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O preço que (não) se paga

Além de expor seus trabalhos e fazer intervenções como a da foto, Valéria Faria é professora da UFJF (Divulgação)
Além de expor seus trabalhos e fazer intervenções como a da foto, Valéria Faria é professora da UFJF (Divulgação)
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Uma antiga e clássica canção de Barrett Strong, gravada por artistas como os Beatles, os Rolling Stones e Joe Cocker, entre outros diz que “as melhores coisas da vida são gratuitas”. Antes que alguém possa retrucar a afirmação, o próprio autor o faz nos próximos versos: “Dê-me dinheiro, é isso que eu quero”. Embora exista a ideia romântica de que a arte não tem preço, é preciso sempre ter em mente que todos os serviços e produtos artísticos são criados a partir da força de trabalho de alguém, que precisa ser remunerado por tal, uma questão historicamente debatida por todo o mundo. Dada essa realidade e seus diversos desdobramentos, a Tribuna conversou com profissionais de várias linguagens das artes que residem em Juiz de Fora, e eles debateram o tema em seus delineamentos universais e especificamente locais. De antemão, é possível adiantar: viver de arte é um desafio, que não se limita a Juiz de Fora, mas ao Brasil e, quiçá, ao mundo.

Para Valéria Faria, que é artista plástica e professora da UFJF, é possível sobreviver com criações artísticas, mas com limitações. “Sobreviver sim. Viver com dignidade não. Ainda não. Desde o início da minha carreira, eu atuo em várias frentes de trabalho no campo da docência, da produção artística e do design gráfico, sempre motivada pelo desejo do pensamento e do fazer artístico. Mas este leque ampliado vem ajudando bastante no orçamento familiar. Como artista, eu investi bem mais que recebi, o que é comum na cidade. Artistas já falecidos como Dnar Rocha, Ruy Merheb e até mesmo Arlindo Daibert, que alcançou projeção nacional, nunca tiveram um retorno financeiro equivalente ao reconhecimento artístico que conquistaram”, pondera ela.

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A fotógrafa Nina Mello administra galeria de arte, é curadora e ministra cursos (Foto: Leonardo Costa)

O panorama é parecido para diversas outras expressões: é difícil sobreviver diretamente do ofício artístico, mas é possível recorrer a atividades como a docência, relacionadas ao estudo e à profissionalização em uma linguagem, seja ela a música, a fotografia, a dança, o teatro ou mesmo a literatura. “Não vivo diretamente da venda ou da exposição do meu trabalho, mas de ganchos relacionados a ele que, creio, me tornam uma artista melhor de certa forma: cursos, assessorias, trabalhos comerciais… Mas com arte essencialmente não se vive por aqui. É preciso contar com editais, com o apoio da iniciativa privada, e essa cultura ainda está caminhando em Juiz de Fora. Não vejo as artes como um ‘ofício divino’, é trabalho duro, muito estudo como em qualquer outra área. Nas artes, muitas vezes, o profissional tem que optar por ganhar dinheiro ou viver do que ama fazer. Ou tentar conciliar as duas coisas”, diz a fotógrafa Nina Mello, que também administra a galeria de arte Casa Vinteum e se dedica a curadorias, cursos e outros ofícios direcionados à fotografia.

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Fred Fonseca acredita que é possível viver de arte, com shows e outras atividades ligadas à música (Foto: Marcelo Ribeiro)

Para o músico e presidente da Cooperativa da Música de Minas (Comum), Fred Fonseca, muitos artistas dedicam sua capacidade a empregos que não os deixam desenvolver por completo sua arte e a encaram como um hobby. “Com isso, há bandas e músicos descomprometidos com o ofício de músico, que aceitam qualquer tipo de cachê para poder fazer seu som. É preciso ter comprometimento e crença em si mesmo. Música, arte e entretenimento são um trabalho como outro qualquer. Para que o cenário mude, é preciso investir em formação profissional, e a classe deve se conscientizar de que uma política cultural continuada é uma forma de começar a atrair o público a conhecer o que a cidade produz”, opina ele, que, além de tocar na noite, ministra aulas, compõe trilhas e comercializa jingles e composições.

