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Hilda Hilst viveu à margem dos rótulos, afirma poeta e editora Alice Sant’Anna

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Os leitores não lhe interessavam. Pouco lhe interessava. Nos instantes derradeiros, reinava o silêncio. “Se me leem ou não, eu não tenho mais interesse em saber. Pode ser chato para os outros, mas eu não tenho mais motivação. Eu só quero, até morrer, morar na minha casa e receber os amigos. Eu não tenho nenhuma expectativa de nada”, disse Hilda Hilst em 1999, em entrevista para a coleção “Cadernos de Literatura Brasileira” do Instituto Moreira Salles. Reivindicando sue espaço na literatura, a autora de “Fluxo-floema” despediu-se sem assistir o reconhecimento que se ampliou na medida em que os anos de sua morte iam se somando. Dispersos em diferentes editoras, seus livros chegaram a ser reeditados pelo crítico e pesquisador Alcir Pécora num grande selo, mas são as volumosas antologias “Da poesia” e “Da prosa” que confirmam a tardia glória da qual Hilda acreditava ser merecedora.

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Na esteira das agigantadas reedições que ajudam a resgatar autores da segunda metade do século XX no Brasil – como foi o caso das antologias de Paulo Leminski, Ana Cristina César e Wally Salomão – os dois títulos de Hilda publicados pela Companhia das Letras ganham, ainda, o reforço dos avulsos “De amor tenho vivido”, com ilustrações da artista Ana Prata, e “Júbilo, memória, noviciado da paixão”, em formato pocket. Para a editora Alice Sant’Anna, responsável pela empreitada, trata-se de um gesto de justiça histórico. E de uma resposta à crescente demanda, exaltada pela homenagem na Flip. Procura que também se volta para Caio Fernando Abreu, amigo de Hilda, e cujos contos ganham, neste mês, antologia semelhante. “São dois autores que têm muito apelo, principalmente para os leitores que estão começando a se interessar por prosa e poesia”, ressalta Alice, em entrevista à Tribuna, por telefone, na qual destaca a potência e a força da escritora que, sem pensar nos leitores, calava-os fundo.

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Para Alice Sant’Anna, responsável pela edição dos três recentes títulos de Hilda Hilst, o trabalho da escritora “é um difícil atraente” (Foto: Divulgação)

Tribuna – Quando observa o todo da produção da Hilda Hilst, o que lhe vem à cabeça?
Alice Sant’Anna – O interessante da obra dela é que é muito complexa. Se, por um lado, na poesia ela é muito tradicional, com referências às odes e trovas portuguesas, por outro lado, na prosa, ela é muito experimental, explorando não só o conteúdo, mas também a maneira de escrever. Ela mistura poesia, prosa, às vezes aparece o teatro. Experimentalismo é uma palavra que define a prosa da Hilda. E é interessante pensar que a obra dela é aberta para a erudição que aparece nos poemas. Ela consegue ser, ao mesmo, tempo, formal e experimental. E ela é muito independente, não se filiou a nenhuma escola, não fez parte de nenhum grupo. Realmente, viveu à margem dos rótulos.

Qual o lugar da literatura erótica na produção dela?
A Hilda no final da vida, na década de 1990, disse que deu adeus à literatura séria, que estava tão cansada de não ter o reconhecimento que merecia tanto dos leitores, quanto dos críticos, que resolveu escrever a tetralogia obscena. São três livros de prosa, incluindo “O caderno rosa de Lori Lamby”, e o “Bufólicas”, de poesia. Essa fase é muito falada, esse momento em que ela fez livros para vender, circular com distribuição mais ampla. Ela foi muito criticada, fez muita polêmica em torno disso, mas faz parte dessa persona rebelde e combativa dela, de não se importar com o que os outros iriam dizer. Ela continua muito atual, até por se sentir livre para escrever o que bem entendesse. Ela escreveu poemas com referência a Camões e também escreveu pornografia. Não precisava se prender a nenhum rótulo. Ela era cem por cento independente.

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A prosa funciona como entrada para a leitura de toda a sua obra?
Acho que a prosa dela não é exatamente fácil, porque esse gênero experimental exige certa vontade do leitor de desbravar uma obra que não é acessível a qualquer um. Não sei porque ela não teve sucesso em vida. É um mistério, realmente. E é importante que a gente consiga, hoje, rever na história esse erro que aconteceu, que a gente possa renovar uma leitura da Hilda. No fim da vida, no começo dos anos 2000 ela passou a ser publicada pela Editora Globo. Foi aí que a obra dela ganhou mais alcance. Até então ela era publicada por editoras independentes, muito pequenas, que faziam ela chegar a poucas casas, num circuito muito restrito. Na Globo os livros dela começaram a ser lidos por estudantes, jovens, pesquisadores, críticos, e o tamanho dela ficou enorme. A Hilda é muito pesquisada hoje. E ela viu esse reconhecimento no finalzinho da vida, ela teve essa amostra do que aconteceu depois, que agora a gente tem a proporção.

A Flip é o ápice desse reconhecimento?
A Flip dá uma proporção ainda maior. Tem uma programação focada nela, e, além da festa, tem um circuito no Sesc. Ela está na ponta da língua. As pessoas estão falando dela de uma maneira como ela nunca foi falada. Tanto na poesia, quanto na prosa, no teatro, nas crônicas.

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É possível ler Hilda Hilst sob diferentes óticas para além da literária?
Filosofia e psicologia são temas que aparecem de muitas maneiras na obra dela. Ela tinha temas que se repetem muito: a passagem do tempo, o medo da morte e da solidão. Em “A obscena senhora D”, a protagonista Hillé é uma espécie de alter ego dela e fala o tempo todo sobre envelhecer, do medo de ficar sozinha e de saber que a morte se aproxima. A filosofia aparece na obra dela com força total. Ela lia muita filosofia. Era muito erudita nas leituras. Acho que a obra dela tem um pouco de tudo. Talvez os leitores não peguem todas as camadas de uma só vez, mas leem uma ou outra coisa. Esperam alguns anos para retomar. É um difícil atraente.

Quais são os ecos de Hilda Hilst na literatura contemporânea brasileira?
Não conseguiria apontar para alguém que tenha reativado a Hilda em sua escrita, mas ela é uma referência para muita gente da nova geração. O Daniel Galera, por exemplo, escreveu um dos textos do posfácio do “Da prosa”, e, fala que a ficção da Hilda mudou radicalmente a escrita dele. A Carola Saavedra diz a mesma coisa. O Victor Heringer, que escreveu o posfácio do “Da poesia”, falou que ler a Hilda é um momento crucial para os escritores contemporâneos, tanto pelo humor ácido quanto pela filosofia nessa prosa experimental. Nossa geração deve muito a ela, que tem um papel muito importante, também, na formação de novos leitores, assim como o Caio Fernando Abreu.

Há um enfoque muito grande na biografia dela. O que, de fato, merece destaque?
Acho que existe a Hilda antes da Casa do Sol, de São Paulo, boêmia, com muitos amigos, festas e uma programação agitada. Depois tem a Hilda da Casa do Sol, para onde ela se mudou na década de 1960 e viveu até o fim da vida. Foi lá que ela escreveu quase toda a produção dela. A prosa começou e acabou lá. A poesia começou antes, ainda em São Paulo, mas se transformou muito na chácara que ela construiu num pedaço do terreno da mãe. Foi lá que ela passou a escrever teatro e, em três anos faz oito peças. Depois lança dois livros de ficção. Ficou um bom tempo sem escrever poesia, até “Júbilo, memória, noviciado da paixão”.

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