividade e ao racismo estrutural. Coisas que a gente só viu acontecer muito recentemente”.
Uma vivência de várias artes
Além das apresentações oferecidas à população, a barca também representou um local de trocas e vivências artísticas entre os artistas embarcados. Enquanto a orquestra ensaiava no primeiro andar da Barca, o balé se revezava com os grupos de teatro nos espaços possíveis para ensaios; poesias eram declamadas; monólogos ensaiados – e tudo isso sob o barulho do motor que cortava as águas do Velho Chico. A troca, porém, não se limitava apenas aos ocupantes da barca, uma vez que após as apresentações os artistas viajantes eram transmutados em público e assistiam as apresentações artísticas dos locais. Muitas vezes, quando a estadia se estendia por mais de um dia, era possível a realização de oficinas e de trocas entre os locais e os viajantes. “A Barca ofereceu uma vivência multiartística, interdisciplinar, em que artistas ensaiavam ao lado de manifestações locais. Foi um campo que valorizava os artistas das comunidades visitadas”, disse Luciana.
Para José Luiz Ribeiro, o projeto teve grande impacto não apenas naqueles que embarcaram na viagem de Paschoal, mas também para o trabalho do grupo a partir dali. “Essa experiência foi muito rica. A cabeça da gente mudou, todas as pessoas que foram voltaram mudadas. Encontramos a história do Brasil e da cultura. Quando voltamos, continuamos a apresentar o cancioneiro em muitos bairros, levando a arte para o povo”, disse.
Para além do Rio
As trocas dentro da barca resultaram em encontros para pensar arte, esses encontros viraram seminários, e dos seminários nasceu um documento-relatórimo, de autoria do próprio Paschoal, que dizia: “A Barca da Cultura merece ser continuada, não só pelo São Francisco como por outras vias fluviais e terrestres do país. Outras barcas devem viajar com frequência e atingir áreas como esta, nunca lembradas pelas autoridades, encarregadas de semear a cultura. E cultura deve ser tomada não só no sentido de apresentar espetáculos e artistas, mas espetáculos apresentados do ponto de vista pedagógico: a cultura como forma mais importante de educação”. A Barca da Cultura é uma lembrança que flutua, mas nunca naufraga, na história da cultura brasileira.