Nasce uma mulher. Nasce uma fotógrafa. Renasce uma mulher fotógrafa feminista. Seu convívio direto no backstage das produções de moda, registrando corpos de modelos como rotina, pouco a pouco, foi tornando aquela experiência incômoda. Principalmente pela incoerência entre os corpos registrados, com suas curvas e marcas, diante do que estava estampado nos outdoors, revistas e até plotagens de porta de elevador de shopping. Seu habitual era registrar corpos que tinham profunda relação com a câmera e com a exposição. Questionamentos ocupavam seus pensamentos. Começou reparando em si mesma, reconectando-se com seu corpo e se perguntando para quê e quem, de fato, ela estava produzindo aqueles conteúdos de imagem.
Seu primeiro projeto fotográfico, após essa catarse, foi uma ideia política que se valia de um contrassenso estético: fotografar mulheres com uma palavra que represente a luta feminista rabiscada em seus próprios corpos sem que houvesse manipulação alguma de suas peles e formas na edição. As fotos, todas em P&B, foram alcançando os maiores portais e revistas, sem que Maria tivesse controle da dimensão do que o tumblr Nós Madalenas se tornava. Uma fila de 500 meninas já demonstravam vontade em participar. Saiu de Belo Horizonte e foi a São Paulo, onde foi acolhida por um coletivo, e permaneceu um ano conhecendo as histórias de mulheres comuns, muitas nunca haviam sido fotografadas por uma profissional. “Desenvolvi um método próprio de fotografar mulheres, usando técnicas de respiração, meditação, movimento e de história oral, como um ritual fotográfico. A intenção foi criar a oportunidade de a mulher se reconectar com ela mesma e eu conseguir traduzir isso em imagens.”
Ao todo, cem depoimentos em primeira pessoa com fotos. Muitas daquelas se viram e se reconheceram pela primeira vez nelas mesmas. “Essa foi a coisa mais bonita que eu já fiz por mim”, agradeceu uma delas ao trabalho de Maria Ribeiro, que se transformou no livro “Nós, Madalenas – uma palavra pelo feminismo”.
“A revolução já está sendo feminina e feminista”
Seu trabalho do “Nós, Madalenas” foi reconhecido pela ONU Mulheres e fez com que ela recebesse o prêmio Ivone Herberts. Esse foi o caminho de abertura para que passasse 2017 em Nova York, desenvolvendo videoarte com a ONU e também expondo seus trabalhos em galerias e oferecendo workshops. Novas conexões com grupos de todo o mundo que lutam pelo direito das mulheres fez com que ela voltasse ao Brasil com uma rede fortalecida e lançasse, em fevereiro, a campanha “Don’t Photoshopme”. Uma ação para web que busca, de maneira ainda mais profunda do que criticar a manipulação de imagens femininas na mídia, repensar todo ciclo vicioso de infelicidade no qual as mulheres vivem por terem crescido em um mundo imperado por padrões racista, eurocêntrico, gordofóbico e misógino.
A campanha já movimentou norte-americanas, portuguesas, espanholas, libanesas, indianas além de brasileiras e outras nacionalidades, com a preocupação em ser o mais acessível possível. A ação convida mulheres, de qualquer lugar, a postarem fotos delas mesmas, ao natural, usando a hashtag #dontphotoshopme. Em cada post, escrevem a seu modo suas reflexões sobre a importância de se combater a imposição sobre os corpos das mulheres.
“Como a manipulação dos corpos femininos interfere na relação com o nosso próprio corpo?” – Esse primeiro questionamento desencadeia em uma série de resultados problemáticos para a vida das mulheres. “A arte, o cinema, a fotografia e a TV são um espelho de como a gente se vê no mundo. Quando não nos enxergamos ali, não nos sentimos representadas, começa-se um sentimento de exclusão e isolamento. A partir daí, tentamos mudar nossos próprios corpos e fisionomia para nos encaixarmos em um padrão.”
Impotência, baixa autoestima e sentimento de fracasso são inerentes no gênero feminino e se alastram para outros aspectos, como profissionais e de relacionamento. “O que vendem é: Você não é perfeita porque você não quer. Não se esforça o bastante, não é disciplinada. Esse sentimento de impotência, frustração e falta de capacidade acaba invadindo aspectos profissionais, familiares e de relacionamentos abusivos, porque as mulheres acham que não merecem ou não são capazes de alcançar algo melhor. É um câncer que vai se espalhando em várias partes de nossas vidas.”
Luta contra a gordofobia
O debate contra a gordofobia, dentro das lutas feministas, nunca antes havia sido uma das principais pautas. Existem blogueiras e canais no Youtube para discutir e desconstruir discursos naturalizados e completamente corrosivos para a vida das pessoas. “Quando a gente fala do pavor de engordar, a gente está falando para as pessoas gordas: ‘eu tenho pavor do que você é'”. E quando a própria indústria plus size se apropria e arruína a luta das mulheres gordas, reforçam-se os padrões. “Sempre que a gente quer abrir um caminho para a diversidade, a indústria e a mídia se apropriam de uma forma a piorar a situação. Um exemplo muito claro é a indústria plus size. Muitas modelos não são gordas. Além disso, são exibidos corpos de proporções precisas, sem dobras, e com muito uso de Photoshop. Elas aparecem sem rugas, estrias, celulites, cicatrizes e manchas. Então, de novo, é um corpo que não existe”, defende Maria.
O revolucionário de todo este movimento, que leva mulheres a serem fotografadas por outras mulheres e a produzirem conteúdo em conjunto, faz com que elas sejam vistas e expostas de maneira humanizada e com a subjetividade de cada uma. “Odiar o próprio corpo gera insegurança, depressão. A sensação de que nós nunca somos suficientes e estamos sempre devendo alguma coisa para alguém. Causa distúrbios psicológicos e alimentares. Faz com que a gente gaste uma quantidade imensa de tempo, recursos, dinheiro e energia na busca pelo corpo, cabelo e rosto perfeitos, ao invés de empregar todo esse potencial em coisas construtivas que nos trazem uma satisfação real: criações, pesquisas, estudos, descobertas, hobbies. As mulheres dedicam suas vidas inteiras a uma luta que elas jamais vão vencer, por mais que a gente faça, nunca vai estar bom, vai sempre faltar. E, além do mais, a gente vai envelhecer. E, dentro do padrão, a velhice feminina é completamente estigmatizada.”
A manipulação e a artificialidade imposta ao corpo da mulher cria uma dicotomia que perpassa por questões ainda mais profundas, como a sexualidade feminina. “A gente fica na fixação do corpo perfeito, mas não somos estimuladas a conhecer e interagir com o nosso próprio corpo. Desconectar a mulher da sua própria sexualidade é mais uma forma de opressão e dominação.” É preciso pertencermos a nós mesmas, para resgatarmos o que há mais valioso em sermos mulheres, múltiplas e subjetivas. Buscar seguir o que não somos apenas contribui para a perda de nossa autenticidade. “O objetivo de todo o meu trabalho é as mulheres se amarem, porque a partir daí a gente faz uma revolução”, concluiu precisamente Maria Ribeiro, em uma tarde de conversa em Juiz de Fora.