Zumbi, a criatura que volta dos mortos e se arrasta por aí em busca de vingança ou sob o controle de um feiticeiro, existe há muito tempo e tem sua origem nos rituais do vodu haitiano. Com o tempo, ele se tornou um dos ícones da cultura pop do século XX, sendo o elemento primordial de filmes (“A noite dos mortos-vivos”, “Todo mundo quase morto”, “Guerra Mundial Z”, “Extermínio”, “Meu namorado é um zumbi”, “Madrugada dos mortos”, “Invasão zumbi”, “Planeta Terror”, “Fome animal”, “Zumbilândia”), séries (“The walking dead”), quadrinhos (“Zumbis Marvel”, “iZombie”, que foi adaptada para a TV), jogos eletrônicos (“Resident Evil”, “Left 4 Dead”), livros (“Eu sou a lenda” e “Orgulho e preconceito e zumbis”, que ganharam versões para o cinema) e outros tantos suportes midiáticos.
Ainda que algumas dessas histórias descambem para a paródia, comédia, até mesmo romance, parte considerável delas tem algo em comum – e que chega a ser o sonho de pessoas que devem ser olhadas meio que atravessado por seus pares: o chamado apocalipse zumbi, situação hipotética em que um vírus, experiência, maldição, praga de mãe provoca uma infestação de zumbis pelo mundo, que aumentam à medida que infectam outros seres humanos até que o risco de extinção de nossa espécie se torne real e provável. É um crescimento em proporção geométrica que nem mesmo exércitos podem evitar. E aí não importa se os zumbis são aqueles lerdões que se arrastam pelas ruas (“A noite dos mortos-vivos”), pilhados no energético com vodka (“Extermínio”) ou capazes de elaborar estratégias (“Eu sou a lenda”), vai ser mais fácil lamber o próprio cotovelo que evitar a carnificina.
Até hoje (pelo menos até o fechamento desta edição), a ideia de mortos-vivos invadindo as ruas está no plano da fantasia e ficção (científica, em muitos casos), mas vai que… Por isso, não falta gente ao redor do mundo que, a sério ou por diversão, cria modelos teóricos, estatísticos, matemáticos tendo como ponto de partida a possibilidade de um apocalipse zumbi. E vale de tudo: chances de sobrevivência, melhor forma de matar os comedores de gente, como reagir etc. Pois foi unindo a seriedade dos modelos matemáticos com a diversão de quem é ligado na cultura pop que um grupo de acadêmico da UFJF, dos departamentos de física e ciências da computação, elaboraram o artigo “Modeling our survival in a zombie apocalypse” (“Modelando nossa sobrevivência em um apocalipse zumbi”, em português).
Trabalho a oito mãos
O artigo, publicado em fevereiro no depositário virtual arXiv, da americana Cornell University, foi desenvolvido durante cerca de seis meses e envolveu o doutorando em Física João Paulo Almeida de Mendonça; o mestrando em Física Leonardo da Motta de Vasconcellos Teixeira; o orientador da dupla, professor Fernando Sato; e o graduando em Ciência da Computação Lohan Rodrigues Narcizo Ferreira. A ideia surgiu, segundo João Paulo, durante as férias, enquanto ele e Lohan jogavam videogame.
“Foi quando me bateu essa questão: será que dá para sobreviver a uma situação dessas (o apocalipse zumbi)? Afinal, eles são muito brutos”, lembra o acadêmico e fã do gênero. “Vimos muitos estudos que diziam que era morte certa. Os sistemas dinâmicos que existiam eram muito pessimistas, então resolvemos pensar em como a humanidade poderia sobreviver.”
Com essa ideia na cabeça, o grupo desenvolveu e aplicou os conceitos de modelos de sistemas complexos para tentar encontrar um modelo em que a humanidade pudesse sobreviver ao hipotético apocalipse zumbi. Foram elaborados, então, quatro modelos apocalípticos, em que a atuação dos integrantes das forças armadas seria o fiel da balança, não só pelo fato de os militares serem treinados para combate, mas também porque poderiam – se tivessem tempo para isso – treinar os civis para enfrentar as hordas de mortos-vivos.
Quer sobreviver? Vá para a Coreia do Norte
Os parâmetros dos zumbis foram tirados de filmes e jogos, e o que vale é o clássico cenário em que o morto-vivo crava os dentes na vítima e ela também passa a procurar carne fresca. Três deles têm como base os mortos-vivos clássicos, aqueles lentos que se arrastam por aí. Em um dos modelos, em que a população é que tempos por aqui, geralmente sedentária, seria preciso 47 soldados experientes para cada mil habitantes; se esta fosse a média mundial, precisaríamos de cerca de 230 milhões de militares para protegerem os sete bilhões de habitantes de nosso mundo, e apesar de tudo apenas cerca de 12% da raça humana seria salva.
Como nem todo país tem essa proporção, apenas uma nação conseguiria, na teoria, salvar-se da hecatombe: segundo os pesquisadores, apenas a Coreia do Norte, com seus pouco mais de 25 milhões de habitantes, possui a proporção necessária: exatos 47,7 militares para cada mil norte-coreanos. Mesmo assim, menos de três milhões sobreviveriam, e seria preciso ignorar que o país poderia ser “invadido” por zumbis de países vizinhos.
Brasil, uma (futura) nação zumbi
Mesmo nações com extenso poderio militar, como os Estados Unidos, sucumbiriam aos “inimigos”, com sua proporção de 4,2 soldados por mil habitantes. O Brasil, coitado, nem daria para o início da conversa. Com 1,6 militares por mil cidadão, o país tropical seria varrido do mapa em três dos quatro cenários imaginados. “Mesmo com treinamento não haveria tempo para treinar os civis, pois são poucos os militares. Em algum momento o número de zumbis iria superar o da população, e os militares seriam os últimos a morrer”, aponta João Paulo.
