A realidade não se impõe, mas também não se submete à invenção. Ambas convivem e bailam nas criações de Grace Passô, uma inventiva atriz, diretora e dramaturga mineira de 38 anos. Em “Por Elise”, um dos seus mais elogiados textos, abacates despencam em cena marcando o compasso do espetáculo que enumera diferentes tipos, dentre eles a solitária mulher que plantou o abacateiro invisível para a plateia. Em “Vaga carne”, há cinco anos em cartaz, uma voz encontra o corpo de uma mulher angustiada por não ter lugar no mundo. As tantas e tantas nuances de Glória, seu papel no filme “Praça Paris”, contrasta enormemente com a Juliana que o cinema vê chegar no próximo dia 17, com o lançamento de “Temporada”. O naturalismo exacerbado da personagem levou Grace a vencer os prêmios de melhor atriz no 36º Torino Film Festival, na Itália, e no 51º Festival de Brasília. Para a crítica nacional e internacional, a interpretação é parte importante no sucesso do longa-metragem do também mineiro André Novais Oliveira. A produção foi selecionada para o 71º Locarno Festival e eleita pelo júri como melhor filme do Entrevues – Festival Internacional de Cinema de Belfort, na França, além de também sagrar-se vencedora da última edição do Festival de Brasília.
Escrevendo ou atuando, Grace construiu seu próprio vocabulário. E em nome dele, se torna a grande homenageada da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que começa dia 18 de janeiro na cidade histórica. Para o coordenador curatorial do festival, Cleber Eduardo, a reverência não é apenas à atriz, mas à criadora, à diretora, à performer, à mulher e à mulher negra. “Se é momento de olharmos adiante e de mantermos os corpos elevados, mesmo com todo o peso sobre eles e mesmo com espaços de liberdade vigiados ou reprimidos, optamos para a homenagem por uma atriz cujo corpo em sentido amplo começa a se expandir, começa a semear um futuro com muito batuque no sangue, com muita ginga na alma, com muita energia na mente, porque Grace, que é Passô, continuará a passar adiante, deixem ou não”, defende ele, em texto da mostra. Expoente de uma potente cena teatral de Belo Horizonte, que no início desse século fez do autoral sua principal bandeira, Grace fundou o Espanca! e flertou com companhias do Brasil e de fora. Não se restringiu, porém, ao palco. E seu premiado solo “Vaga carne” ganha versão cinematográfica especialmente para Tiradentes. Em parceria com o diretor Ricardo Alves Júnior, ela cria uma nova obra sobre a voz que encontra um corpo para compreender sua construção social. Para Grace, que conversou com a Tribuna por telefone na tarde da última segunda (6), trata-se de um pretexto para falar de outros e tantos corpos, reais ou inventados.
Tribuna de Minas – Para o coordenador curatorial da Mostra de Cinema de Tiradentes, Cleber Eduardo, você é “futuro em gestação nas telas, a partir de um passado e de um presente de criações em teatro e outros palcos”. Como recebeu a homenagem?
Grace Passô – Fiquei muito feliz com essa homenagem. Quando a Mostra entrou em contato comigo, falou que a homenagem viria não necessariamente pelo meu trabalho em cinema, mas por minha atuação nas artes. Trabalho com teatro há mais de 20 anos. É um eixo formador da minha vida . Fico muito feliz de que uma mostra de cinema consiga olhar para as artes de um modo mais expandido.
E como foram suas experiências com o cinema?
Fiz dois filmes com a Filmes de Plástico, que é uma produtora de Contagem. Eles inauguraram coisas muito grandes na minha vida, porque me identifiquei muito com o modo como eles trabalham e com a natureza das produções. “Temporada” é um deles. Esses dois filmes me aproximaram bastante do universo do cinema e dessa possibilidade de viver e elaborar minhas poéticas no cinema. Fora esses dois, tive uma experiência com “Elon não acredita na morte”, que é do Ricardo (Alves Júnior), que inclusive está dirigindo “Vaga carne” comigo. Foi uma das primeiras experiências no cinema e que me trouxe um profundo desejo de ter outras vivências como atriz nessa linguagem. Também fiz “Praça Paris”, dirigido pela Lúcia Murat, e agora tenho “Vaga carne” (feito especialmente para a Mostra) e outros projetos por aí.
A crítica tem ressaltado que “Temporada” apresenta um Brasil distante dos clichês e que muito disso se deve ao seu trabalho de interpretação. Fugir do estereótipo era um imperativo em seu processo?
