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Adoráveis Mulheres do século XXI: uma família formada por três gerações

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Terminam juntos. Sem casamento, sem noivado, sem rótulos. A protagonista de “Adoráveis mulheres”, interpretada pela atriz Saoirse Ronan, termina o filme com o professor vivido por Louis Garrel, mas não há um matrimônio como no livro no qual se baseou o longa-metragem que recebeu seis indicações ao Oscar deste ano e faturou o prêmio de melhor figurino. No livro “Mulherzinhas”, de Louisa May Alcott, publicado pela primeira vez em 1868, a aliança no dedo ao final era uma exigência editorial. O filme conta isso. “Eu quis dar um final que Louisa teria gostado. No fundo, contei uma história de amor entre uma garota e seu livro”, comentou a diretora do longa, Greta Gerwig, responsável por renovar o interesse pela obra do século XIX. Mais de um século depois de seu lançamento, o título retorna às prateleiras em diferentes edições de distintos selos. Na trama, que se passa na Nova Inglaterra, as irmãs Meg, Jo, Beth e Amy enfrentam, ao lado da mãe Marmee March, os desafios de uma vida, pouco confortável e cheia de caminhos traçados que elas precisam subverter.

As quatro irmãs no filme “Adoráveis mulheres”, Oscar de melhor figurino. (Foto: Divulgação)

O interesse que a obra ainda desperta se deve, segundo a poetisa e roqueira Patti Smith, em prefácio da edição da Companhia das Letras, ao fato de o livro ser um “guia fundamental para a evolução da consciência e o valor da conscientização. Uma crônica sobre quatro meninas inesquecíveis, cada uma oferecendo algo próprio. E Jo March, assim como sua criadora, engloba o sacrifício, bem como a responsabilidade que temos com nós mesmos, com nossa arte. Louisa May Alcott conferiu às irmãs March vida, graça e uma esperança e uma determinação contumazes, dando, assim, o mesmo às mulherzinhas de sua época e das épocas por vir.” E quem são as adoráveis mulheres de nossos dias? Como nas narrativas de Gerwig e Alcott, são muitas e estão por todos os cantos, neste Dia Internacional da Mulher e em todos os outros. São Elenas, são Monicas, são Marinas e são Camillas.

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Tantas travessias

O bisavô foi o primeiro da família a conhecer o Brasil. Era comerciante e fundou a popular Casa Montesano, em Muriaé, onde chegaram seus descendentes. Silvia “Elena” Montesano Schettino – seu segundo e mais conhecido nome, que não foi registrado em território brasileiro – desembarcou no Brasil aos 15 anos. Era 1950, cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, conflito que a menina assistiu da janela de casa, vendo aviões cruzarem o céu e ouvindo as bombas que, milagrosamente, estouravam no mar. Morava no pequeno lugarejo de Brefaro, na província de Potenza, ao Sul da Itália. A apenas 3km dali, em Massa, na mesma província, vivia Emílio, que só veio a conhecer no Brasil. Sua irmã casou-se com o irmão dele. Elena, com ele. Viveram em Leopoldina, onde o marido mantinha uma mercearia. “Eu o ajudava”, conta ela, ainda mantendo um forte sotaque aos 84 anos. A educação na Itália era mais livre, recorda-se, assim como a vida no Brasil. Já mãe de três filhos, Elena não se restringia às tarefas do lar e também ajudava o marido na mercearia da família.

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Elena com a filha Mônica, mãe de Camilla e Marina: mulheres se fortalecem no apoio de uma a outra. (Foto: Fernando Priamo)

Monica Montesano Schettino Oliveira, filha de Elena, também se dividia entre a casa e o trabalho com o marido, uma loja de plantas e paisagismo em Leopoldina. Economista por formação, ela cuidava da administração do negócio. Em maio passado, Paulo faleceu e consigo levou a visão artística do empreendimento. Em meio ao luto e à insegurança em como dar continuidade à loja, a mulher recebeu um telefonema da Câmara Municipal de Juiz de Fora informando que sua nomeação no concurso que havia prestado para o cargo de assistente legislativo já estava marcada. Viúva há apenas cinco dias, Monica enfrentou mais uma mudança e partiu para a cidade onde já moravam suas filhas, Marina e Camilla. Deixou para trás o apartamento no sétimo andar do prédio onde também morava a mãe, Elena, no sexto andar. Meses depois, a senhora mudou-se para acompanhar a filha e as netas. São delas os móveis da sala de jantar, a mesa e o buffet de madeira maciça que herdou de seus antepassados.

“Foi uma loucura, mas, ao mesmo tempo, foi válido, porque precisei fazer tudo muito rápido. Acabei com a empresa lá muito rápido, assumi aqui, fiquei na casa dos meus irmãos, que já moravam em Juiz de Fora, e logo na primeira semana achei bom. Trabalhar é bom e ocupa minha cabeça”, conta Monica, que há 35 anos convivia com Paulo, com quem foi casada por 25 anos. “Não o esqueci, mas tive um norte para a vida”, diz, à frente do piano que trouxe na bagagem. “Quando vim fazer faculdade de economia aqui em Juiz de Fora, mais nova, conheci o André Pires (maestro), assisti algumas aulas dele, fiz musicalização e fiquei encantada. Comecei a estudar piano, procurei uma tia dele, que me deu aulas e me passou para ser aluna dele. Participei de concurso e foi fantástico”, narra ela, que chegou a lecionar no Conservatório Estadual de Música Lia Salgado, em Leopoldina. O talento acredita ser legado da família italiana paterna, largamente musical e festiva.