Ao contrário do que acontece na música, o cinema parece estar passando por importantes iniciativas de formação na cidade, conforme aponta o cineasta Tomyo Costa Ito, que trabalha como assistente de direção em três curtas locais, todos financiados pela Lei Murilo Mendes. “Mesmo com limitações para se viver profissionalmente de cinema, vejo um cenário positivo. Acredito que as instituições de ensino superior vêm garantindo a capacitação de pessoas para atuar nessa área, além de empregarem profissionais dela como docentes. Festivais de cinema, como o Primeiro Plano, incentivam a produção, já que dão uma perspectiva de distribuição do filme. A Lei Murilo Mendes também é um fator decisivo para o incentivo à produção audiovisual”, opina Tomyo.

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Falta espaço

Thiago Salomão é baixista do Martiataka e dá aulas de inglês (foto: Marcelo Ribeiro)

Para Thiago Salomão, baixista do Martiataka e professor de inglês, os obstáculos para obter renda exclusivamente do ofício artístico não se limitam a Juiz de Fora. “Em qualquer lugar do mundo, vai ter um lugar com um cara ou uma banda tocando para dez pessoas. Todos esses caras queriam tocar para milhares. O que precisa é sempre espaço: em qualquer âmbito, espaço para tocar, espaço para divulgar, espaço na mídia, espaço para todo mundo.” É o que também afirma o escritor Juliano Nery, que possui quatro livros publicados e atua também na área de comunicação de uma rede de ensino privada. “Todas as artes, em geral, possuem uma matriz parecida, a meu ver. Passar pelo funil que transforma o entretenimento em consumo que movimente dinheiro é algo bastante complexo – para músicos, atores, escritores e artistas. Descobrir qual é a equação que traga resultado financeiro é o que todos buscam, mas apenas alguns alcançam.”

Apesar da universalidade da questão, Thiago Salomão também destaca problemas específicos no cenário juiz-forano. “Se você está disposto a tocar qualquer estilo de música em qualquer circunstância, dá para viver disso sim, conheço gente que faz. Mas elaborar um trabalho próprio e tentar sobreviver sem tocar cover é quase impossível. E isso afeta o público: se só existe espaço para cover, as pessoas só vão consumir esses shows. Um exemplo que anda contra essa maré é o festival JF Rock City, em que as bandas tocam primordialmente músicas próprias. As apresentações enchem do mesmo jeito, e o festival é um sucesso. Tem que haver mais espaços para o trabalho autoral”, diz o baixista.

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A artista plástica Valéria Faria também argumenta neste sentido, destacando que a cidade não só deixa de criar mais locais de incentivo ao trabalho artístico, mas também perde, historicamente, os que já foram referência, o que acaba por desvalorizar a arte local. “Não são poucos os museus e galerias de arte na cidade, mas é ínfimo o incentivo e valorização que se dá a estes espaços e, sobretudo, a quem os ocupa. Diversos lugares importantes como a galeria de arte da capela do Stella, a Casa de Papel, Galeria Ione Ribeiro, Galeria Arte Nossa promoveram grandes nomes na cultura da cidade, mas fecharam suas portas. Há quatro ou cinco décadas, havia mais cinemas, jornais, revistas, livrarias e galerias de arte. Hoje é mais importante ter estacionamentos e agências bancárias que espaços culturais. Isso não é progresso, e sim retrocesso. O mercado da arte em Juiz de Fora ainda está em formação, a passos lentos. A percepção e a valorização da arte precisam ainda ser muito depuradas”, destaca.

Também acreditando que há obstáculos inerentes ao cenário artístico da cidade, o ator e diretor Felipe Moratori defende que é preciso trabalhar em cima das iniciativas que existem e apesar delas.”A cena precisa conquistar o público, e os artistas precisam se apropriar ainda mais do que o poder público já oferece. As iniciativas só avançam e se aprimoram quando de fato há agentes que as exploram com qualidade. Dois exemplos para o teatro: Lei Murilo Mendes e Campanha de Popularização. Duas iniciativas nitidamente instituídas, quer gostemos delas ou não. Como ocupar essas iniciativas com qualidade? Não tenho dúvidas que é responsabilidade do artista fazê-las funcionar, a não ser que ele próprio tenha potência para instituir outras. Quanto às iniciativas para o teatro em Juiz de Fora, percebo por parte dos artistas muito julgamento e pouca ocupação”, opina ele, que também é instrutor de teatro do Sesc.