O único cenário em que teríamos alguma chance é o modelo em que toda a população seria composta por pessoas fortes, em boas condições físicas e aptas para o combate, em que seriam necessários apenas um soldado por mil habitantes. Este modelo, aliás, é o mais “otimista”, com uma taxa de salvação de 21%. No terceiro modelo com zumbis lerdos, foi imaginado um exército em que seus integrantes fossem marombados e bons de porrada feito o Rambo, em que seriam necessários cinco militares para cada milhar de pessoas.
O quarto modelo é aquele em que os zumbis seriam alucinados feito os mortos-vivos de “Extermínio” e “Guerra Mundial Z”, e nele seriam precisos 20 militares a cada mil civis. O que garantiria alguma chance às pessoas não infectadas é que este tipo de zumbi costuma destroçar os corpos de suas vítimas, sobrando muito pouco para sair por aí, então a população desmorta não chegaria a crescer. “Em todas as situações, seria mais saudável incentivar desde já as pessoas a praticarem atividades físicas para termos pessoas mais fortes”, indica.
Dentre todas as conclusões que podem ser obtidas com o artigo, duas se destacam: zumbis lerdos são mais perigosos, porque deixam mais corpos inteiros; e quanto mais militares, maior a chance de treinar parte da população e, assim, aumentar a porcentagem de sobreviventes.
“Isolamento territorial não resolve. Em Juiz de Fora, por exemplo, ainda que houvesse um muro cercando a cidade, seria preciso a proporção de 47 militares para cada mil civis se quiséssemos ter alguma chance”
João Paulo Almeida de Mendonça, doutorando em Física
Dos zumbis à segurança pública
Tanto os estudantes quanto o professor Fernando Sato ressaltam que, apesar de parecer apenas um exercício matemático para jogar tempo fora, todo o trabalho realizado pelo quarteto pode ser utilizado para outros fins. “Este modelo serve não apenas para o apocalipse zumbi. Ele pode ser aproveitado, por exemplo, na segurança pública, para probabilidades de propagação de epidemias, os zumbis servem como um approach mais pedagógico e que possa despertar o interesse das pessoas”, explica João Paulo. “No artigo cito outros trabalhos que utilizam os sistemas dinâmicos para relacionamentos amorosos, futebol etc. A aplicabilidade é muito grande.
Por conta disso, o artigo compartilha o código utilizado pelos quatro para o projeto, que pode ser adaptado e modificado para que outros criem seus próprios modelos e ampliem as situações a serem analisadas. “O zumbi é o marketing da coisa, tanto que uma pessoa da ‘Revista Pesquisa Fapesp’ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) procurou o João Paulo e fez uma entrevista com ele”, destaca o professor Fernando Sato. “Fazer ciência, criar um sistema dinâmico ligado a Hollywood é muito interessante. É muito melhor incentivá-los a utilizar um tema diferente do que dizer ‘não’, acabou por ser um trabalho muito divertido com alunos que trilharam todo um caminho para chegar até aqui.”
“Este modelo serve não apenas para o apocalipse zumbi. Ele pode ser aproveitado, por exemplo, na segurança pública, para probabilidades de propagação de epidemias, os zumbis servem como um approach mais pedagógico e que possa despertar o interesse das pessoas”
João Paulo Almeida de Mendonça, doutorando em Física
Tem preconceito, mas também tem apoio
O “marketing zumbi”, todavia, tem seus percalços. De acordo com João Paulo, algumas revistas acadêmicas foram taxativas em afirmar que “jamais publicariam algo com a palavra ‘zumbi’ no título”. Por outro lado, além da “Revista Pesquisa Fapesp”, outras reações positivas já foram notadas. Uma delas veio do próprio pessoal do arXive, que trocou o arquivo da seção “sistemas dinâmicos” para “física popular”. “A partir disso, podemos submeter o trabalho a uma revista específica, sermos procurados por outras, sermos usados como referência, sermos convidados para palestras”, comemora João Paulo.
O doutorando de física já pôde, inclusive, apresentar o artigo em um seminário no programa de pós-graduação de materiais da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Já Leonardo da Motta vai apresentar o artigo no dia 10 de abril no 1º Simpósio Brasileiro de Materiais e Pesquisas Correlatas, que será realizado no Centro de Ciências da UFJF. “Pretendo mostrar a diferença que faz utilizar um tema popular, que é o caso dos zumbis, para mostrar ao público em geral a aplicabilidade dos sistemas dinâmicos”, adianta.
Ao mesmo tempo, Leonardo lembra que é possível, por conta disso, analisar o seu filme, série ou jogo favorito a partir da ciência. “Nos dois primeiros filmes da franquia ‘Resident Evil’, havia muito mais zumbi que militar, era para ter morrido todo mundo; já os dois primeiros volumes do jogo eram até razoáveis dentro do nosso modelo padrão”, analisa. João Paulo, por sua vez, pontua que o isolamento no estilo “The walking dead” dificilmente será a solução. “Isolamento territorial não resolve. Em Juiz de Fora, por exemplo, ainda que houvesse um muro cercando a cidade, seria preciso a proporção de 47 militares para cada mil civis se quiséssemos ter alguma chance.”
Pelo sim, pelo não, custa nada o Exército estacionar pelo menos 26 mil soldados na cidade.