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Tantas lutas

Desde muito pequena, Monica aprendeu a se levantar após uma queda. Aos 2 anos, foi diagnosticada com atrofia no nervo óptico. Os desafios, a partir dali, seriam rotina. “A única coisa que não consigo fazer é dirigir. O resto, faço tudo”, diz a mulher de 53 anos, que por isso optou morar perto do novo trabalho. Viver no Centro, inclusive, é o que permite toda a autonomia de dona Elena, que vai e volta sozinha do pilates e da fisioterapia. “Admiro demais a minha mãe como mulher. Com todo o problema que tem na vista, ela conquistou muita coisa. Sou muito orgulhosa de tudo o que ela é e se tornou. Depois do falecimento do meu pai, ela foi o braço direito de todas nós e aguentou a barra. Todas nós nos apoiamos”, afirma a filha mais velha de Monica, Marina, estudante de direito de 23 anos, como a definir o termo sororidade.

Segundo Monica, a educação que recebeu foi a métrica que utilizou para a educação das filhas. “Minha mãe e meu pai sempre conversaram muito comigo. Saí de casa para estudar em outra cidade na juventude. Não precisei bater o pé. Meu pai e minha mãe tinham a cabeça aberta. E cada vez mais a gente tenta ficar mais aberto. Tento passar para elas a importância de termos uma relação aberta, para que possamos ser amigas. Sempre tento transmitir para elas o quanto é bom correr atrás dos sonhos, lutar pelo que queremos e se instruir, porque o conhecimento é o mais importante na vida. Meu pai me falava que o estudo ninguém me tiraria. Ensino isso para elas”, comenta Monica. Em 2016, ela ajudou a filha mais nova, Camilla, a arrumar a mala para viver em Juiz de Fora, onde cursaria o Ensino Médio. “Vim sozinha, e em 2017 minha irmã se mudou para cá”, diz a jovem, na época com apenas 16 anos. “Meus pais sempre conversaram muito comigo, diziam que eu deveria estudar muito. Eles nunca nos privaram de fazer alguma coisa, e sempre fomos sinceras com eles”, ressalta ela, hoje com 20 anos. A liberdade para sair, no entanto, foi crescendo de geração em geração. Monica percebe ser maior para as filhas do que foi para ela na adolescência.

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Capas de algumas das edições brasileiras da obra “Mulherzinhas”

Tanta força

O mundo evoluiu em favor das mulheres, reconhecem as Montesano Schettino. Porém, ainda está longe do ideal. “Ainda vejo muito preconceito hoje. Na minha área, o direito, para uma mulher crescer e se desenvolver é mais difícil. Aos poucos desconstruímos mais o machismo. Como a nossa geração cresceu ouvindo a voz do feminismo e outras pautas da nossa sociedade, tem a mente mais aberta. E isso nos permite ensinar aos nossos pais. Eu e minha irmã, às vezes, explicamos para a minha mãe o que não se deve mais falar. Na época dela, muito coisa era normal e hoje não é mais”, observa Marina. Estudante de engenharia elétrica na UFJF, Camilla vive em um ambiente ainda predominantemente masculino. “É uma luta diária para provarmos que a mulher é a mesma coisa que o homem. Tive professores extremamente machistas na faculdade, mas temos professoras que lutam muito contra isso, como a Zélia (Ludwig), do Departamento de Física, que admiro muito. Ela luta pelos direitos das mulheres e das mulheres negras. Temos esse apoio nesse ambiente. Com os meninos que convivo, não sinto diferença”, destaca a jovem. “A geração dos seus amigos é outra, está mais aberta”, acrescenta Monica.

Como na casa das March, do livro “Mulherzinhas” e do filme “Adoráveis mulheres”, para Elena, Monica, Marina e Camilla, a união em casa é o prenúncio da união nas ruas. É a força motriz para as conquistas ainda não alcançadas. Ao longo da semana, as quatro se reúnem durante as noites. Aos fins de semana, assistem a filmes ou saem. Sempre juntas. Aos domingos, as quatro comem massas. É sagrado. E é o momento de uma partilha que ultrapassa a mesa, o pão, a conversa. “Tenho essa força, porque minha mãe também é forte. E a gente aprende isso para a luta. A vida é um grande aprendizado, e pegamos força de todos os lados. A gente ensina e também aprende”, aponta Monica, referindo-se à inspiração na matriarca. Passadas cinco décadas de um casamento que a permitiu diferentes viagens pelo mundo, o que o marido adorava fazer, Elena se tornou viúva em 2011. Quatro anos depois, foi diagnosticada com um agressivo câncer de mama. Precisou fazer quimioterapia e radioterapia, perdendo todo o cabelo. Muito religiosa, se reergueu. E ao ver os fios crescendo, decidiu não mais pintar os cabelos. Nos fios acinzentados, estão o orgulho de uma adorável mulher.

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