Editais e outras iniciativas

Para Nina Mello, editais de incentivo como o da Lei Murilo Mendes e o de ocupação de espaços como o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM), entre outras iniciativas, têm um papel decisivo para a promoção do trabalho artístico. “Não só porque possibilitam que o artista tenha suporte para realizar seu trabalho, mas também porque dão visibilidade a ele, fazendo com que a iniciativa privada e outros possíveis investidores vejam o trabalho artístico com outros olhos.” No caso específico da Lei Murilo Mendes, Fred Fonseca reconhece a importância e o alcance de seus recursos, mas destaca que, muitas vezes, eles são mal aproveitados pela classe artística. “Muitos parecem não ler o real nome dela: lei de incentivo, não de financiamento. Vemos inúmeros artistas tentar garantir com sua obra um salário anual por meio da lei, isso é incoerente. Ela existe para retirar um projeto da inércia, para criar o produto para que possa finalmente ser vendido ou circulado no mercado. Muitos músicos gravam CDs para depois promover a circulação, disco virou um escudo para justificar o trabalho apresentado. Em um passado não muito distante, o empenho com a lei era de se produzir shows e fazer seu material circular entre as pessoas, formando público e assim justificando a gravação de um material mais coerente”, diz ele.

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Otimista, Juliano Nery acredita que as experiências de cada artista, estejam ligadas a mecanismos de incentivo, à iniciativa particular ou mesmo projetos independentes, são muito diversificadas, e é impossível saber de antemão o retorno de um trabalho artístico. “Temos um exemplo recente da autora Isabela Freitas, que tem resultados de vendas bastante atraentes com o “Não se apega, não”, seu livro de estreia, que já está na casa das centenas de milhares. Acho interessante esse caso, porque a questão das vendas não está atrelada a morar em determinado lugar ou ser de determinado lugar, mas a afinidade das pessoas com o tema que ela aborda.”

Caminhos possíveis

As barreiras existentes no cenário artístico local não interferem na produção de futuras gerações de escritores na opinião de Juliano Nery. “Há uma diferença grande em chegar para alguém e dizer ‘você escreve bem’ para ‘compro o que você escreve’. Apesar disso, quem gosta de escrever sempre o fará. É um lance quase orgânico. E sou otimista. Acho que sempre vai ter alguém disposto a fazer, envolvendo dinheiro ou não”, destaca ele.

No teatro, Felipe Moratori foi um destes que, decidido a viver de seu trabalho artístico, não esperou que a cena local se profissionalizasse para isso. “Considero-me integrante da mais recente geração do teatro na cidade. As possibilidades foram surgindo à medida que permaneci conectado ao desejo de fazer do teatro minha profissão. É necessário que o poder público tenha o mercado cultural como um dos seus interesses fundamentais. E isso significa pensar em médio e longo prazo. A cidade pede, por exemplo, um curso profissionalizante em teatro, de nível técnico, que insira no mercado jovens profissionais aptos a produzir. O curso do CCBM, do qual fui aluno e professor, aponta um caminho, mas é só um esboço”, opina.

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Valéria Faria acrescenta que é essencial instituir uma mudança na percepção do valor social da arte, que tem de ser feita desde a escola. “As pessoas precisam saber que em uma galeria há uma grande rede de atividades em torno do fazer artístico: expografia, curadoria, arte-educação, conservação, restauro, difusão, dentre outras. Quando uma obra está exposta, há, além de todo o trabalho criativo do artista, um circuito extenso de atividades não menos importantes.” E acrescenta: “Ao ser convidado ou selecionado para realizar uma exposição, o artista deveria receber um suporte financeiro tanto para produzir quanto para expor e divulgar seu trabalho. De modo geral, a maior parte dos custos de uma exposição recai sobre o próprio artista, o que acaba inviabilizando a produção. Este é um dos motivos pelos quais há em Juiz de Fora grandes talentos com trabalhos trancafiados em suas gavetas”.

Para Nina Mello, festivais independentes também ajudam a dar visibilidade e profissionalismo à arte local. “Veja o que aconteceu com a literatura em Paraty e o cinema em Tiradentes, as cidades tornaram-se pólos destas linguagens, e isso certamente tem um impacto na arte local, seja com a premiação, que não raramente incentiva a produção; seja atraindo os olhares de iniciativas privadas, ou abrindo portas para novos editais.”

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