Sempre é. A busca por ir além dos estereótipos sempre esteve nos meus trabalhos. Busco construir figuras que tentam subverter lógicas de normatividade e que vão além do traço estereotipado das pessoas. No “Temporada”, especificamente, tive muitas conversas com o André Novais (Oliveira), que concebeu esse trabalho, escreveu e dirigiu. Tivemos conversas que me aproximaram muito da mirada dele, da forma como ele vê o cinema, as artes e, portanto, a vida. Procurei, de alguma forma, entender profundamente o que aquela figura que interpretaria, a Juliana, estava vivendo. Procurei entender as situações pelas quais ela passa no filme. “Temporada” é um filme extremamente brasileiro. Em todos os sentidos, pela história que opta contar, a forma como conta, as pessoas que atuam nessa história, o modo como o filme foi produzido, as paisagens do filme, tudo diz respeito a uma brasilidade real.
Alguém serviu como referência para sua composição da Juliana de “Temporada”?
Não me inspirei em ninguém. No filme ela trabalha como agente de endemias, entra na casa de pessoas que não conhece, num universo muito íntimo de outras pessoas e isso desencadeia acontecimentos muito interessantes. Obviamente procurei me lembrar desse universo de trabalho brasileiro, nos quais as pessoas entram na intimidade de alguém mesmo sem as conhecer, que é o caso das pessoas que fazem pesquisas, ou dos que atuam contra a dengue, ou das empregadas domésticas, o que gera situações inimagináveis.
Entre atuar e escrever, fazer cinema e fazer teatro há uma distância muito grande ou em algum ponto esses papéis e lugares convergem?
São coisas diferentes, mas complementares. As linguagens são diferentes, mas se complementam, se atravessam. Não tenho preferências do que fazer. Minha preferência está em fazer trabalhos onde exista espaço para que eu coloque minha visão de mundo. A qual função vou me ligar ou em qual linguagem, não tenho predileções. Faço coisas diferentes, mas que se articulam, coexistem, são afetadas umas pelas outras.
Em retrospecto é possível identificar pontos em comum entre muitos de seus trabalhos, o principal deles é sua capacidade de transitar entre o subjetivo e o concreto numa mesma perspectiva. É intencional?
Esta é a minha busca: operar a subjetividade na sociedade em que vivo; negociar sempre questões subjetivas na coletividade. Esse objetivo me faz escrever ou conceber coisas que vão do plenamente abstrato, como um voo livre em relação ao sentido, até o mais objetivo, da vida. Eu sinto estar sempre exercitando entre a subjetividade e a coletividade, tenho a necessidade de relacionar essa subjetividade com o mundo, com o outro.
E “Vaga carne” é um capítulo especial na sua trajetória?
Todo trabalho para mim é parte do outro. Os trabalhos não são isolados, são sempre a consequência do seguinte. “Vaga carne” é mais um capítulo dos outros trabalhos que venho fazendo. Mas, especificamente, em relação à peça de teatro, ela reúne muitos parceiros antigos, e com o filme também foi assim. Nesse processo encontrei outras formas de narrar as histórias. Eu me permiti uma experimentação ainda maior em relação aos trabalhos antigos, consegui me despregar de certos códigos, consegui entender uma espécie de liberdade narrativa em relação ao que já fiz. É um trabalho muito importante para mim. Continuamos apresentando nos teatros, circulando no Brasil. Ele gerou muitas reflexões, críticas, publicações, teses.
No espetáculo há uma ligação muito forte com o público. Como foi transpor essa experiência para a tela?
É um exercício que me interessa muito. Eu e Ricardo (Alves Júnior, co-diretor) temos esse desejo há algum tempo. Fizemos juntos uma versão de “Saraband”, o último filme do Bergman, no teatro. Sempre conversamos sobre essa articulação entre linguagens e o que pode significar. A transcriação é algo que me interessa já há algum tempo. Foi muito interessante fazer “Vaga carne”, porque, de fato, se trata de uma transcriação. Não é uma peça filmada. Tentamos ler essa peça através da linguagem cinematográfica, entendendo os códigos do cinema e como alteramos a sensibilidade com os elementos audiovisuais. Trata-se de uma leitura de um trabalho teatral através do chão do cinema, da poética cinematográfica.
E o que há de Minas Gerais no que faz?
Tudo. Sou mineira e aprendi a ver o mundo e estar no mundo como uma pessoa desse território, desse recorte do Brasil. Minha sensibilidade existe através de uma linguagem mineira. Tudo o que nesse chão do mapa brasileiro se chama Minas Gerais, o modo como se vive nesse lugar ditam a forma como enxergo a vida. O que faço, foi e será mineiro, porque faz parte da minha identidade mais profunda, do meu rio mais profundo e verdadeiro.
22ª Mostra de Cinema de Tiradentes
De 18 a 26 de janeiro na cidade histórica